8 de novembro de 2014

na noite em que os amigos a velaram, Alberto Velades apareceu com as suas suíças e cabelos negros e uma garrafa de vinho verde. de luto e encharcados, os amigos bebiam e trocavam olhares sem impaciência e sem solenidade. «era linda e fascinante», disse erguendo o copo e quebrando o silêncio confuso que se tinha instalado. não tinha uma partícula de imaginação e naquele momento teve pena. aquela rapariga alta e sombria, com olhos desmesurados, em cuja homenagem erguia agora o seu copo, estava a desaparecer rapidamente da sua memória tal como tinha acabado de desaparecer do mundo. por enquanto, as lembranças dela desfilavam a uma velocidade vertiginosa, precisamente o que lhe transmitia a sensação de estarem a desaparecer irrevocavelmente, como se tudo o que lhe dissesse respeito se escoasse para o ralo de um coração que tinha deixado de bater para sempre.
não houve mais elegias. o pio de um mocho ou de um corvo foi seguido de um bater de asas. a neve inchava sobre a cidade. lá em baixo sobre o rio, vagas de bruma deslizavam como um mar etéreo, de singular vislumbre. «Vamos acabar por gelar aqui». entraram e Rosa, a única que tinha ficado dentro da casa, não levantou os olhos. tinha as mãos pousadas na cadeira, ao lado das coxas, um vestido de malha cinzento e o cabelo apanhado na nuca. sentaram-se ao lado dela. a sua tristeza denunciava desespero, um desespero que um tipo particular que tinha na origem a morte dos poetas. suponho que a avaliação desse tipo de desespero possa transmitir a ideia de uma mulher muito frágil e impotente, porventura até sem identidade. o que depois seria confirmado pela descrição da vida que Rosa Antunes levava, monótona e isolada. cruzar-se com ela era no entanto tudo menos aborrecido, muito embora cada vez mais lhe fosse difícil seguir as conversas, o que acontecia desde há muito mas apenas agora começava a tornar-se evidente, e assim, o isolamento ia-se confirmando, como um desígnio da Providência.
Alberto Velades sentou-se na fila de cadeiras alinhadas na parede da frente da entrada da sala, do lado direito de Rosa Antunes, que estava sentada atrás do caixão, abaixo da cabeceira, e quando, ao levantar a cabeça depois de se sentar, os seus olhos passaram brevemente pela mão direita de Rosa, imóvel, branca, delicada, Alberto Velades corou. Rosa não moveu o olhar mas viu e Alberto viu que Rosa viu. cada um na sua cadeira, os outros esperavam que os fantasmas gritassem. a claridade das velas desenhava massas de sombra negra no espaço, onde um cortejo de lembranças se mostrava num silêncio absoluto. atulhados de repulsa pelo pó dos corpos inanimados, guiados por aquele fogo lento, seria verosímil que esta ronda de amigos sonhasse. mas não havia na cena nem sonho nem mistério nem superstição. perante aquele navio à deriva sentiam-se apenas revoltados mas todos se pouparam ao crime de profanar o escândalo do seu reencontro.
no crepúsculo da alvorada a névoa tinha subido do rio, que já não se podia ver. Francisco Junqueira fumava cá fora observando como entre as ruínas e as teias de aranha a cidade era muito bela. quando Rosa se juntou a ele, disse-lhe: «Há uma certa atmosfera de liberdade nos funerais não achas?». Francisco não percebeu imediatamente. só depois do alarme, quando pôde captar todos os sinais do seu rosto, lhe sorriu de volta, lhe ofereceu um cigarro e respondeu: «De facto. Os mortos também se alimentam não é verdade?». «Como as mulheres de espelhos», disse Rosa, ainda a sorrir.
os outros juntaram-se ao ar livre, como para dar um pouco de descanso ao cadáver. um clarão avermelhado surgia atrás da bruma e os seus olhos brilhavam como jóias protegidas entre as pálpebras semicerradas. os pensamentos desconexos tinham-se dissipado com a noite. mesmo que por vezes incertos, a ligá-los num laço invisível mas sólido, sobreviviam os pormenores, delatores dos vastos ecos da beleza contra a mudez lúgubre da morte.