17 de agosto de 2017

sinto-me próxima das ervas que rompem a calçada, o alcatrão e o cimento, mais do que das pessoas e dos animais com quem me cruzo na rua, à exceção talvez de algum gato fugitivo. são também essas ervas que procuro nas fotografias das cidades, como se sem elas a cidade não passasse de uma ilusão, de um conto de fadas que me é sugerido com eloquência, mas deixa um rasto de incredulidade. por toda a parte as árvores morrem, mas estas ervas continuam a nascer nas paredes dos prédios, na margem dos passeios e à porta das casas, como se não passasse ninguém, como se ninguém as pisasse. crescem timidamente e, porém, portam nelas toda a violência da natureza e a inutilidade de a domar. o que seria de nós sem elas, insolucionáveis e incivilizadas, prontas a crescer sem medida por toda a parte? sou como essas ervas, daninhas ou não, irrompendo sem prudência, por vezes inconveniente, distraída da minha vulnerabilidade.

16 de agosto de 2017

em determinadas condições de tempo e de lugar, o corpo, negro, harmonioso e furtivo, é como um vocação de que ninguém se lembra entre as pequenas coisas. para além do amor, em silêncio, assim viverá connosco, mesmo quando sobre ele vier a desgraça, e trabalhará infatigavelmente para obter a sua própria imagem. anda e canta e agita os braços em explosões de riso até cair, a horas imprevistas, no meio do chão vazio como no meio de um campo vazio. nenhum desejo oculto: a mais viva curiosidade regula-o dentro da sua própria irrealizada treva.

14 de agosto de 2017

Lean On Me

depois de dançarmos toda a noite
mergulhamos confusas sob as estrelas
recordando o que foi.
acordou sem nome a meio da noite de pesadelos demasiado reais nos quais se movia voluntariamente e, deslumbrada, como se lhe fosse revelada uma língua nova, lembrou-se primeiro do nome dela e só depois do seu. abriu a janela, o vento soprava quente, ouviam-se vozes longínquas, a lua iluminava os telhados como se proibisse um segredo e, enquanto a olhava, sentiu que não gostava de ter Lúcia entre as suas recordações. deambulou ao acaso pela casa, suspeitando que estava a mentir. bebeu água como se estivesse a espantar demónios e voltou à cama, onde os lençóis brancos desfeitos lhe pareceram acolhedores. esperou pela manhã sem esperança de voltar a adormecer. lembrava-se da língua dela na sua boca, de um terror imprevisto que deu lugar a um frémito ousado, da mão frágil e em brasa como um chicote. detestava a ideia de ser apenas ela a ter aquelas recordações e teve vontade de rir, um riso sarcástico que a fez apertar o estômago até sentir dor. como ácido, a obsessão desorientava-a reduzindo-a a um animal ferido em fuga e esvaziando-a. teve medo de não voltar a sentir aquilo outra vez mas reconfortava-a o seu desaparecimento, era quase como viver com um fantasma, inócuo como a sombra de um nome. secretamente contudo, havia reflexo dele nas suas intenções: talvez não voltasse a vê-la mas sabia que não podia recuar e voltar a amar um homem. sucumbia assim a uma juventude tardia, alegre e insensata, que a atingia em cheio desfazendo a tensão. com os olhos no teto, depois do esgotamento, viu-se na posse do seu corpo violando todas as proibições sem punição, sem ameaça e sem culpa.
Ninguém pode querer sem fazer. E com isto eu não quero apenas dizer a execução deve seguir o querer, o que é já uma boa máxima de prática; quero dizer que a execução deve preceder a prática. Como assim? (...). Que o homem aja antes de querer, é o que é evidente pela infância. O homem nada no universo desde que foi lançado nele e nunca, de maneira nenhuma, se poderá retirar dele. A acção real está, portanto, sempre começada.

Alain, Minerve ou la sagesse.

13 de agosto de 2017

V.

o teu rosto
selvagem recordação

12 de agosto de 2017

«agora a minha vida vai mudar», pensou, inebriado de ideias. pegou num caderno para as anotar a todas, por prioridade, e dedicou-se imediatamente à primeira. depois da melancolia dos últimos meses, era uma lufada de ar fresco, vinda não sabia de onde nem porquê. cheio de confiança, a passagem do tempo deixou de o angustiar e o tédio desapareceu, substituído por sucessivas epifanias. parecia-lhe que tinha a vida toda na mão, o passado e o futuro flutuavam como nuvens inofensivas num céu soalheiro. o raciocínio desenvolvia-se com rapidez e leveza, o mundo adquiria densidade e a sua vida um significado, cujos problemas pareciam ter-se afogado num poço longínquo, reservado dos olhares. com certa estupefação, observou que nada daquilo era novo: as ideias que tinha transposto no papel estavam a ser cozinhadas há anos, sem terem tido, contudo, força para ver a luz do dia. portanto, pensava, porquê agora e não antes? que sinal impercetível havia sido agente da mudança? extenuado pela ausência de resposta, temendo que a inspiração desaparecesse, reduziu a lista a duas coisas, e continuou a elaborar planos para concretizar a primeira das prioridades. nisto, por e-mail, chegou-lhe uma carta relacionada com a ideia. a felicidade inundava-o, começou a pesquisar na internet, lembrou-se de livros, imaginou uma resposta à carta totalmente arquitetada, eloquente e sagaz. sem vontade de se arredar dos seus projetos, quando o telefone tocou não atendeu. até a solidão tinha agora um sentido, pensou, sem sentimentos de culpa por se isolar. fez um chá, nunca fazia chá. gostava das pessoas que faziam chá mas achava a bebida insípida e a preparação aborrecia-o. naquele momento, porém, o ritual deu-lhe oportunidade para pensar na sua ideia afastado do computador e, por isso, apreciou-o. enquanto bebia, no entanto, ocorreu-lhe que o melhor talvez fosse beber álcool. sim, sem dúvida, o álcool contribuiria para a inspiração, e saiu em direção à loja do nepalês, a única que àquela hora se encontrava aberta. comprou um whisky de má qualidade e juntou-lhe pedras de gelo em abundância. estava divino. três copos depois, a profusão de ideias voltou e lembrou-se dela. os anos de silêncio que os separavam não impediram que a atração inicial se mantivesse, uma espécie de sortilégio movediço onde se deleitava. ao olhar para uma fotografia guardada no computador, esmoreceu. como era bela e dócil no seu vestido azul, sorrindo e movendo-se como se existisse apenas para ele. olhava para a fotografia com o mesmo ímpeto das últimas horas, perguntando-se o que aconteceria se voltasse a contactá-la. teria o mesmo número, o mesmo e-mail? não importava, procurá-la-ia estrada fora até a encontrar. com certeza ficaria contente de o rever, com certeza, se a atração permanecia nele, também a alimentava a ela. desligou o computador e levantou-se, inundado por uma espécie de beatitude, determinado em reaver o tempo perdido. já deitado, pegou no telefone e, ao ver o nome dela inscrito sobre o ecrã, todos os planos que pareciam ter finalmente arrancado se desfizeram como poeira passageira.

11 de agosto de 2017

Adiamos as perguntas decisivas, fazendo ininterruptamente perguntas ridículas, inúteis e infames e, quando fazemos as perguntas decisivas, é tarde de mais. Toda a vida vamos adiando as grandes perguntas, até que elas se tornam uma cordilheira de perguntas e nos obscurecem. Mas nessa altura é tarde de mais. Devíamos ter a coragem (face àqueles a quem temos de perguntar, como face a nós próprios) de os atormentar com perguntas, sem consideração nenhuma, implacavelmente, não os poupar não os burlar com a complacência. Ficamos arrependidos de não termos perguntado nada, quando aquele a quem tínhamos de perguntar já não pode ouvir essas perguntas, já está morto. Mas mesmo que tivéssemos feito todas as perguntas, teríamos obtido nem que fosse uma única resposta? Nós não aceitamos a resposta, nenhuma resposta, não podemos fazê-lo, não devemos, assim é a disposição da nossa sensibilidade e o nosso estado de espírito, assim é o nosso ridículo sistema, assim é a nossa existência, o nosso pesadelo. 

Thomas Bernhard, Autobiografia — O Frio.

6 de agosto de 2017

nos minutos que separavam o colégio de casa habituei-me a procurar caminhos novos, estar atenta aos detalhes e usufruir de um silêncio reconfortante. começávamos o dia com orações e os crucifixos, freiras e esculturas de santos eram omnipresentes. a pureza de espírito e a vida monástica eram preconizadas e, entre esse mundo e o exterior, a violência, o mutismo e a solidão marcavam a diferença. não precisei de muito tempo para descobrir que o meu espírito não era puro mas sim desafiador, provocatório e barroco, estimulado pela observação do que há de mais trivial no mundo em contraponto ao que, embora quotidianamente apregoado, não podia experienciar. mesmo quando pensei em ser freira, era como se o desígnio fosse uma dança invisível onde era protagonista e, assim, mal a madre diretora me perguntou, aos seis anos, se tinha sido chamada, respondi ruborizada que não, ao que ela sorriu e me fez um sinal de cruz na testa dizendo que podia repeti-lo sempre que estivesse triste. não senti nada, nenhuma manifestação de uma entidade superior, nenhum alívio, nenhuma esperança e, se é verdade que voltei a repeti-lo numas poucas vezes de maior angústia, também é verdade que rapidamente me dispensei de ter sido abençoada, consciente de que o significado do gesto era vazio. era nesses momentos de libertação que o meu futuro se abria, desconhecido e vasto. com o passar do tempo, mais as minhas amigas pareciam devotas, indo à missa todos os domingos e participando com entusiasmo nas atividades dos escuteiros e das guias — onde havia mais orações a rezar —, mais me desinteressava, acabando por fim por fazê-lo com sacrifício até conseguir convencer a minha mãe a não ir. antes, contudo, cheguei a chefe nas guias e fugi do desejo dos rapazes nos escuteiros, ocasiões de protagonismo que já chegavam esgotadas. em casa, entretanto, desenhava, lia tudo aquilo a que podia deitar a mão, ouvia música. quando o meu pai se foi embora, a relação com a minha mãe tornou-se conflituosa, de modo que uma violência foi substituída por outra, esta, no entanto, onde tentava ter uma voz. tornei-me uma adolescente revoltada, diligente e astuta, com apenas um objetivo em mente: ir-me embora. sonhava conhecer o mundo e balançava entre fazer justiça e desobedecer aos códigos. nisto, surgiu a escrita, que, apesar de já me acompanhar há algum tempo, começava a impor-se. precisamente por essa razão, na véspera de sair da cidade para ir estudar, destruí todos os cadernos, temendo levar para a minha fuga alguma recordação daqueles anos. queria escrever, mas livre da minha história oficial, onde a banalidade não podia ser resgatada.

5 de agosto de 2017

3 de agosto de 2017

um amigo contou-me ontem uma história extraordinária. quando era um miúdo com cerca de 6 anos de idade, costumava passar por um acampamento de ciganos, perto da sua casa. certo dia, a irmã foi fazer-lhes uma doação de roupa e o pequeno acompanhou-a. ao fundo do acampamento, viu uma menina, morena e de olhos verdes, que devia ter a mesma idade. viu-a ele e viu-o ela. dias depois, voltou a passar pelo acampamento para a ver e tentar meter conversa, mas não a encontrou mais. entretanto, o acampamento foi levantado e os ciganos desapareceram. cinquenta anos depois, numa visita à feira de Carcavelos para comprar roupa, o meu amigo para numa banca e vê uma mulher morena de olhos verdes que o vê a ele também. reconhecem-se e falam pela primeira vez, como se fossem amigos há muitos anos. quando ouço estas histórias, penso sempre que ninguém as acreditaria se as inventasse. mas a vida é isto, encontros e desencontros feitos apenas de olhares remotos e de gestos ínfimos que estão na sombra e cuja intensidade, contudo, é de uma beleza pungente.

31 de julho de 2017

"Parar de escrever significaria cair de novo no pânico da infância, ao passo que achar continuamente a palavra justa traz a perspetiva de transcender uma vida carregada de más recordações."

W. G. Sebald, A Descrição da Infelicidade — Imagens claras, imagens escuras.

30 de julho de 2017

(...) as imagens que constantemente preenchem a fantasia masculina, no público feminino suscitam quando muito um interesse menor e quase sempre um sentimento de ennui.

W. G. Sebald, A Descrição da Felicidade — O homem do sobretudo.

29 de julho de 2017

cansado da viagem, Luís Salvaterra saiu do autocarro e procurou uma esplanada onde pudesse beber qualquer coisa fresca. encontrou-a do outro lado da rua, vazia e à sombra. comprou o jornal e sentou-se à espera do empregado, que chegou alguns minutos depois. «o que vai ser chefe?», perguntou-lhe. «uma água das pedras com limão e um café curto por favor», respondeu. enquanto ali esteve, não chegou a abrir o jornal. um pequeno pássaro que, sozinho, procurava comida nas mesas, um gato amarelo que passou a fugir do outro lado da rua, uma mulher alta de saia curta que passou lentamente na calçada a olhar para o telemóvel e o vai-e-vem à entrada da estação de comboios, obtiveram toda a sua atenção. tinha ainda que procurar uma pensão. o empregado aconselhou uma no centro da cidade, perto do rio. de jornal debaixo do braço, Luís procurou-a pelas ruas desconhecidas. o prazer de nunca as ter percorrido e, ainda assim, serem vagamente familiares, penetrava o seu ânimo. o rio era verde, com um leito razoavelmente largo e alguns peixes. atravessando uma ponte, chegava-se a um jardim. esta devia ser a vista da pensão, se tivesse sorte. nenhum destino poderia ser mais feliz do que aquele, pensou. para quê seguir os turistas para uma cidade europeia qualquer ou escolher lugares inóspitos? amanhã daria uma volta pela cidade, visitaria o mosteiro e talvez lesse o jornal. deitado na cama do seu quarto sobre uma grossa colcha branca enquanto apreciava o silêncio do crepúsculo, sentiu fome e decidiu escolher ao jantar um prato que nunca tivesse experimentado.