9 de novembro de 2014
8 de novembro de 2014
na noite em que os amigos a velaram, Alberto Velades apareceu com as suas suíças e cabelos negros e uma garrafa de vinho verde. de luto e encharcados, os amigos bebiam e trocavam olhares sem impaciência e sem solenidade. «era linda e fascinante», disse erguendo o copo e quebrando o silêncio
confuso que se tinha instalado. não tinha uma partícula de imaginação e
naquele momento teve pena. aquela rapariga alta e sombria, com olhos
desmesurados, em cuja homenagem erguia agora o seu copo, estava a
desaparecer rapidamente da sua memória tal como tinha
acabado de desaparecer do mundo. por enquanto, as lembranças dela
desfilavam a uma velocidade vertiginosa, precisamente o que lhe
transmitia a sensação de estarem a desaparecer irrevocavelmente, como se tudo o que lhe
dissesse respeito se escoasse para o ralo de um coração que tinha
deixado de bater para sempre.
não houve mais elegias. o pio de um mocho ou de um corvo foi seguido de um bater de asas. a neve inchava sobre a cidade. lá em baixo sobre o rio, vagas de bruma deslizavam como um mar etéreo, de singular vislumbre. «Vamos acabar por gelar aqui». entraram e Rosa, a única que tinha ficado dentro da casa, não levantou os olhos. tinha as mãos pousadas na cadeira, ao lado das coxas, um vestido de malha cinzento e o cabelo apanhado na nuca. sentaram-se ao lado dela. a sua tristeza denunciava desespero, um desespero que um tipo particular que tinha na origem a morte dos poetas. suponho que a avaliação desse tipo de desespero possa transmitir a ideia de uma mulher muito frágil e impotente, porventura até sem identidade. o que depois seria confirmado pela descrição da vida que Rosa Antunes levava, monótona e isolada. cruzar-se com ela era no entanto tudo menos aborrecido, muito embora cada vez mais lhe fosse difícil seguir as conversas, o que acontecia desde há muito mas apenas agora começava a tornar-se evidente, e assim, o isolamento ia-se confirmando, como um desígnio da Providência.
Alberto Velades sentou-se na fila de cadeiras alinhadas na parede da frente da entrada da sala, do lado direito de Rosa Antunes, que estava sentada atrás do caixão, abaixo da cabeceira, e quando, ao levantar a cabeça depois de se sentar, os seus olhos passaram brevemente pela mão direita de Rosa, imóvel, branca, delicada, Alberto Velades corou. Rosa não moveu o olhar mas viu e Alberto viu que Rosa viu. cada um na sua cadeira, os outros esperavam que os fantasmas gritassem. a claridade das velas desenhava massas de sombra negra no espaço, onde um cortejo de lembranças se mostrava num silêncio absoluto. atulhados de repulsa pelo pó dos corpos inanimados, guiados por aquele fogo lento, seria verosímil que esta ronda de amigos sonhasse. mas não havia na cena nem sonho nem mistério nem superstição. perante aquele navio à deriva sentiam-se apenas revoltados mas todos se pouparam ao crime de profanar o escândalo do seu reencontro.
no crepúsculo da alvorada a névoa tinha subido do rio, que já não se podia ver. Francisco Junqueira fumava cá fora observando como entre as ruínas e as teias de aranha a cidade era muito bela. quando Rosa se juntou a ele, disse-lhe: «Há uma certa atmosfera de liberdade nos funerais não achas?». Francisco não percebeu imediatamente. só depois do alarme, quando pôde captar todos os sinais do seu rosto, lhe sorriu de volta, lhe ofereceu um cigarro e respondeu: «De facto. Os mortos também se alimentam não é verdade?». «Como as mulheres de espelhos», disse Rosa, ainda a sorrir.
os outros juntaram-se ao ar livre, como para dar um pouco de descanso ao cadáver. um clarão avermelhado surgia atrás da bruma e os seus olhos brilhavam como jóias protegidas entre as pálpebras semicerradas. os pensamentos desconexos tinham-se dissipado com a noite. mesmo que por vezes incertos, a ligá-los num laço invisível mas sólido, sobreviviam os pormenores, delatores dos vastos ecos da beleza contra a mudez lúgubre da morte.
não houve mais elegias. o pio de um mocho ou de um corvo foi seguido de um bater de asas. a neve inchava sobre a cidade. lá em baixo sobre o rio, vagas de bruma deslizavam como um mar etéreo, de singular vislumbre. «Vamos acabar por gelar aqui». entraram e Rosa, a única que tinha ficado dentro da casa, não levantou os olhos. tinha as mãos pousadas na cadeira, ao lado das coxas, um vestido de malha cinzento e o cabelo apanhado na nuca. sentaram-se ao lado dela. a sua tristeza denunciava desespero, um desespero que um tipo particular que tinha na origem a morte dos poetas. suponho que a avaliação desse tipo de desespero possa transmitir a ideia de uma mulher muito frágil e impotente, porventura até sem identidade. o que depois seria confirmado pela descrição da vida que Rosa Antunes levava, monótona e isolada. cruzar-se com ela era no entanto tudo menos aborrecido, muito embora cada vez mais lhe fosse difícil seguir as conversas, o que acontecia desde há muito mas apenas agora começava a tornar-se evidente, e assim, o isolamento ia-se confirmando, como um desígnio da Providência.
Alberto Velades sentou-se na fila de cadeiras alinhadas na parede da frente da entrada da sala, do lado direito de Rosa Antunes, que estava sentada atrás do caixão, abaixo da cabeceira, e quando, ao levantar a cabeça depois de se sentar, os seus olhos passaram brevemente pela mão direita de Rosa, imóvel, branca, delicada, Alberto Velades corou. Rosa não moveu o olhar mas viu e Alberto viu que Rosa viu. cada um na sua cadeira, os outros esperavam que os fantasmas gritassem. a claridade das velas desenhava massas de sombra negra no espaço, onde um cortejo de lembranças se mostrava num silêncio absoluto. atulhados de repulsa pelo pó dos corpos inanimados, guiados por aquele fogo lento, seria verosímil que esta ronda de amigos sonhasse. mas não havia na cena nem sonho nem mistério nem superstição. perante aquele navio à deriva sentiam-se apenas revoltados mas todos se pouparam ao crime de profanar o escândalo do seu reencontro.
no crepúsculo da alvorada a névoa tinha subido do rio, que já não se podia ver. Francisco Junqueira fumava cá fora observando como entre as ruínas e as teias de aranha a cidade era muito bela. quando Rosa se juntou a ele, disse-lhe: «Há uma certa atmosfera de liberdade nos funerais não achas?». Francisco não percebeu imediatamente. só depois do alarme, quando pôde captar todos os sinais do seu rosto, lhe sorriu de volta, lhe ofereceu um cigarro e respondeu: «De facto. Os mortos também se alimentam não é verdade?». «Como as mulheres de espelhos», disse Rosa, ainda a sorrir.
os outros juntaram-se ao ar livre, como para dar um pouco de descanso ao cadáver. um clarão avermelhado surgia atrás da bruma e os seus olhos brilhavam como jóias protegidas entre as pálpebras semicerradas. os pensamentos desconexos tinham-se dissipado com a noite. mesmo que por vezes incertos, a ligá-los num laço invisível mas sólido, sobreviviam os pormenores, delatores dos vastos ecos da beleza contra a mudez lúgubre da morte.
Não seria possível sugerir de modo mais claro que as cartas jamais
entregues são a cifra de eventos felizes que poderiam ter acontecido,
mas não se realizaram. O que se realizou é, ao invés, a possibilidade
contrária. A carta, o ato de escritura, assinala, na tabuleta do escriba
celeste, a passagem da potência ao ato, o verificar-se de um
contingente. Mas, justo por isso, toda carta assinala também o não
acontecer de algo, é também, nesse sentido, sempre carta morta.
Giorgio Agamben
Giorgio Agamben
Ao contrário do que o frei bento domingues disse ao antónio lobo
antunes, "não vou ao cemitério porque não está lá ninguém", eu vou
precisamente por isso, ruas e ruas sem viv'alma até se perderem lá ao
fundo no rio por entre os contentores dos cargueiros azuis, os ciprestes
empurram-nos para uma verticalidade, e as ruas descem a pique, não há
nada que seja deitado no cemitério e é lá que se respira fundo ao longo
da estrada e se assobia de volta a casa (é ao virar da esquina).
Encontro aberta a drogaria cujo dono tinha morrido de velho (ainda lhe
comprei uma pá e uma vassoura) e há meses se encontrava fechada com os
alguidares todos lá dentro, os diluentes, as ceras acrílicas, o mosaico
hidráulico, e um letreiro na porta a dizer "trespassa-se". E agora de
novo aberta, e não reabriu para uma loja com aquelas ideias de
ser-outra-coisa-com-o-que-já-tinha, tipo livraria com baldes pendurados
em volta, ou café enfeitado a bisnagas de brilhantina, não, continuou a
ser drogaria, com as mesmas coisas que lá estavam, apenas com uma pessoa
diferente atrás do balcão. É simples, acaba a lixívia, repõem-se a
lixívia. Soy un hombre feliz, y quiero que me perdonen por este día los
muertos, de mi felicidad.
Miguel Castro Caldas
Miguel Castro Caldas
4 de novembro de 2014
1. caminhar em cima das águas
É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente. Tornou-se um número de circo - aquele equilíbrio no arame que mata o apetite de vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana. A última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez mais me devoto às imobilidades, aos silêncios, aos sonos.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente. Tornou-se um número de circo - aquele equilíbrio no arame que mata o apetite de vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana. A última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez mais me devoto às imobilidades, aos silêncios, aos sonos.
Herberto Helder, Photomaton & Vox
Na terra natal tudo se torna subitamente contemporâneo. O que está em cima já não parece estar a meio, o que está em baixo já não parece estar diante e o que está atrás reflete-se na nitidez do que se esboça à frente. Não apetece falar porque só apetece viver. Tenho aqui num pequeno espaço secreto onde não possuo nada e nada me falta, onde encontro uma solidão ainda terna, de grande amplitude, à qual me recolho sempre que a outra me faz soçobrar. Viver, estar em silêncio. A mais pura forma de contemplação é aqui participação, ação, e o gesto mais audaz reveste-se da quietude que marca. No entanto, o ódio da minha origem não se amenizou com o tempo ou com a distância. Que rudimentares são as nossas emoções. Repugna-me a ideia de uma reconciliação, não porque para alimentar essa ilusão narcisista haja necessariamente que tecer laços hipócritas, que haveria, mas porque a origem é a catástrofe a partir da qual a vida recomeça. Apenas do material que sobreviveu, respeitando a gradação das suas temperaturas sensíveis, se pode criar o amanhã.
2 de novembro de 2014
furtivo e mítico, o perfume do betão assemelha-se a uma mistura de jóias e tecidos. tem origem em jardins em miniatura, em constante confronto com o coração das paisagens, onde um fogo escrupuloso arde em consagração à mîse en abyme dos sentidos no espaço. podemos pressenti-lo à superfície de temperamentos mutantes e discretos, que guardam indeléveis traços de paradigmas corporais, como a densidade da dança. entre as suas propriedades encontram-se pouca luz, brutalidade, cigarros e uma língua estrangeira e um dos seus efeitos é a superação da experiência, transformada em trivial, adaptada, inevitável.
sei menos que um animal que guarda a sua distância de aviso na vida. quem parte também aprende isso. e quantas vezes se parte? a cada instante, digo-me. debaixo da pele estão as casas, catástrofes que povoam o espaço como constelações minuciosas, cardíacas. são catástrofes prenunciadas, não como consequências de eventos externos, mas como revelações cujos ciclos de repetição, rotina, regularidade tranquilizadora, lidam com o inquérito repetitivo que impregna os vestígios da memória que nos perseguem. de forma extrema talvez, embora os seus recursos sejam escassos, a orgânica dessas catástrofes é paradoxal: o seu posicionamento não é localizável e mantêm com o espaço uma relação de analogia virtual, apenas existente em potência e nunca em facto.
1 de novembro de 2014
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