11 de dezembro de 2022

é um processo negativo

Procuro adaptar o meu olhar àquilo que vejo e que identifico de imediato, todavia, hesitando em reconhecer: as imagens que a Margarida me envia por email são impressões de panos de cozinha dobrados, redobrados, calcados e retorcidos. Provêm de uma obscuridade quase total, uma sombra cuja integridade parece conferir alguma eternidade àquilo que vemos — pois só a sombra é eterna.

Estão guardados há muito? Serão antigos? Ou terão sido retirados de uma gaveta na cozinha onde se acumulavam aos poucos, alguns usados e outros novos, comprados para se substituírem pouco a pouco? Os panos de cozinha remetem-me para um ritual antigo, uma dinâmica da casa que, faço subitamente a associação, talvez um pouco disparatada, é também a do artista. Abrem-se e fecham-se arcas, gavetas, armários, nelas se guardam e delas se retiram os panos, ativando o ato mágico de revelar uma força, uma imagem, uma linha, um signo. Invade-se as cozinhas para roubar água, plantas e panos que se levam para o atelier, mas o que aí se cozinha não tem receita. "... [A]rt itself is a sort of thinking thing, it's not spontaneous and it's also not conceptual", diz a Margarida no lúcido Artist Statement que escreveu.

A cabra-cega [blind man's buff] é um jogo recreativo em que um dos participantes é vendado e fica encarregue de procurar agarrar os outros, que, livres à sua volta, o incitam a apanhá-los (a palavra buff é aqui utilizada na sua aceção antiga de um 'pequeno empurrão'). Para isso, visto que não os pode ver, terá de descobrir onde estão. Por sua vez, aquele que for agarrado, passará a ficar com os olhos vendados. Permanecendo como uma constelação à sua volta, os jogadores fogem da pessoa vendada e ao mesmo tempo tocam-lhe ininterruptamente, colocando-se em perigo de perder para a desafiar.

Que massa embrulham estes panos?

"As dobras dão-nos acesso ao possível na obra.", diz Georges Didi-Huberman. A dobra, é o próprio movimento da vida, aquilo que se acha a viver. Estes desenhos, onde um volume vivo emerge do branco primitivo do papel, convertem-se em escultura aos nossos olhos. Não é já a pintura, que trabalha com traços numa superfície, é sobre desafiar o papel e dar-lhe, senão uma profundidade, um volume que nasce. A dobra dá profundidade, mas sobretudo acentua o movimento e o tom do movimento, sereno ou vulcânico. Talvez por isso, nada é mais difícil de representar do que as dobras e as suas formas estruturadas, por vezes, de acordo com uma lógica geométrica difícil de identificar. A dobra — e apenas a dobra — tem o potencial de desfigurar uma representação quando quer ser fiel à realidade. Um pano usado para conter alguma coisa. Um pano usado para esconder alguma coisa. Um pano usado para formar camadas sobre si próprio. Uma marca causada por uma dobra. Rugas, ondulações, envelopes, formas, quedas. Panos engelhados, diz-se, amarrotados, enrugados, encarquilhados, secos, retesados. A dobra esconde e revela, mostra e oculta. Apresenta-se e declara uma ausência, formula aparências, revela desaparecimentos. Converte-se em sinónimo tanto do que nos rodeia como do que encerramos. Leio algures e levada pelo entusiasmo esqueço-me de anotar onde: a dobra é a forma do fundo.

Mas é a dobra que fascina, não o fundo.

Tenho tendência para ver sempre uma intensidade em cada dobra, em cada massa que, inerte, parece contorcer-se ou para se subtrair à sombra ou para nela cair continuamente. Não sabemos. No processo negativo da monotipia, em que todos os elementos colocados na matriz de vidro (base) sairão impressos ao contrário, a Margarida destaca aquilo que se opõe ao desenho, que se forma quando acrescentamos tinta a uma superfície: «é um processo negativo, de retirar a tinta, para depois imprimir os restos que ficam na chapa.» Uma vez que os panos pousam na chapa da prensa de gravura onde estas imagens foram impressas, o processo passa a estar oculto e o desenho desaparece para apenas ser visto quando o pano é retirado. «Só quando saía da prensa», diz-me a Margarida, «é que via como tinha ficado». Como num jogo de cabra-cega, algo espicaça como vento no mar. Talvez nem hoje, nem aqui, o barco tenha estacionado. Há que confiar nos ventos. Sem eles não haveria viagem.

"I look at it [o desenho] and it tells me what I wanted to find, not knowing it yet; at the same time, it keeps its idea mysteriously closed in itself, never fully exhausting or losing it."

Margarida Garcia, Artist Statement.

 

 


Texto para folha de sala de Blind Man’s Buff, de Margarida Garcia, patente na Appleton Square, em Lisboa, até dia 22 de dezembro de 2022.