6 de maio de 2017
quero ir numa exploração à Mongólia, caminhar em silêncio contra mil ventos, apagando aos poucos a lembrança de onde vim e fixar o horizonte como uma eternidade sem destino. lá, serei como o cavalo, sábio e forte, encostarei a cara à terra, cuja modulação erótica e apocalíptica me atacará ferozmente, emocionando-me como uma ausência. a alucinação dos sons bate-me no corpo e o seu ritmo, árido e metafísico, leva-me ao fundo do tempo onde há carência de tudo menos da morte. caminharei com um amigo em silêncio, comerei com ele, e, juntos, inventaremos a alegria que ninguém toca por ser uma perigosa proliferação de universos. quando voltar, deixarei a mão direita no meu lugar, com a sua vocação para viver entre a germinação das formas. não procurarei ninguém e ninguém me procurará. sento-me à varanda da minha casa a apreciar a nespereira do jardim diante carregada de fruta que cairá antes de ser colhida, e tudo — sol, céu, nuvem, chuva, calor e frio —, será como uma anunciação.
Como
o ruído era para ele, antes da surdez, a forma perceptível que a causa
de um movimento revestia, os objetos movidos sem ruído parecem sê-lo sem
causa; despojados de toda a qualidade sonora, mostram uma atividade
espontânea, parecem viver; movem-se, imobilizam-se, pegam fogo sozinhos.
Sozinhos levantam voo como os monstros alados da Pré-história.
Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, volume III – O lado de Guermantes.
Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, volume III – O lado de Guermantes.
1 de maio de 2017
uma temporalidade desesperada torna-se real e a sua beleza preenche a distância. olho-me ao espelho e um rosto enigmático mostra-me o animal dilacerado pela imaginação. somos admitidos na luz febril da manhã e a sua multidão de sombras tempestuosas abre uma estrada eterna. não toco em nada. nos confins do mundo, procuro a violência, a morte. transporto um pesado, inquietante silêncio. o êxtase vem e o meu corpo aprova mas a minha consciência está perturbada. insensata e maliciosa, uma palavra precipita-se e ganha forma, como um incêndio.
22 de abril de 2017
uma parcela de escuridão deveio uma forma maravilhosa, sagrada,
absoluta. não foi fácil conservar a sua limpidez, a ponto de acreditar
que um dia não se adaptaria à pele. separados por não sei quantas
sílabas, mergulhados numa obscuridade que nenhuma luz deturpou, podemos
encontrar beleza numa forma que se prolonga até ao infinito. uma
frequência atual confere-lhe densidade, vem-me à ideia as cores frescas
de uma flor cujo nome está escondido no longínquo jardim. o segredo é só
esse: as mãos penetram o espaço sem noção do tempo, com profunda
modéstia, e substituem todos os encantos, com requinte.
21 de abril de 2017
a vida muda ao tornamo-nos mais conscientes de nós próprios. dentro da grande abstração, é bom ter noção de alguns contornos, como é bom abandonar o que não nos pertence, que é afinal o que os define. há uma atenção delicada, de minúcia, na hora certa, aquela em que vemos cair o que muito desejámos, com isso percebendo que o caminho permanece aberto, amplo, novo. e assim será ainda quando tivermos partido.
19 de abril de 2017
realizações puras evitam a ordem impressionante das coisas que esquecemos e rememoramos. logo adiante, um fogo angélico queima o sentido e a paz que dele decorre. fugimos para as montanhas altas, sempre com a esperança de não regressar aos poucos, limitados e famintos. o terreno é fértil, as canções silenciosas, o incrível desencontro sucede-nos, como um mão aflita. é preciso dizer que um órfão nos denunciava constantemente. qual seria o seu nome? em vão lhe perguntámos, em vão o ouvimos.
17 de abril de 2017
era terrível saber como naquele tempo a noite se misturava com o dia, os sonhos com a vigília, os animais com os espectros. assim, podíamos subitamente sair e entrar no dia e na noite, falar connosco como se com outrem, dormir acompanhados por mil rostos desconhecidos e, tal como os guardiões das casas, procurávamos destino. a solidão era, de todos os destinos, o mais raro e precioso e a comunhão era tácita, surpreendente. havia fé — atualmente inexplicável: certos momentos todos parávamos para escutar com uma devoção simples e completa. o futuro era um engenho acionado por uma palavra e, embora todos a soubéssemos, ninguém se atrevia a pronunciá-la. desconhecíamos a negra avalanche do impudor, desconhecíamos o peso das conquistas e das virtudes. falávamos, cada um, uma língua estrangeira, que, em pleno nada, compreendíamos. o ar, tépido e seco, cheirava a jasmim e a tempestade. como hoje.
10 de abril de 2017
como um pequeno sono sem sobressaltos, o inverno passou suavemente, com três dias de chuva intensa e trovoada passados inteiramente em casa a ler. a delicada rotina das estações impõe-se, o tempo foge e, quase sem darmos por isso, deixa em nós a sua marca. continuo a perguntar-me pelo que sou, mas já não pelo que serei. o passado está no seu casulo, o futuro é hoje e nem a alegria nem a tristeza o corrompem.
um poço vazio enche-se de água clara a cada vez que o teu olhar se dirige para mim. refletido nele, em segredo, o meu sorriso dirige-se para o fundo, onde um dragão entreabre e volta a fechar os olhos. sempre vígil, na humidade como na secura, nunca se oculta e nunca se abala. há entre nós um liame subtil, mas não sei o que lhe vai no coração. fico à espreita, procurando um sinal dele entre a sua impassibilidade. talvez sequer bata, talvez seja um produto da minha imaginação. a água clara sobe, o meu sorriso irrompe, oiço uma música ao longe que não sei de onde vem. será que também ele a ouve? nada sei sobre isso. ligada ao dragão imóvel o teu olhar volta a desviar-se. olho para o fundo do poço negro, e, não sei por que sortilégio, não posso partir.
9 de abril de 2017
que sentido têm estes ecos? aparências de corpos julgados necessários, do fundo da nossa vida a paralisia prossegue como uma fórmula mágica, indecifrável. dos caminhos extraio o inconcebível, o alarmante, o protesto, a brilhante obscuridade do pó, mas não posso caminhar. debruço-me sobre o labirinto de janelas, cansada e, ao mesmo tempo, renovada, sem sono, ainda assim, ingénua e crédula no despertar. separa-nos um instante, ao que dizem é a eternidade.
8 de abril de 2017
um tronco cujas extremidades se desconhecem arrancou em sentidos opostos e desenhou um círculo sobre si próprio. uma vez completo, o círculo revelou, com uma voz que não era a sua, que numa das suas extremidades se encontrava o ódio e na outra o amor. pasmado pela estranheza do que se mostrava, e através dela, o tronco soube de si próprio pela primeira vez e sentiu repugnância.
abandonar o que julgávamos certo coincide com a certeza da instabilidade, que é como um crédito ao vivo. o corpo nunca chega a ser nosso, nunca se chega a conhecer, nunca se torna verdadeiramente habitável. é uma forma em fuga, quer seja moldada pela alegria ou pelo desejo, quer pelo desespero ou pela incógnita. estamos tu e eu aqui e o espaço e o tempo habitam-nos, não os vemos, nada sabemos sobre eles. o coração bate, um pensamento fere, a mão move-se, como se encantada. desço à treva desse encanto muitas vezes como se pudesse encontrar algum indício de contornos. porém, não oiço nada e no regresso venho sempre mais leve, mais vazia. houvesse um encontro (haverá um encontro?) e pelo menos, ainda que brevemente, sentiria medo. poderíamos então ser loucos e sermos nós a trespassar o espaço e o tempo, sermos nós os encantadores, não termos hábitos, caminhar familiarmente entre os tigres da manhã, atentos e em repouso.
4 de abril de 2017
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