12 de março de 2023

Em Fraggle Rock as pessoas que tinham um problema iam consultar um sábio monte de lixo. Para lá chegar, tinham de atravessar um assustador túnel escuro e ultrapassar um gigante mau. Depois o lixo levantava-se como uma montanha. Era aterrador e ao mesmo tempo extraordinário. O monte de lixo começava a mexer-se lentamente, primeiro como lava a borbulhar e finalmente erguia-se, imponente. Era tão insólito que eu não conseguia tirar os olhos do ecrã e estava sempre ansiosa para voltar a ver. “Outra vez!” O monte de lixo resolvia sempre os problemas e era muito sábio. "The trashy is all!", não sei como é que traduziam isto, mas era isso que eu percebia: tudo era lixo. O lixo era uma forma suprema de vida porque recebia toda a vida, era a vida a transformar-se, em decomposição, a devir. Já era adulta quando percebi que o monte de lixo era uma senhora, quando eu via o Fraggle Rock não era nem um senhor nem uma senhora, era lixo. Mas mal ouvia as perguntas das personagens porque tinha uma ânsia visceral de lhe fazer eu própria as minhas perguntas. Um comboio de perguntas a entrar uma após a outra na minha cabeça, mal uma se formulava, já outras duas estavam a meio de se definir. Entre elas, enquanto via o monte de lixo demonstrar a sua sapiência, interrogava-me se teria coragem de atravessar aquele túnel tão comprido e tão escuro. Interrogava-me se, uma vez lá, o monte de lixo a levantar-se, de que eu tinha muito medo, não seria intimidante ao ponto de me emudecer. Não conseguir perguntar nada. De que tinha eu medo se também tinha tanta vontade de falar com ele? Tinha medo de uma coisa que passa de invisível a visível diante dos meus olhos. Tinha medo de estar a olhar para uma coisa e não ver o que lá estava. Tinha medo de estar a olhar e não ver as coisas maravilhosas que estavam à frente do meu nariz.  


3 de março de 2023

todos sabem 
que o fogo
recebe tudo
e
não devolve nada

Inês Francisco Jacob, Sair de cena

22 de fevereiro de 2023

Uma mulher escreveu-me o seguinte depois de ler o texto Uma mão de homem:
 
"Eu tenho mãos de agricultora e já com artroses e, às vezes, quando estou nas caixas do supermercado, olho deliciada para as unhas das moças que atendem e imagino que, se o mundo acabar à unhaca, eu também aí vou estar, do lado dos perdedores."

21 de fevereiro de 2023

As pessoas aqui
já se tornaram 
nas pessoas
que fingem ser. 

Sam Shepard 

20 de fevereiro de 2023

Em A Trilogia de Copenhaga, o lixo percorre todas as fases da vida de Tove, todos os estados, todos os lugares. A casa onde Tove cresce fica perto dos caixotes do lixo. Os encontros para brincar com os primeiros amigos são junto aos caixotes do lixo. Os primeiros ensaios de liberdade, bem como o sentimento de uma liberdade inalcançável nos primeiros dias de trabalho, acontecem perto do lixo. O desejo, o sexo, a maternidade, a descoberta do corpo é feita no lixo. A perceção, com alívio, de que o destino dela não é o das amigas, mas a escrita, é feita perante o lixo. O lixo é uma pontuação que tanto permite entrever o seu universo como os lugares onde vive. O lixo é a sua gramática.

18 de fevereiro de 2023

A Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, exibiu hoje numa sessão quatro curtas metragens iranianas que eram, cada uma delas, uma obra-prima. Ressalva sobre isso feita para a última delas, no final deste pequeno texto. MOBAREZEH BA ATASH DAR AHVAZ [“Combate ao Incêndio em Ahvaz”], de Abolghasem Rezai (1958), YEK ATASH [“Um Fogo”], de Ebrahim Golestan (1961), COURTSHIP ["Segmento do Irão"], de Ebrahim Golestan com Forough Farrokhzad (1961) e KHANEH SIAH AST [“A Casa é Negra”], de Forough Farrokhzad (1962).
Dois filmes sobre um combate a um incêndio que ardeu ao longo de 70 dias num furo de petróleo em 1958, transformam-se numa alegoria sobre a relação do homem com a terra e com os seus elementos, sobre a nossa burlesca, absurda e insensata espoliação do que está acima, e mais acima, e do que está abaixo, do que está mais abaixo ainda e mais longe e mais abaixo ainda, e, ao mesmo tempo, sobre a nossa adaptabilidade, a nossa capacidade de superação, a firmeza, e certamente também a loucura, em enfrentar as catástrofes. No primeiro filme a preto e branco, uma descrição do acontecimento, rapidamente se percebe (logo nas primeiras imagens, na verdade) que o que estamos a ver excede a mera enumeração. No segundo filme, a cores, que tem a colaboração de Forough Farrokhzad, e a que chamaram simplesmente YEK ATASH, Um fogo, a matéria que vemos troca de lugar com o corpo que vê. Para além da cor, uma cor que ela própria ferve, é um filme com mais silêncios do que o primeiro. São silêncios com a sua própria monstruosidade, que lançam as chamas e o seu odor sobre a plateia e enchem pesadamente a sala, mas que também têm qualquer coisa de abrupto e desajeitado, como uma fala que guardámos demasiado tempo e que finalmente explode quando menos nos preparávamos para a pronunciar.
“Haverá sempre muitos silêncios”, diz-se em COURTSHIP. Neste filme, vejo a Forough pela primeira vez no écrã. É um filme de uma asfixia irracional. Uma encenação dos procedimentos de corte daquela época que começa — é sempre tudo muito curioso na verdade quando ela deflagra diante dos nossos olhos — com algo que não tem nada a ver com um casamento ou um namoro: a descrição da cidade de Teerão, nos planos dos grandes edifícios filmados a partir da rua, por um lado, e na voz off do casal que a descreve como uma cidade «moderna», «europeia», «cosmopolita», por outro, para logo a voz do homem proclamar “Já não deve haver haréns, pelo menos na cidade, mas o lugar da mulher é em casa!”. 
Por fim, vimos A CASA É NEGRA. Vi este filme hoje pela primeira vez no cinema numa cópia maravilhosa e estou infinitamente agradecida à Cinemateca e ao amigo que há umas semanas me avisou que o filme passava hoje. No caminho para casa, mergulhada numa espécie de nirvana negro e luminoso ao mesmo tempo, escrevo-lhe esta mensagem: "Por muitas vezes que veja este filme, sinto sempre que é a primeira vez. Hoje talvez especialmente. Acho que este filme diz tudo o que penso sobre a vida." Por este motivo, não consigo enquadrar este filme em nada. Nem mesmo na definição «uma obra-prima». Uma frase brilhou particularmente hoje, não sei se já tinha reparado nela antes. 
 
 





 
Forough Farrokhzad, The House is Black (1962).

12 de fevereiro de 2023

A verdade não liberta
 
Um amigo diz-me que amo de maneira volátil. Que para mim, todos os livros que acabo de ler são o melhor livro de sempre. Embora preferisse não concordar com ele, não encontro argumentos para o contestar. Desde que comecei a aprender a falar que procuro uma forma de expressar os desníveis, desvios, alterações e contrastes, subtis ou graves, da intensidade que tudo nivela à superfície e que parece ser a face mais clara do que vive em mim. "De manhã, havia esperança. Pousava como um reflexo fugidio no cabelo preto e lustroso da minha mãe, no qual nunca me atrevi a mexer." São estas as duas primeiras frases da Trilogia de Copenhaga, livro de Tove Ditlevsen, um dos expoentes da literatura dinamarquesa de que nunca tinha ouvido falar, que acaba de ser publicado em português. Primeiro sem conseguir distinguir uma razão para o abalo que me atravessa o corpo, aos poucos distinguindo que acabo de entrar na vida de uma pessoa num só golpe, de uma forma quase selvagem que me deixa numa espécie de torpor e sou incapaz de compreender inteiramente. Sinto-me confusa, era uma autobiografia e afinal será poesia? Comove-me o extremo acerto da universalidade: a infância é insuperável. Leio as duas frases e não consigo continuar. Com desconfiança e estranheza, reconheço em mim um sentimento de deferência, a intuição prematura de que estou perante uma obra-prima, um tesouro que quero manusear com cuidado. Se calhar o meu amigo tem razão. Também me sinto imediatamente próxima dela. Porquê, se a minha mãe era exatamente o oposto de uma mãe em quem não nos atrevemos a tocar? Se as palavras me tocam é porque, entre uma e outra, qualquer coisa se mantém, qualquer coisa permanece. Entre a sua infância e a minha interpõem-se mais de 50 anos. O que as une? Como qualquer infância, ambas são cheias de inocência, de credulidade, expetativa, candura, assim como de injustificável, inaceitável violência. Apesar de todas as diferenças, o distanciamento entre mim e o mundo dos adultos era o mesmo, precisamente este, um distanciamento sustentado pelo temor e, tal como o dela, o meu íntimo era ocupado por uma certeza, pelo sentimento que leva a essa decisão, de um certo arrojo, de nos protegermos deles. Enquanto prossigo, avoluma-se a amarga evidência de que hoje, tal como na época em que Tove viveu, a sociedade continua a anular as meninas e continua a anular as mulheres. "Porque moramos com tanta dor nas nossas ficções? Porque sofremos assim à custa de coisas da nossa própria invenção? Tu percebes porquê, Jeffers? Toda a vida quis ser livre, mas ainda não consegui libertar nem um dedo mindinho. Acredito que Tony seja livre, e a liberdade dele não parece grande coisa." Isto é Rachel Cusk, no livro Segunda Casa. Ditlevsen escreve para se libertar. Da pobreza, do corpo, da intimidade, dos maus tratos da mãe, do desconforto social, de uma série de casamentos malogrados, da solidão, da maternidade, do frio. Com uma agudeza seca e sombria, num estilo construído com uma honestidade despótica, descreve as circunstâncias em que viveu e como aos 10 anos decidiu escrever poemas, muito cedo determinada perante a boçalidade com que a família os acolheu: não os mostrar a ninguém. Com uma vontade férrea, opõe a íntima convicção de que um dia se tornaria uma «mulher poeta» à crença dominante, fervorosamente defendida pela mãe manipuladora, de que as raparigas precisavam do casamento para escapar à pobreza e à vergonha, bem como à convicção do pai de que uma mulher jamais poderia ser uma escritora. Tove nunca será uma heroína em nada, nem na sua história. Mas como foi possível que não a conhecêssemos até agora? Os seus livros foram incluídos nos currículos das escolas dinamarquesas, venderam muito, Ditlevsen foi uma das autoras mais populares da Dinamarca. Porém, até 2014, a sua obra foi consistentemente ignorada pelo cânone literário dinamarquês, principalmente composto por autores masculinos, tendo sido qualificada como uma escritora antiquada por usar a rima, numa altura em que os autores e críticos modernistas privilegiavam a poesia experimental. Para resumir tudo em duas palavras, era ficção feminina. Quando, em 2021, um tradutor de dinamarquês encontra o terceiro livro da trilogia num aeroporto, e obstinadamente o traduz, apenas inicialmente com apoio financeiro, tudo muda. Com a tradução inglesa das memórias em três volumes, The Copenhagen Trilogy, publicada pela Farrar, Straus & Giroux, em 2021, Tove Ditlevsen é postumamente catapultada para a fama, sendo traduzida em mais de trinta países. O New York Times nomeou-o um dos dez melhores livros de 2021, pela sua «espantosa clareza, humor e candura». Há alguns poemas traduzidos em antologias internacionais e em revistas literárias e a primeira tradução para inglês dos seus poemas (The Adults) está para breve. Segundo percebo através de alguns artigos, a sua linguagem, aparentemente tão simples, torna-se complexa nas imagens que descreve, tornando a tradução difícil. É também aí, a meu ver, que está a sua força. A concisão extraordinária com que escrupulosamente expõe a sua vulnerabilidade é de uma lucidez avassaladora, e transmite uma energia comovente. "Vós que entrais, abandonai toda a esperança." Sentimo-nos próximos (próximas?) da sua sinceridade, da sua sensibilidade apurada. Os internamentos, o mundo dominado pelos homens, o aborto, o abuso, as relações complicadas com a família, mas também, e talvez principalmente, a relação complicada com si mesma, aparecem neste livro de forma direta. A vagueza da vida é descrita de forma direta. Opaca, volúvel, ambígua, risível, Ditlevsen passa por ela com crescente indiferença, aceitando e mesmo desejando os papéis que socialmente lhe outorgam, ao ponto de se tornar totalmente indiferente a tudo menos a duas coisas: a escrita e o líquido transparente. A primeira liberta-a, a segunda torna-a totalmente dependente. Mas a primeira não a protege da segunda. É na droga que a escritora descobre a felicidade pela primeira vez, uma felicidade «pura», «indescritível», «infinda», «doce», «desconhecida», «extasiante», como tantas vezes é referida no livro, e é ela que a eleva "ao único nível onde queria existir". Eis o êxtase, a fuga total. Gift, o título que Tove dá ao terceiro volume da trilogia, tem em dinamarquês o duplo significado de casado e veneno. Aqui a escrita condensa-se, torna-se compulsiva, agoniza. "E se eu lhe contasse a verdade? Se lhe contasse que estava na realidade apaixonada por uma seringa com um líquido translúcido e não pelo homem que tinha acesso à referida seringa? No entanto não lho disse. Nunca o confessei a ninguém." Em 1973, três anos antes da sua morte autoinflingida, na peça que intitulou O meu obituário, Ditlevsen escreveu: "Antes da sua morte prematura, Tove Ditlevsen conseguiu escrever mais de uma dezena de livros, dos quais os mais importantes são as suas memórias. Com implacável honestidade, escreveu sobre os homens com quem, pela bondade do seu coração pródigo, partilhou mesa e cama. Infelizmente os seus contemporâneos não apreciaram a sua honestidade, o que acabou por levar a que nenhum homem se atrevesse a conversar com ela na rua por medo de aparecer no seu próximo volume." No ano seguinte, começou a escrever também sobre o seu desejo de morte: "Nós, que temos frequentemente mais medo da vida do que da morte, temos como que mais uma dimensão, um sentido de liberdade ao pensar que podemos retirar-nos a qualquer momento com um pedido de desculpas cortês, como quando se deixa uma empresa prematuramente". Aprendi (muito inesperadamente, pois não é no cinema que se aprende a viver?) duas coisas neste livro: que todos, sem exceção, queremos alguma coisa uns dos outros. E que a escrita implica uma certa falta de empatia, um alheamento. Não se pode ser direto sem ser severo? De onde vem esta beleza?
 

5 de fevereiro de 2023

26 de janeiro de 2023

Ensinamento

Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.

Adélia Prado

22 de janeiro de 2023

Uma semana na cidade onde nasci. Caminho em ruas conhecidas que desembocam em ruas que as obras, as construções e as demolições desfiguraram e me devolvem com dureza a imagem de acontecimentos importantes cujo lugar desapareceu totalmente. Há muitas casas em ruínas, algumas semi-demolidas para precaver desabamentos no passeio. Há ruas onde me custa passar porque me apetece ficar, ruas onde passo vagarosamente para observar e outras onde passo a correr, suspendendo a respiração para não ser contaminada por nenhuma memória. De porta em porta, a infeliz constatação de que o comércio no centro histórico continua a fechar é partilhada com a surpreendente sobrevivência de lojas que permanecem iguais há 30 anos e mais. As lojas abandonadas, cujas montras estão tapadas com jornais desbotados do início do século, não foram substituídas, nada surgiu no lugar delas, nem outros negócios nem casas. O rio vai cheio. Quase a transbordar depois das chuvas deste inverno, a água é verde e branca, como se as mulheres ainda viessem lavar. Aceno com carinho ao meu cunhado quando os nossos olhares inesperadamente se encontram através de uma janela, eu na rua e sem destino, ele no seu escritório a trabalhar desde cedo. O sentimento consolador de poder ver a minha família todos os dias e a qualquer hora é tão raro que me parece que a cidade nos pertence. Tenho prazer em percorrer a cidade a pé, mas não quero cruzar-me com ninguém. As conversas apressadas e aborrecidas (abomino o afã que leva ao lugar comum) com pessoas com quem não convivo há 27 anos, limitam-se quase todas aos tradicionais votos de fim de ano ou aos tradicionais inquéritos que exibem a consternadora hesitação entre serem dirigidos a uma fulgurante adolescente e também a uma mulher com cabelos brancos, solteira e sem filhos. Um amigo de quem me afastei há muito, chora com a frieza da minha resposta à incompreensível exigência Porque é que nunca apareces? Não me comovo e já não fico assustada por não me comover. Enquanto me afasto, gozo o conforto de talvez ter conseguido resolver a coisa pela raiz. Arranco a alegria a um corpo arrebatado pela deriva. Quem fui eu? Aquela que quis partir. Resta alguma coisa dela? Uma semana, uma missa de sétimo dia, um funeral e a notícia de outro a que não cheguei a tempo. Enquanto abraço antigas colegas de escola, percebo despreocupada que o inconformismo que me separava dos outros desapareceu. No cemitério, a minha irmã leva-me à campa dos meus avós e nas suas fotografias, os rostos familiares e vivos confundem-me como sempre, não restando à repulsa inexprimível mais do que vomitar umas quantas lágrimas grossas que já não sei o que significam. Outros mortos — que fui eu que matei bem matados, ao longo de muito tempo e com as minhas próprias mãos —, a contingência me força a encontrar sempre que venho. Aqui, não há escolhas. No Instagram, onde publico fotografias dos meus passeios, recebo mensagens que elogiam a beleza da paisagem. Onde estava esta beleza quando cá vivi? Por muito que me esforce, o que assome é a inundação da biblioteca e o posterior encerramento por mais de uma dezena de anos, o incêndio no jardim-infantil, o fecho do Cine-Teatro Virgínia cujas ruínas me contemplaram até à partida, o fogo estival na serra, o salão de jogos com a máquina de Tetris e as mesas de Snooker de onde saía carcomida pela solidão, o Trampolim, um café onde dançava e hoje não sou capaz de entrar, e opressão, opressão, opressão que me esperou ao raiar desde que me lembro e de que me despedia diante de uma estrela que brilhava mais forte diante da janela do meu quarto, à qual todos os dias prometi sair dali mal conseguisse. Enquanto revisito mais um lugar, lembro-me que é sobre isto que escrevo. Sobre tudo isto, sobre este lugar. A derrota sucessiva de todos os meus espantos trouxe-me aqui, a um apagamento que não tenho qualquer intenção de repor.

21 de janeiro de 2023

Devo ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Devo ser o último degrau na escada de Jacob
E o último sonho nele
Devo ser a última dor no quadril.
Devo ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Devo ser a véspera.
Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir.
 
Daniel Faria

11 de dezembro de 2022

é um processo negativo

Procuro adaptar o meu olhar àquilo que vejo e que identifico de imediato, todavia, hesitando em reconhecer: as imagens que a Margarida me envia por email são impressões de panos de cozinha dobrados, redobrados, calcados e retorcidos. Provêm de uma obscuridade quase total, uma sombra cuja integridade parece conferir alguma eternidade àquilo que vemos — pois só a sombra é eterna.

Estão guardados há muito? Serão antigos? Ou terão sido retirados de uma gaveta na cozinha onde se acumulavam aos poucos, alguns usados e outros novos, comprados para se substituírem pouco a pouco? Os panos de cozinha remetem-me para um ritual antigo, uma dinâmica da casa que, faço subitamente a associação, talvez um pouco disparatada, é também a do artista. Abrem-se e fecham-se arcas, gavetas, armários, nelas se guardam e delas se retiram os panos, ativando o ato mágico de revelar uma força, uma imagem, uma linha, um signo. Invade-se as cozinhas para roubar água, plantas e panos que se levam para o atelier, mas o que aí se cozinha não tem receita. "... [A]rt itself is a sort of thinking thing, it's not spontaneous and it's also not conceptual", diz a Margarida no lúcido Artist Statement que escreveu.

A cabra-cega [blind man's buff] é um jogo recreativo em que um dos participantes é vendado e fica encarregue de procurar agarrar os outros, que, livres à sua volta, o incitam a apanhá-los (a palavra buff é aqui utilizada na sua aceção antiga de um 'pequeno empurrão'). Para isso, visto que não os pode ver, terá de descobrir onde estão. Por sua vez, aquele que for agarrado, passará a ficar com os olhos vendados. Permanecendo como uma constelação à sua volta, os jogadores fogem da pessoa vendada e ao mesmo tempo tocam-lhe ininterruptamente, colocando-se em perigo de perder para a desafiar.

Que massa embrulham estes panos?

"As dobras dão-nos acesso ao possível na obra.", diz Georges Didi-Huberman. A dobra, é o próprio movimento da vida, aquilo que se acha a viver. Estes desenhos, onde um volume vivo emerge do branco primitivo do papel, convertem-se em escultura aos nossos olhos. Não é já a pintura, que trabalha com traços numa superfície, é sobre desafiar o papel e dar-lhe, senão uma profundidade, um volume que nasce. A dobra dá profundidade, mas sobretudo acentua o movimento e o tom do movimento, sereno ou vulcânico. Talvez por isso, nada é mais difícil de representar do que as dobras e as suas formas estruturadas, por vezes, de acordo com uma lógica geométrica difícil de identificar. A dobra — e apenas a dobra — tem o potencial de desfigurar uma representação quando quer ser fiel à realidade. Um pano usado para conter alguma coisa. Um pano usado para esconder alguma coisa. Um pano usado para formar camadas sobre si próprio. Uma marca causada por uma dobra. Rugas, ondulações, envelopes, formas, quedas. Panos engelhados, diz-se, amarrotados, enrugados, encarquilhados, secos, retesados. A dobra esconde e revela, mostra e oculta. Apresenta-se e declara uma ausência, formula aparências, revela desaparecimentos. Converte-se em sinónimo tanto do que nos rodeia como do que encerramos. Leio algures e levada pelo entusiasmo esqueço-me de anotar onde: a dobra é a forma do fundo.

Mas é a dobra que fascina, não o fundo.

Tenho tendência para ver sempre uma intensidade em cada dobra, em cada massa que, inerte, parece contorcer-se ou para se subtrair à sombra ou para nela cair continuamente. Não sabemos. No processo negativo da monotipia, em que todos os elementos colocados na matriz de vidro (base) sairão impressos ao contrário, a Margarida destaca aquilo que se opõe ao desenho, que se forma quando acrescentamos tinta a uma superfície: «é um processo negativo, de retirar a tinta, para depois imprimir os restos que ficam na chapa.» Uma vez que os panos pousam na chapa da prensa de gravura onde estas imagens foram impressas, o processo passa a estar oculto e o desenho desaparece para apenas ser visto quando o pano é retirado. «Só quando saía da prensa», diz-me a Margarida, «é que via como tinha ficado». Como num jogo de cabra-cega, algo espicaça como vento no mar. Talvez nem hoje, nem aqui, o barco tenha estacionado. Há que confiar nos ventos. Sem eles não haveria viagem.

"I look at it [o desenho] and it tells me what I wanted to find, not knowing it yet; at the same time, it keeps its idea mysteriously closed in itself, never fully exhausting or losing it."

Margarida Garcia, Artist Statement.

 

 


Texto para folha de sala de Blind Man’s Buff, de Margarida Garcia, patente na Appleton Square, em Lisboa, até dia 22 de dezembro de 2022.

18 de novembro de 2022

Vinha a descer a rua da Voz do Operário. Ainda conhecia mal a zona, nunca tinha lá vivido e os meus percursos eram sobretudo no Norte da cidade, perto da faculdade e, ocasionalmente, também no centro, onde atravessava rapidamente o Rossio e a Rua Augusta para chegar à beira-rio. Neste dia vinha, por isso, a descer uma rua praticamente desconhecida, um prazer a que me dediquei tanto quanto pude. Vinha a descer a rua deserta, vi o rio ao fundo, o passeio apertado pelos carros estacionados, a estação que mudava quase impercetivelmente no ar. A mochila nas costas carregava tudo o que podia precisar. Um pensamento muito simples percorreu o meu corpo num leve frémito: «Sou livre». Mal o pensei, vi esta parede do outro lado da rua. Uma frondosa trepadeira preenchia-a inteiramente. Não tinha nada de especial aquela parede, igual a tantas que tinha conhecido numa infância vivida numa pequena Vila no interior. Continuei a desviar-me dos carros para descer, deitando-lhe um olhar de soslaio. A parede era muito alta e os ramos chegavam até ao chão. Subitamente, uma rajada forte de vento intromete-se entre a planta e a parede e levanta os longos ramos num sopro. Do outro lado da estrada, parei. Decidi encostar-me à parede e ficar a ver. Tinha tempo, ninguém me esperava. Ainda havia sol. Ajeitei mansamente o corpo contra a parede para que ficasse a bater-me na cara, mas o frio de um fim de tarde de outono, altivo e hostil, transpunha perverso o limiar da minha manga. Aconcheguei a roupa, ajustei o casaco e a gola. Não pretendia ir-me embora. O vento voltou a tocar na trepadeira, por vezes levemente, outras vezes com um vigor a lembrar tempestades em alto mar. Como a densa juba de uma mulher, os ramos da trepadeira subiam e desciam lentamente, mais alto ou mais baixo conforme a investida. Fiquei até o frio ser insuportável e a luz estar cheia de sombra. A primeira vez que comecei a descer a rua para regressar a casa, fiquei com pena de não ter ficado com um registo da trepadeira. Voltei atrás, tirei a máquina fotográfica da mochila e comecei a filmar, a tremer de frio. Foi apenas nesse momento — e através da máquina — que reparei nas folhas da trepadeira. As cores eram inumeráveis. Verdes, amarelas, rosa, castanhas, vermelhas, escuras, claras, secas, novas. Filmei durante muito tempo e depois, receando que a minha falta de destreza tivesse conseguido um mau registo de um momento genial, tirei esta fotografia que, como se pode constatar, é tão má como a filmagem, entretanto perdida. Mas assim lembro-me. Os ramos da trepadeira subiam e desciam e perguntei-me se poderia ser a única pessoa no mundo a testemunhar aquela beleza. Perguntei-me, para ser exata, se essa beleza poderia ter sido feita apenas para mim, embora tivesse gostado de a partilhar, se aquela golfada de vento que parecia falar-me seria uma entidade com uma existência tão irremediável quanto a minha e me visse. Sabia, contudo, já nessa altura, que não vale a pena fazer alarde da beleza. A beleza é sempre incomensurável e nós, sobretudo quando somos jovens, estamos sempre sozinhos em alto mar. 

26 de setembro de 2022

Em minha defesa, os meus seios esquecidos. Em minha defesa, o cabelo
que ninguém me apartou da cara. Em minha defesa, as minhas ancas.

Meses antes, lembro-me de pensar que o sexo era um barco desaparecendo
no horizonte. Nada conseguia fazer senão enterrar os meus pés na areia.

Senti falta de todas as coisas que a solidão me ensinou: olhos que te seguem
quando atravessas uma sala, mãos que acham casa em ti. Ser notada. Até.

Em minha defesa, as suas mãos. Em minha defesa, os seus braços. Em minha defesa,
o modo como sentados ficávamos somente a ouvir a respiração um do outro, ele disse, isto chega.

O meu corpo era uma casa que eu fechara para o inverno. Não devia ter sido assim
tão difícil, vazia que ela estava. Ainda assim, olhei longamente antes de apagar as luzes. 

O meu corpo era um espectro que me assombrava, que aparecia quando me despia
na casa de banho, quando me enfiava em camas vazias, quando chovia. 

O meu corpo era construção abandonada, andaimes de restauração
que se tornaram permanentes. O meu corpo inacabado tornou-se o meu corpo acabado.

Pelo que, em minha defesa, quando ele me tocou as luzes do meu corpo acenderam.
Em minha defesa, as janelas abriram de par em par. Em minha defesa, primavera. 

Cristin O’Keefe Aptowicz
[Tradução de Valério Romão].

10 de julho de 2022

No terceiro filme que vejo de Mikio Naruse, uma mulher implora a um homem que parte que a leve consigo. Ele fez-lhe promessas que não cumpriu, amou outras mulheres, foi rude, foi indiferente. Recusa levá-la e ela — que já roubou, já pediu e já se deu para sobreviver — suplica-lhe, apenas dois meses, apenas um mês, depois deixo-te em paz para sempre, suplica-lhe uma e outra vez. 
Estou a imaginar esta mulher com os amigos, a família, o vizinho, o psicólogo, todos lhe dizem para o deixar, para o esquecer, para não se humilhar, todos eles, quem sabe certos, convencidos de que ele não é o que ela precisa, sequer o que ela quer, persuadidos de estarem em posse da medida justa, de certos axiomas de vida. 
Ele próprio lhe diz isso.
No plano a seguir o homem e a mulher estão juntos num comboio, adormecida, a cabeça dela pousa no ombro dele, que vigia. Ela conhece um limite que está para lá da competência, da clareza castradora, da moderação do equilíbrio e do controlo, um limite insuportável: sabe o que é necessário. De que é que ela precisa? Água, pão, saúde, ar. Por cada uma dessas coisas, ela sabe em que altura vale a pena suplicar.

Ukigumo [Floating Clouds], Mikio Naruse (1955).