9 de novembro de 2014

(...) deslumbrados pelo brilho da sua própria virtude, um brilho que certamente não dura muito (pois toda a virtude, salvo na brevidade do reconhecimento, carece de brilho e vive numa caverna escura rodeada de outros habitantes, alguns muito perigosos), (...).

Roberto Bolaño, 2666

8 de novembro de 2014

na noite em que os amigos a velaram, Alberto Velades apareceu com as suas suíças e cabelos negros e uma garrafa de vinho verde. de luto e encharcados, os amigos bebiam e trocavam olhares sem impaciência e sem solenidade. «era linda e fascinante», disse erguendo o copo e quebrando o silêncio confuso que se tinha instalado. não tinha uma partícula de imaginação e naquele momento teve pena. aquela rapariga alta e sombria, com olhos desmesurados, em cuja homenagem erguia agora o seu copo, estava a desaparecer rapidamente da sua memória tal como tinha acabado de desaparecer do mundo. por enquanto, as lembranças dela desfilavam a uma velocidade vertiginosa, precisamente o que lhe transmitia a sensação de estarem a desaparecer irrevocavelmente, como se tudo o que lhe dissesse respeito se escoasse para o ralo de um coração que tinha deixado de bater para sempre.
não houve mais elegias. o pio de um mocho ou de um corvo foi seguido de um bater de asas. a neve inchava sobre a cidade. lá em baixo sobre o rio, vagas de bruma deslizavam como um mar etéreo, de singular vislumbre. «Vamos acabar por gelar aqui». entraram e Rosa, a única que tinha ficado dentro da casa, não levantou os olhos. tinha as mãos pousadas na cadeira, ao lado das coxas, um vestido de malha cinzento e o cabelo apanhado na nuca. sentaram-se ao lado dela. a sua tristeza denunciava desespero, um desespero que um tipo particular que tinha na origem a morte dos poetas. suponho que a avaliação desse tipo de desespero possa transmitir a ideia de uma mulher muito frágil e impotente, porventura até sem identidade. o que depois seria confirmado pela descrição da vida que Rosa Antunes levava, monótona e isolada. cruzar-se com ela era no entanto tudo menos aborrecido, muito embora cada vez mais lhe fosse difícil seguir as conversas, o que acontecia desde há muito mas apenas agora começava a tornar-se evidente, e assim, o isolamento ia-se confirmando, como um desígnio da Providência.
Alberto Velades sentou-se na fila de cadeiras alinhadas na parede da frente da entrada da sala, do lado direito de Rosa Antunes, que estava sentada atrás do caixão, abaixo da cabeceira, e quando, ao levantar a cabeça depois de se sentar, os seus olhos passaram brevemente pela mão direita de Rosa, imóvel, branca, delicada, Alberto Velades corou. Rosa não moveu o olhar mas viu e Alberto viu que Rosa viu. cada um na sua cadeira, os outros esperavam que os fantasmas gritassem. a claridade das velas desenhava massas de sombra negra no espaço, onde um cortejo de lembranças se mostrava num silêncio absoluto. atulhados de repulsa pelo pó dos corpos inanimados, guiados por aquele fogo lento, seria verosímil que esta ronda de amigos sonhasse. mas não havia na cena nem sonho nem mistério nem superstição. perante aquele navio à deriva sentiam-se apenas revoltados mas todos se pouparam ao crime de profanar o escândalo do seu reencontro.
no crepúsculo da alvorada a névoa tinha subido do rio, que já não se podia ver. Francisco Junqueira fumava cá fora observando como entre as ruínas e as teias de aranha a cidade era muito bela. quando Rosa se juntou a ele, disse-lhe: «Há uma certa atmosfera de liberdade nos funerais não achas?». Francisco não percebeu imediatamente. só depois do alarme, quando pôde captar todos os sinais do seu rosto, lhe sorriu de volta, lhe ofereceu um cigarro e respondeu: «De facto. Os mortos também se alimentam não é verdade?». «Como as mulheres de espelhos», disse Rosa, ainda a sorrir.
os outros juntaram-se ao ar livre, como para dar um pouco de descanso ao cadáver. um clarão avermelhado surgia atrás da bruma e os seus olhos brilhavam como jóias protegidas entre as pálpebras semicerradas. os pensamentos desconexos tinham-se dissipado com a noite. mesmo que por vezes incertos, a ligá-los num laço invisível mas sólido, sobreviviam os pormenores, delatores dos vastos ecos da beleza contra a mudez lúgubre da morte.
Não paro de vos escrever, mas vocês não se lembram de mim. Mas eu faço a minha parte de vos escrever e não paro de vos ter presentes (na minha mente) e de vos trazer no coração. Mas vocês nunca escreveram de volta, falando da vossa saúde, de como estão. Estou preocupado convosco porque, apesar de receberem frequentemente cartas minhas, nunca escrevem de volta para que saiba de vocês.
Não seria possível sugerir de modo mais claro que as cartas jamais entregues são a cifra de eventos felizes que poderiam ter acontecido, mas não se realizaram. O que se realizou é, ao invés, a possibilidade contrária. A carta, o ato de escritura, assinala, na tabuleta do escriba celeste, a passagem da potência ao ato, o verificar-se de um contingente. Mas, justo por isso, toda carta assinala também o não acontecer de algo, é também, nesse sentido, sempre carta morta.

Giorgio Agamben
Ao contrário do que o frei bento domingues disse ao antónio lobo antunes, "não vou ao cemitério porque não está lá ninguém", eu vou precisamente por isso, ruas e ruas sem viv'alma até se perderem lá ao fundo no rio por entre os contentores dos cargueiros azuis, os ciprestes empurram-nos para uma verticalidade, e as ruas descem a pique, não há nada que seja deitado no cemitério e é lá que se respira fundo ao longo da estrada e se assobia de volta a casa (é ao virar da esquina). Encontro aberta a drogaria cujo dono tinha morrido de velho (ainda lhe comprei uma pá e uma vassoura) e há meses se encontrava fechada com os alguidares todos lá dentro, os diluentes, as ceras acrílicas, o mosaico hidráulico, e um letreiro na porta a dizer "trespassa-se". E agora de novo aberta, e não reabriu para uma loja com aquelas ideias de ser-outra-coisa-com-o-que-já-tinha, tipo livraria com baldes pendurados em volta, ou café enfeitado a bisnagas de brilhantina, não, continuou a ser drogaria, com as mesmas coisas que lá estavam, apenas com uma pessoa diferente atrás do balcão. É simples, acaba a lixívia, repõem-se a lixívia. Soy un hombre feliz, y quiero que me perdonen por este día los muertos, de mi felicidad.

Miguel Castro Caldas

4 de novembro de 2014

3. sinking in the water


2. reflexo na água


1. caminhar em cima das águas

É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente. Tornou-se um número de circo - aquele equilíbrio no arame que mata o apetite de vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana. A última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez mais me devoto às imobilidades, aos silêncios, aos sonos.

Herberto Helder, Photomaton & Vox
Na terra natal tudo se torna subitamente contemporâneo. O que está em cima já não parece estar a meio, o que está em baixo já não parece estar diante e o que está atrás reflete-se na nitidez do que se esboça à frente. Não apetece falar porque só apetece viver. Tenho aqui num pequeno espaço secreto onde não possuo nada e nada me falta, onde encontro uma solidão ainda terna, de grande amplitude, à qual me recolho sempre que a outra me faz soçobrar. Viver, estar em silêncio. A mais pura forma de contemplação é aqui participação, ação, e o gesto mais audaz reveste-se da quietude que marca. No entanto, o ódio da minha origem não se amenizou com o tempo ou com a distância. Que rudimentares são as nossas emoções. Repugna-me a ideia de uma reconciliação, não porque para alimentar essa ilusão narcisista haja necessariamente que tecer laços hipócritas, que haveria, mas porque a origem é a catástrofe a partir da qual a vida recomeça. Apenas do material que sobreviveu, respeitando a gradação das suas temperaturas sensíveis, se pode criar o amanhã.

2 de novembro de 2014


furtivo e mítico, o perfume do betão assemelha-se a uma mistura de jóias e tecidos. tem origem em jardins em miniatura, em constante confronto com o coração das paisagens, onde um fogo escrupuloso arde em consagração à mîse en abyme dos sentidos no espaço. podemos pressenti-lo à superfície de temperamentos mutantes e discretos, que guardam indeléveis traços de paradigmas corporais, como a densidade da dança. entre as suas propriedades encontram-se pouca luz, brutalidade, cigarros e uma língua estrangeira e um dos seus efeitos é a superação da experiência, transformada em trivial, adaptada, inevitável.
sei menos que um animal que guarda a sua distância de aviso na vida. quem parte também aprende isso. e quantas vezes se parte? a cada instante, digo-me. debaixo da pele estão as casas, catástrofes que povoam o espaço como constelações minuciosas, cardíacas. são catástrofes prenunciadas, não como consequências de eventos externos, mas como revelações cujos ciclos de repetição, rotina, regularidade tranquilizadora, lidam com o inquérito repetitivo que impregna os vestígios da memória que nos perseguem. de forma extrema talvez, embora os seus recursos sejam escassos, a orgânica dessas catástrofes é paradoxal: o seu posicionamento não é localizável e mantêm com o espaço uma relação de analogia virtual, apenas existente em potência e nunca em facto.
Animais como príncipes, com os olhos postos nas mesmas arcas.

JAIME de António Reis, 1960

1 de novembro de 2014






John Baldessari, Movie Scripts / Art: Seems likely, 2014
Age Seven

Ay, age seven
Ay, the magnanimous moment of departure
Whatever happened after you,
happened in a mesh of insanity and ignorance.

After you,
the window which was a lively and bright connection
between the bird and us
between the breeze and us
broke
broke
broke
after you,
that earthly doll which did not utter a thing,
nothing but water
water
water
drowned
in water.

After you,
we killed the cricket's voice
we became lured
by the bell ring rising off of the letters of the alphabet
and the whistling of the arms factory.

After you, where our playground was beneath the desk
we graduated from beneath the desks
to behind the desks
and from behind the desks
to top of the desks
and we played on top of the desks
and lost
we lost your color
Aah, age seven.

After you,
we betrayed each other
after you,
we cleansed your memories
by lead particles and splattered blood-drops
off of the plastered temples of alley walls.

after you
we went to the squares
and shouted:
'long live...
and down with....'

and in the clamor of the square
we applauded the little singing coins
which had insidiously come to visit our town.

After you,
us: each other's murderers,
judged love
and while our hearts were anxious in our pockets,
we judged love's share.

After you
we resorted to cemeteries and death was breathing under the grandmother's veil
and death
was that corpulent tree
which the living of this side of the 'origin'
would tie their desire-thread to its weary branches
and the dead of the other side of the 'end'
would paw at its phosphorous roots
and death
was sitting on that sacred mausoleum which had four blue tulips
abruptly lighting up at its four corners.

the sound of the wind is coming
the sound of the wind is coming
Aah, age seven.

I rose up and drank water
and suddenly recollected how the plantations of your youth
became agitated by the swarm of crickets.

how much must one pay?
how much for the growth of this cemented cubicle?

We lost everything we must have lost
we started treading without a lantern
and moon
moon
the kind Feminine
was always there
in the childhood memories of a clay and straw rooftop
and above the young plantations
dreading the swamp of crickets.

How much must one pay?...


Forough Farrokhzad