8 de fevereiro de 2015

Na Bíblia, o caçador por excelência é o gigante Nemrod, o mesmo a quem a tradição atribui o projeto da torre de Babel, cujo cimo deveria tocar o céu. O autor do Gênesis o define “robusto caçador diante de Deus” (10.9) (e ainda “contra Deus”, segundo a versão latina mais antiga, chamada Vetus Latina [Itala]), e esta sua qualidade venatória era essencial a ponto de ter se transformado em provérbio (“daqui nasce o provérbio: como Nemrod robusto caçador frente a Deus”).
No Inferno XXXI, Dante pune Nemrod, pelo seu “pensamento doentio”, com a perda da linguagem significante (“que assim está para ele qualquer linguagem / como a sua para os outros, a ninguém é conhecida”): ele pode apenas proferir sons privados de sentido (“Raphél may améch zabì almi”) ou, como caçador, tocar a corneta (“[...] alma estúpida / mantém contigo a corneta e com ela te desabafes”).
O que Nemrod caçou? E por que a sua caça é “contra Deus”? Se a punição de Babel foi a confusão das línguas, é provável que a caça de Nemrod tivesse a ver com um aperfeiçoamento artificial da única língua dos homens, que devia abrir à razão um poder sem limites. Isso ao menos deixa entender Dante, quando, para caracterizar a perfídia dos gigantes, fala do “argumento da mente” (Inf., XXXI 55).
É um mero acaso o próprio Dante ter apresentado, no De vulgari Eloquentia, a sua pesquisa do vulgar ilustrando-a constantemente através de imagens de uma caça (“caçamos a língua”, I, XI, 1; “aquilo que caçamos”, I, XV, 8; “as nossas armas de caça”, I, XVI, 2), e que a língua assim perseguida seja assimilada a uma besta feroz, a uma pantera?
Nas origens da nossa tradição literária, a pesquisa de uma língua poética ilustre se coloca assim sob o inquietante signo de Nemrod e da sua caça titânica, quase significando o risco mortal implícito em toda pesquisa sobre a linguagem que queira de algum modo restaurar o esplendor originário.
A “caça da língua” é a um só tempo arrogância insolente anti-divina, que exalta o poder de raciocínio da palavra, e amorosa busca que quer, ao contrário, reparar a presunção babélica. Todo sério empenho humano na palavra deve sempre se confrontar com esse risco.
Na poesia do último Caproni, esses dois temas se aproximam até coincidir na ideia de uma caça obsessiva e feroz cujo objeto é a própria palavra, e que une em si a desconfiança do gigante bíblico sobre os limites da linguagem e a piedosa veneração dantesca. Os dois aspectos da linguagem humana (a nomeação de Nemrod e a amorosa busca do poeta) tornaram-se então indistinguíveis, e a caça é de fato uma experiência mortal, cuja presa – a palavra – é uma besta que, diz Caproni, “vivifica e mata”, e que, “mansa e atroz”, talvez volte uma última vez a vestir o manto pintado da pantera dantesca (mas uma “pantera nebulosa” e “suicida”).
A palavra retorna então à sua própria potência lógica, diz si mesma, e, nesse extremo gesto poético, apreende somente a própria insensatez, aparece apenas no seu desaparecer. O “trompete” que se ouve vibrar “em eco” na música interrompida do último Caproni é a última e abafada ressonância da “alta corneta” delirante de Nemrod, do “robusto caçador diante de Deus”.

Giorgio Agamben, A caça da língua in Categorias Italianas. Estudos de poética e literatura., Edições UFSC, 2014.