Vinha a descer a rua da Voz do Operário. Ainda conhecia mal a zona, nunca tinha lá vivido e os meus percursos eram sobretudo no Norte da cidade, perto da faculdade e, ocasionalmente, também no centro, onde atravessava rapidamente o Rossio e a Rua Augusta para chegar à beira-rio. Neste dia vinha, por isso, a descer uma rua praticamente desconhecida, um prazer a que me dediquei tanto quanto pude. Vinha a descer a rua deserta, vi o rio ao fundo, o passeio apertado pelos carros estacionados, a estação que mudava quase impercetivelmente no ar. A mochila nas costas carregava tudo o que podia precisar. Um pensamento muito simples percorreu o meu corpo num leve frémito: «Sou livre». Mal o pensei, vi esta parede do outro lado da rua. Uma frondosa trepadeira preenchia-a inteiramente. Não tinha nada de especial aquela parede, igual a tantas que tinha conhecido numa infância vivida numa pequena Vila no interior. Continuei a desviar-me dos carros para descer, deitando-lhe um olhar de soslaio. A parede era muito alta e os ramos chegavam até ao chão. Subitamente, uma rajada forte de vento intromete-se entre a planta e a parede e levanta os longos ramos num sopro. Do outro lado da estrada, parei. Decidi encostar-me à parede e ficar a ver. Tinha tempo, ninguém me esperava. Ainda havia sol. Ajeitei mansamente o corpo contra a parede para que ficasse a bater-me na cara, mas o frio de um fim de tarde de outono, altivo e hostil, transpunha perverso o limiar da minha manga. Aconcheguei a roupa, ajustei o casaco e a gola. Não pretendia ir-me embora. O vento voltou a tocar na trepadeira, por vezes levemente, outras vezes com um vigor a lembrar tempestades em alto mar. Como a densa juba de uma mulher, os ramos da trepadeira subiam e desciam lentamente, mais alto ou mais baixo conforme a investida. Fiquei até o frio ser insuportável e a luz estar cheia de sombra. A primeira vez que comecei a descer a rua para regressar a casa, fiquei com pena de não ter ficado com um registo da trepadeira. Voltei atrás, tirei a máquina fotográfica da mochila e comecei a filmar, a tremer de frio. Foi apenas nesse momento — e através da máquina — que reparei nas folhas da trepadeira. As cores eram inumeráveis. Verdes, amarelas, rosa, castanhas, vermelhas, escuras, claras, secas, novas. Filmei durante muito tempo e depois, receando que a minha falta de destreza tivesse conseguido um mau registo de um momento genial, tirei esta fotografia que, como se pode constatar, é tão má como a filmagem, entretanto perdida. Mas assim lembro-me. Os ramos da trepadeira subiam e desciam e perguntei-me se poderia ser a única pessoa no mundo a testemunhar aquela beleza. Perguntei-me, para ser exata, se essa beleza poderia ter sido feita apenas para mim, embora tivesse gostado de a partilhar, se aquela golfada de vento que parecia falar-me seria uma entidade com uma existência tão irremediável quanto a minha e me visse. Sabia, contudo, já nessa altura, que não vale a pena fazer alarde da beleza. A beleza é sempre incomensurável e nós, sobretudo quando somos jovens, estamos sempre sozinhos em alto mar.