19 de maio de 2020

A arte de viver é a capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo que nos escapa. (...). Enquanto, todavia, os homens refletem há séculos sobre como devem conservar, melhorar e tornar mais seguros os seus conhecimentos, faltam-nos até mesmo os princípios elementares de uma arte da ignorância.

Giorgio Agamben
aberto para ti
o coração dói
recém nascido
nunca uma pergunta é banal,
mas sim, a resposta.

16 de maio de 2020

Coisas sobre a morte da minha avó Miquelina:

O Sr. Martins subir até à mortuária num passo muito lento e chorar agarrado a mim. Não por não se lembrar de mim (não se lembrava), mas porque também a sua vida está a chegar ao fim. Algo de amargura nos seus olhos, uns olhos de criança.

Nunca consegui suportar o toque das mãos frias dos mortos. Mas não foi assim com as mãos da minha avó. Talvez porque apesar de inertes, lembrava o seu calor.

Não querer que ninguém me desse os sentimentos.
repetir uma canção para observar melhor um terreno feito para acidentes.


I want to hold the hand inside you
I want to take the breath that's true
I look to you and I see nothing
I look to you to see the truth
You live your life, you go in shadows
You'll come apart and you'll go black
Some kind of night into your darkness
Colours your eyes with what's not there
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
A stranger's light comes on slowly
A stranger's heart without a home
You put your hands into your head
And then smiles cover your heart
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
I think it's strange you never knew

13 de maio de 2020

O fotógrafo pertence à paisagem.

11 de maio de 2020

Não conto os dias do meu confinamento. Naquele dia, estava eu sozinha no escritório, decidi ir para casa e dizer às minhas colegas para trabalharmos a partir de casa. Nada de novo para mim, que já o fiz tantas vezes. Foi como se a humanidade tivesse subitamente sido obrigada a viver de acordo com os introvertidos, quando antes éramos nós que tínhamos de fazer constantemente o esforço de adaptação. É difícil viver num mundo onde não quero fazer aquilo que a maioria quer fazer. Sair sim, mas só às vezes, estar com pessoas sim, mas de preferência que possa observá-las e ouvi-las bem, ter silêncio, ter tempo. Não sou tímida, mas vivo num mundo introspetivo e tenho tendência a desejar mais a solidão total ou a companhia de apenas uma pessoa. Gosto mais de escrever do que de falar, odeio conversa fiada e gosto mais de dar passeios num jardim pequeno e vazio do que num grande e apinhado de gente. A solidão permite-me ampliar a minha imaginação, sentir que tudo é possível, e penso que a maioria dos encontros, sobretudo os de trabalho, exigem um gasto supérfluo de energia. A minha casa é na verdade o centro da minha vida. Um amigo disse-me com certa admiração, quando entrou nela pela primeira vez, como tinha construído a casa onde vivo para a escrita.
*

Esta semana li uma entrevista à Adília Lopes onde se vê uma fotografia de uma casa, supostamente a dela, com as paredes escritas. Essa coincidência fez-me sorrir. Nunca pensei ter alguma coisa em comum com a Adília Lopes, escritora de uma enorme assertividade e sintetismo, mas também eu, desde que vivo sozinha, escrevo nas paredes. Não faço tatuagens, mas as paredes de minha casa são como a minha pele tatuada. Nem tudo o que aí escrevo tem, contudo, um poder performativo. Por vezes faço listas, de música por exemplo, a última. Listas de receitas para ter à mão (detesto ir ao supermercado). Listas de livros que quero ler. Escrevo e eventualmente apago, quando já não me serve. Todavia, três linhas acompanham-me há já muitas casas. Em maiúsculas, um dia, depois de um sonho transformador, escrevi numa parede branca

NEM DEVER
NEM CULPA
NEM NECESSIDADE

Nunca revelei a ninguém o seu sentido, coisa que quero fazer hoje: é, para mim, o segredo do amor.

7 de maio de 2020

Tenho uma enorme dificuldade em descrever um rosto. A cada tentativa saio frustrada, tendo escrito pouco ou nada. Mesmo esse pouco, arrancado com sorte e a ferros, nada revela sobre aquele rosto em particular, nem sobre as suas milimétricas manifestações. Não estou bem de outra maneira senão a escrever e, no entanto, não sou prolixa, eis a grande contradição da minha vida. Pelo contrário, em A Contraluz, Rachel Cusk tem descrições de rostos admiráveis, com adjetivos e metáforas de toda a espécie:

"Há qualquer coisa de personagem de desenho animado na cara de Paniotis: tudo nela é exagerado, as maçãs do rosto são muito magras, a testa muito alta, as sobrancelhas projetando-se como pontos de exclamação, o cabelo voando em todas as direções, e por isso, quando olhamos para ele, temos a sensação curiosa de estarmos a olhar para uma ilustração do Paniotis e não para o próprio Paniotis. Mesmo quando está descontraído, ostenta a expressão de alguém a quem acabaram de contar alguma coisa extraordinária, ou de alguém que abriu uma porta e ficou muito surpreendido com aquilo que viu à sua frente. Os olhos, emoldurados pelo ricto desta expressão, são irrequietos e voláteis e muitas vezes ficam dramaticamente protuberantes, como se algum dia pudessem voar, abandonando de vez o seu rosto, perplexos com aquilo que testemunharam."

Há nestas descrições a frieza de quem os imagina, de quem os trabalha, de quem tem a capacidade de criar um mundo. Eu, que tenho a insignificante ambição de descrever este mundo, debato-me com a falta de memória e com os afetos que perturbam a emissão de sinal. A regra, porém, é a mesma: trabalhar, trabalhar, trabalhar. A realidade também é imaginada.

3 de maio de 2020

A maioria das minhas amigas é casada e tem filhos. Durante a quarentena, todas se queixaram de ter demasiadas coisas para fazer e não estar a conseguir dar conta. Cuidar da casa (limpar, arrumar, organizar), dos filhos (tratar da roupa, da escola, imaginar atividades de recreio e exercício), cozinhar (pensar em receitas, ir às compras, preparar a comida) e, enfim, estar em teletrabalho. Ingénua sobre esta realidade do que é estar em casal, pergunto «E ele?», mas invariavelmente a resposta é incompreensível: «Ele está a trabalhar». Nunca me armei em defensora, porque nenhuma delas precisa de defesa. São todas mulheres altamente instruídas, competentes, inteligentes, criativas e empáticas. Porque não agem? Como chegámos até aqui? Em relação ou não, pobres ou ricas, instruídas ou ignorantes, com ou sem filhos, rebeldes ou submissas, vivemos todas num mundo marcado pela dominação masculina e enfrentamos quotidianamente a necessidade de reclamar o nosso lugar. O que temos de mudar? Como vamos mudar? Não sei responder.
No primeiro ano do meu casamento, o meu marido, um ativista francês, foi deixando aos poucos de lavar a loiça, aspirar a casa e cozinhar. Também queria ser sempre ele a conduzir e, muito embora eu já fosse estudante quando casámos, passou a achar mal que eu estivesse a estudar. Ao longo de algumas semanas observei-o com curiosidade, para ver até onde iria. Depois, um dia, também deixei de fazer tudo. Durante meses a fio, com a casa num caos, passámos cada um a lavar a sua roupa e a jantar fora, altura em que ele procurava convencer-me que, por razões de trabalho, não tinha tempo para se ocupar daquelas coisas e que, portanto, como estava mais tempo em casa, eu tinha de o fazer. Foram conversas extraordinárias, em que eu não cedi uma única vez. Então, eventualmente, e de forma muito discreta, ele quebrou. De costas para mim, disse que ia passar uma camisa e perguntou-me se eu queria que ele passasse alguma coisa minha. Nesse momento, ainda pensei se havia de ceder ou vingar-me de séculos de sujeição. Um pouco contrafeita, agradeci e eventualmente tive de voltar a lavar a loiça. Ficou-me todavia esta memória, de que me sirvo muitas vezes, embora não sirva de nada às minhas amigas que têm de salvar tanta coisa do naufrágio e também de ensinar a nadar. No trabalho e em casa, temos muito confronto a fazer, vivemos de acordo com códigos que não nos pertencem e cumprimos papéis moldados para a felicidade dos homens. Como diria Elena Ferrante, escritora e feminista que admiro, a segurança da paz e do silêncio sufoca-nos.

2 de maio de 2020

— Se eu antes já não conhecia ninguém, como é que vou fazer agora?
— E antes, como é que fazias?
— Então, antes podíamos ir onde quiséssemos, havia coisas a acontecer, podíamos sair.
— E saías?

29 de abril de 2020

Speed-dating

o mundo está num dos seus alvoreceres e em breve chegará a enxurrada que nos levará a todos até à noite dos tempos. fico à janela, como noutra época as moças ficavam, e olho para a parede da casa do outro lado, para o jardim e para a nespereira, para os pombos, para o lago, para as mulheres que fumam à esquina da rua ouvindo caladas os homens gritar. dou comida aos pombos, dou-lhes muito pão, não quero que a enxurrada os leve com fome. nisto, vou ensaiando a história da minha vida. há dias em que me perco, já não sei se o que conto está antes ou depois do que acabei de contar. por vezes pareço ter tido uma vida extraordinária, se não em fama e glória, e menos ainda em felicidade, pelo menos em acontecimentos verdadeiramente raros, e acabo por perguntar-me «e depois, o que aconteceu?», mas não tenho resposta. a maioria das vezes, contudo, a história da minha vida é demasiado curta. em grande antecipação, abro os diários e encontro sempre alguma coisa que não vivi.

28 de abril de 2020

Assisti a muitas mortes. Conheço os campos de batalha onde até os cães são rasgados de alto a baixo e, ainda assim, a vida perdura. Vem deles um silêncio conspirativo que acabou por me corroer. O que se salvou, tem a resistência dos astros e escreve.

27 de abril de 2020

Em 2015, quando rebentou a crise dos refugiados, estive disposta a abandonar tudo — casa, trabalho, cidade, família, país, língua, segurança — para trabalhar como voluntária em operações de salvamento no mar, assistência nas rotas terrestres e no acolhimento e integração de refugiados. Em 2020, quando a pandemia chegou a Portugal, fechei-me em casa sozinha com víveres para duas semanas em estado de terror pelo eventual contacto com a rua e com as pessoas lá fora. Li artigos de enfiada tanto de filósofos como de autoridades de saúde, avisando quer sobre a atual ameaça de novos totalitarismos, quer sobre formas eficazes de proteção. Ainda leio. Em minha defesa não posso senão dizer o seguinte: foi apenas em dezembro passado que estive duas semanas de cama com uma gripe que incluiu episódios de febre de 40º, vómitos, tosse (uma tosse que que durou mais de dois meses) e total incapacidade de me mexer para o que quer que fosse. Nessa altura escrevi o seguinte:

A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu". E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação, é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.

Quando o vírus chegou, dei por mim a dizer frases como «Não quero saber se é Covid ou outra coisa qualquer, não quero é ficar doente outra vez.» Não pensei uma única vez que poderia morrer. O que me deixava em total estado de horror, era a possibilidade de voltar à cama com febre. Não só de padecer de algum sofrimento atroz, mas sobretudo, a possibilidade de voltar a ter de enfrentar a violenta construção de uma narrativa, ao ponto de poder mudar radicalmente a minha história. O sofrimento passa, as histórias ficam connosco. E digo bem, enfrentar, pois é de um duelo que se trata, um duelo com fantasmas, formas, signos, sombras, imagens de uma temporalidade desagregada. Essas imagens não trazem qualquer ameaça a quem morre, mesmo a quem morre depois de passar por elas, pelo menos para mim, que acredito no total esgotamento da existência depois da morte. Mas trazem a quem lhes sobrevive, a ameaça de, ao delas regressar, dar de caras com uma vida silenciosa.

26 de abril de 2020

Ao contrário dos livros, as fotografias não eram, inicialmente, catalogadas ou incluídas em registos bibliográficos, mas simplesmente arquivadas. E, por vezes, tinham de esperar mais de cem anos até serem observadas uma segunda vez. (...).
Quando as férias de Verão são registadas em vários milhares de imagens, e a vida de um bebé recém-nascido documentada fotograficamente dia após dia, tal tem pouco que ver com a criação de uma memória visual, e mais com a institucionalização social de um espaço do esquecimento. É justamente porque as imagens estão disponíveis em tão grande número que a recordação e a memória, que poderiam estruturá-las e conferir-lhes uma forma, têm um papel secundário. Porque as imagens não existem, de modo algum, para ser recordadas. O simples facto de estarem disponíveis já é suficiente. Os depósitos virtuais são sobretudo arquivos visuais do esquecimento.

Bernd Stiegler, Fotografia e esquecimento.
(...) quero dizer que a língua em que me seria, talvez, dado não apenas escrever, mas pensar, não é nem o latim, nem o italiano, nem o espanhol, mas uma língua de que não conheço uma só palavra, uma língua com que as coisas mudas me falam e na qual deverei talvez um dia, do fundo da campa, justificar-me perante um juiz desconhecido.

Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lorde Chandos.