Ando pela cidade a resolver pendentes com lassidão, como se estivesse a fazer recados à mãe e houvesse no dever certa chave para a liberdade. Ameaça chover mas não chove, ameaça fazer sol mas o sol só timidamente aparece. O meu leque persegue-me, cada vez mais perto do corpo. Na última casa onde entro, portando já a centelha de melancolia dos fins (que não é melancolia, uma vez li uma palavra que definia isso muito melhor e que infelizmente não recordo agora), encosto-me ao balcão de madeira enquanto espero. A empregada regressa e ao ver o leque negro sair do bolso diz «Isto está impossível» ao que vou para responder que «É verdade, mesmo nas casas com...» mas ela interrompe-me completando de imediato a frase de forma tão eloquente que me deixa sem reação por uns segundos. «Com ar condicionado, sim» e continua. Fala como se adivinhasse os meus pensamentos mas sem a hesitação que me caracteriza. Não diz apenas que está um calor húmido, depois de o descrever faz-lhe corresponder os efeitos que lhe provoca no corpo e no espírito, diz entre as frases esta frase: «Parece que o tempo parou.» Estou maravilhada. Tenho os olhos abertos para ela, sorrio. Puxo mais pelo assunto e ela faz-me a vontade, fala sobre as condições meteorológicas como se falasse de um tratado de paixões da alma ou de Dante. Qualquer coisa assim, qualquer coisa que preenche os espaços e soa virtuosamente. Ouvir a sua voz, foi a coisa mais importante que me aconteceu hoje.
No regresso a casa recordo-me subitamente de Strangers talk only about the weather. Desconheço maior talento que o de fazer repercutir nos outros diálogos de onde nos ausentámos.
16 de setembro de 2014
o meu destino é desiludir
fado absoluto
apurado
de imperativo secreto
que se estende em latitude e longitude
e se aplica ao mais comum
porém com confusão e risco
como um plural indiviso.
por definição admiráveis
a simplicidade, a clareza e a graça
não podem desiludir
e o seu contrário é forma de estilo
para que a delicadeza desiluda
é preciso criá-la com malogro
que tolha a prévia reputação
só temos a certeza de ter desiludido quando somos deixados a sós
quando eu escrever um livro hei-de desiludir primeiro aqueles que amo
e logo depois aqueles que admiro
e especialmente aqueles que invejo
hei-de ser tão pobre que nada se aproveite
vou por cá fora um nado-morto
e se nascer vivo mato-o mal venha à luz
darei a experimentar o sabor da vergonha inesperada
subjugada à minha melancolia pusilânime.
é falível estratégia saber que não se é ineludível
eu que não sou mestre de nada
serei desiludida
por ter amado
e em resposta à exigência do meu
maciço
intento
a desilusão há-de abater-se de forma implacável
lenta.
imperfeita, tosca, ridícula
condeno-me à invisibilidade selvagem
a minha língua
provocará repulsa
e medo por portar sezão
morrerei frágil e indefesa como uma criança
inofensiva
cabalmente ignorada
nem o meu nome será impuro
porque não portará prodígio
pois a sua matéria é a depravação
que tem inveterada indecência
e fede.
fado absoluto
apurado
de imperativo secreto
que se estende em latitude e longitude
e se aplica ao mais comum
porém com confusão e risco
como um plural indiviso.
por definição admiráveis
a simplicidade, a clareza e a graça
não podem desiludir
e o seu contrário é forma de estilo
para que a delicadeza desiluda
é preciso criá-la com malogro
que tolha a prévia reputação
só temos a certeza de ter desiludido quando somos deixados a sós
quando eu escrever um livro hei-de desiludir primeiro aqueles que amo
e logo depois aqueles que admiro
e especialmente aqueles que invejo
hei-de ser tão pobre que nada se aproveite
vou por cá fora um nado-morto
e se nascer vivo mato-o mal venha à luz
darei a experimentar o sabor da vergonha inesperada
subjugada à minha melancolia pusilânime.
é falível estratégia saber que não se é ineludível
eu que não sou mestre de nada
serei desiludida
por ter amado
e em resposta à exigência do meu
maciço
intento
a desilusão há-de abater-se de forma implacável
lenta.
imperfeita, tosca, ridícula
condeno-me à invisibilidade selvagem
a minha língua
provocará repulsa
e medo por portar sezão
morrerei frágil e indefesa como uma criança
inofensiva
cabalmente ignorada
nem o meu nome será impuro
porque não portará prodígio
pois a sua matéria é a depravação
que tem inveterada indecência
e fede.
15 de setembro de 2014
14 de setembro de 2014
13 de setembro de 2014
Da mesma maneira que uma pessoa não nasce com o corpo que escolheu, também não escreve sobre o que quer. Bem posso passar a vida à procura de uma ideia para uma novela, a mão há-de sempre fugir-me para outro lado, com um desejo próprio, que me supera. Foge para ali disposta a desintegrar-se e daí parece não querer sair. Toda a minha aprendizagem serve no fundo para lhe dar ouvidos, me tornar submissa. Sempre fui demasiado rebelde. A insatisfação devora-me e se tivesse de confessar algum pecado teria certamente de ser o da impaciência.
Porque nos lembramos do que nos lembramos? Porque nos escolhem esses movimentos, cujas imagens se apoderam de qualquer coisa em nós, preenchendo-o na perfeição? Queria lembrar tantas outras coisas, irresgatáveis, e contudo lembro-me apenas do dia em que, saindo do anexo no quintal dos meus bisavós, me deixei ficar sozinha para trás e olhei para a escuridão no interior a partir da soleira da porta. Sabia que não voltaria ali muitas vezes, suponho que isto acontece depois da morte da minha bisavó. Não percebia porquê, os meus bisavós estavam a secar, como as flores. Eu olhava para este anexo como se fosse a minha casa, pensando que um dia esta seria a minha casa. Ao fundo, no canto do lado direito, sobre uma pequena mesa feita da própria parede, estava sempre um púcaro onde o meu bisavô fazia a cevada. As brasas estavam apagadas naquele dia mas a cal das duas paredes que faziam o canto era negra há muito. Isto era belo. Todo o anexo guardava o cheiro do fogo apagado. A única luz que havia era natural, entrava pela porta e através de uma minúscula janela nem um metro depois da porta na parede do lado esquerdo, cujos vidros estavam muito sujos e ao lado da qual estava um pequeno móvel antigo de casa de banho, branco, onde eu e a minha irmã guardávamos brinquedos. Tudo estava muito sujo dentro do anexo, tudo tinha muito pó, guardavam-se aqui coisas onde não se mexia há muito mais tempo do que o tempo que eu tinha, era o que eu pensava, e protegiam-se outras da chuva no inverno, como a cadeira de lona e a bicicleta do bisavô, homem por demais silencioso, que me intrigava, que gostava de fumar cigarros de milho a olhar para o nada, usava uma bengala que diziam ter sido esculpida por ele e nunca despia a samarra. Portanto para além do cheiro da cinza havia também o cheiro da humidade do pó e uma escuridão admirável que me deixava numa espécie de êxtase, como acontece com as promessas. Por vezes no inverno sentávamo-nos ali os quatro, os meus bisavós e a minha irmã, no canto. O meu bisavô ia acrescentando galhos para que o fogo, que nos aquecia e iluminava, não se apagasse. Houve momentos em que gostaria de ter expulso o meu bisavô deste canto, para que fosse eu a colocar os galhos, a ajeitar o púcaro e a servir a cevada nas canecas. Neste dia deixei-me ficar para trás porque tinha percebido que as promessas são coisas que não se cumprem e que aquela nunca seria a minha casa: iria deixar de ver o seu interior e deixaria de brincar no quintal dos bisavós, onde a minha irmã escavava pequenos buracos, misturava a terra com água e pedras, e depois me oferecia dizendo que era um bolo. Um quintal cheio de vasos de flores, muros antigos, relva, uma oliveira, uma tangerineira, roseiras de Santa Teresa, um poço, uma hera.
Escrevi isto há uma semana e zangada não terminei. Ontem escrevi à minha irmã:
Preciso de memórias, para escrever. Tu tens mais. De que é que te lembras assim de repente?
Perguntou-me de que altura e pedi-lhe para me dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça. Respondeu:
Lembro-me de brincarmos às descobertas da casa. Quando a mamã saía... Víamos as gavetas todas. Lembro-me da avó me ter batido porque te cortei com um canivete, no quintal da avó velhota. Dos buracos com terra e água. Da barraca do avô velhote e ele sempre a fumar e a ver o fogo. Do chá dentro de uma caneca verde do bordalo e pão com marmelada, chamuscada. De ter comido uma malagueta do quintal. De «amarfanhar» as rosas de Santa Teresinha na mão e levar dentro do bolso da bata para o colégio. De ter medo das galinhas da avó. E dela a matar os coelhos... À paulada. Dela dizer Vamos à deita que o sono está à espreita. Queijo não o como nem o vejo. Dela cantar o tenho dois amores do Marco Paulo enquanto fazia o almoço. E de assobiar. Estava sempre a cantar. De fazermos tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. Eu nunca conseguia fazer nada, mas adorava. Na casa dos avós velhotes andávamos mais no quintal. Eram só coisas velhas dentro do anexo. Havia um móvel branco preso na parede que tinha coisas nossas.
Perguntei-lhe:
Como é que se chamava a bisavó?
Não sei.
Também não.
Nem ele.
Nem eu.
Mas a titi sabe.
Pois. Não faz mal. Só quero trabalhar com o que recordamos.
Porque nos lembramos do que nos lembramos? Porque nos escolhem esses movimentos, cujas imagens se apoderam de qualquer coisa em nós, preenchendo-o na perfeição? Queria lembrar tantas outras coisas, irresgatáveis, e contudo lembro-me apenas do dia em que, saindo do anexo no quintal dos meus bisavós, me deixei ficar sozinha para trás e olhei para a escuridão no interior a partir da soleira da porta. Sabia que não voltaria ali muitas vezes, suponho que isto acontece depois da morte da minha bisavó. Não percebia porquê, os meus bisavós estavam a secar, como as flores. Eu olhava para este anexo como se fosse a minha casa, pensando que um dia esta seria a minha casa. Ao fundo, no canto do lado direito, sobre uma pequena mesa feita da própria parede, estava sempre um púcaro onde o meu bisavô fazia a cevada. As brasas estavam apagadas naquele dia mas a cal das duas paredes que faziam o canto era negra há muito. Isto era belo. Todo o anexo guardava o cheiro do fogo apagado. A única luz que havia era natural, entrava pela porta e através de uma minúscula janela nem um metro depois da porta na parede do lado esquerdo, cujos vidros estavam muito sujos e ao lado da qual estava um pequeno móvel antigo de casa de banho, branco, onde eu e a minha irmã guardávamos brinquedos. Tudo estava muito sujo dentro do anexo, tudo tinha muito pó, guardavam-se aqui coisas onde não se mexia há muito mais tempo do que o tempo que eu tinha, era o que eu pensava, e protegiam-se outras da chuva no inverno, como a cadeira de lona e a bicicleta do bisavô, homem por demais silencioso, que me intrigava, que gostava de fumar cigarros de milho a olhar para o nada, usava uma bengala que diziam ter sido esculpida por ele e nunca despia a samarra. Portanto para além do cheiro da cinza havia também o cheiro da humidade do pó e uma escuridão admirável que me deixava numa espécie de êxtase, como acontece com as promessas. Por vezes no inverno sentávamo-nos ali os quatro, os meus bisavós e a minha irmã, no canto. O meu bisavô ia acrescentando galhos para que o fogo, que nos aquecia e iluminava, não se apagasse. Houve momentos em que gostaria de ter expulso o meu bisavô deste canto, para que fosse eu a colocar os galhos, a ajeitar o púcaro e a servir a cevada nas canecas. Neste dia deixei-me ficar para trás porque tinha percebido que as promessas são coisas que não se cumprem e que aquela nunca seria a minha casa: iria deixar de ver o seu interior e deixaria de brincar no quintal dos bisavós, onde a minha irmã escavava pequenos buracos, misturava a terra com água e pedras, e depois me oferecia dizendo que era um bolo. Um quintal cheio de vasos de flores, muros antigos, relva, uma oliveira, uma tangerineira, roseiras de Santa Teresa, um poço, uma hera.
Escrevi isto há uma semana e zangada não terminei. Ontem escrevi à minha irmã:
Preciso de memórias, para escrever. Tu tens mais. De que é que te lembras assim de repente?
Perguntou-me de que altura e pedi-lhe para me dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça. Respondeu:
Lembro-me de brincarmos às descobertas da casa. Quando a mamã saía... Víamos as gavetas todas. Lembro-me da avó me ter batido porque te cortei com um canivete, no quintal da avó velhota. Dos buracos com terra e água. Da barraca do avô velhote e ele sempre a fumar e a ver o fogo. Do chá dentro de uma caneca verde do bordalo e pão com marmelada, chamuscada. De ter comido uma malagueta do quintal. De «amarfanhar» as rosas de Santa Teresinha na mão e levar dentro do bolso da bata para o colégio. De ter medo das galinhas da avó. E dela a matar os coelhos... À paulada. Dela dizer Vamos à deita que o sono está à espreita. Queijo não o como nem o vejo. Dela cantar o tenho dois amores do Marco Paulo enquanto fazia o almoço. E de assobiar. Estava sempre a cantar. De fazermos tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. Eu nunca conseguia fazer nada, mas adorava. Na casa dos avós velhotes andávamos mais no quintal. Eram só coisas velhas dentro do anexo. Havia um móvel branco preso na parede que tinha coisas nossas.
Perguntei-lhe:
Como é que se chamava a bisavó?
Não sei.
Também não.
Nem ele.
Nem eu.
Mas a titi sabe.
Pois. Não faz mal. Só quero trabalhar com o que recordamos.
12 de setembro de 2014
11 de setembro de 2014
Hoje no jardim do Príncipe Real, entre as barracas montadas com roupa à venda, debaixo da samaúma ao lado dos quiosques, estavam dois holofotes mecânicos a apontar para o céu. A música, eletrónica, também soava como numa discoteca, mas as pessoas pareciam nem a ouvir, sentadas nas esplanadas, descontraídas, a conversar. É a segunda vez que encontro um jardim assim recentemente. Na Estrela, há algumas semanas, a música estava tão alta que para meu pasmo o som da vibração do metal que contorna o jardim se misturava ao ritmo alucinante. Nesse dia, não consegui sequer perceber que tipo de música era. Creio que soavam várias ao mesmo tempo ou pelo menos assim pareceu.
Tenho medo. Sinto-me muito velha mas talvez esteja apenas muito louca. Gosto do rumor da cidade, de distinguir os seus ruídos, são uma grande companhia. Mas o desaparecimento do silêncio entre eles é um terror tremendo que não esperei ter de enfrentar. Quem são estas pessoas que se consomem, quem sou eu cada vez mais confinada à minha casa? Hoje no Príncipe Real fui abordada por várias raparigas enfeitadas e apesar da ameaça de chuva meio despidas, que com sorrisos histriónicos ofereciam papéis. Cheirava a perfumes como se estivessem a fabricar uma bomba, havia aparelhagens com colunas gigantescas no meio do jardim, um mar de gente a comprar coisas e a fazer fila para restaurantes, quando atravessava a passadeira fui insultada por um automobilista que achou que eu andava devagar e eu que tenho sempre resposta na ponta da língua, quanto mais não seja para devolver a injúria, demorei a perceber que se dirigia a mim. Depois aconteceu entrar no Jardim Botânico, àquela hora já fechado e fiquei aos portões a olhar para o interior arrumado, paralisada por uma comoção ingrata como se nem casa tivesse para regressar. Lembrei-me então que não tenho filhos que me ajudem a compreender o mundo novo. Ainda bem. Se tivesse haveria de querer mostrar-lhes o que desapareceu.
Tenho medo. Sinto-me muito velha mas talvez esteja apenas muito louca. Gosto do rumor da cidade, de distinguir os seus ruídos, são uma grande companhia. Mas o desaparecimento do silêncio entre eles é um terror tremendo que não esperei ter de enfrentar. Quem são estas pessoas que se consomem, quem sou eu cada vez mais confinada à minha casa? Hoje no Príncipe Real fui abordada por várias raparigas enfeitadas e apesar da ameaça de chuva meio despidas, que com sorrisos histriónicos ofereciam papéis. Cheirava a perfumes como se estivessem a fabricar uma bomba, havia aparelhagens com colunas gigantescas no meio do jardim, um mar de gente a comprar coisas e a fazer fila para restaurantes, quando atravessava a passadeira fui insultada por um automobilista que achou que eu andava devagar e eu que tenho sempre resposta na ponta da língua, quanto mais não seja para devolver a injúria, demorei a perceber que se dirigia a mim. Depois aconteceu entrar no Jardim Botânico, àquela hora já fechado e fiquei aos portões a olhar para o interior arrumado, paralisada por uma comoção ingrata como se nem casa tivesse para regressar. Lembrei-me então que não tenho filhos que me ajudem a compreender o mundo novo. Ainda bem. Se tivesse haveria de querer mostrar-lhes o que desapareceu.
Chove mas a roupa sobre o corpo é ligeira, a janela está aberta em par para um céu branco. O outono chega com o seu esplendor taciturno e não há em mim outra vontade para além da de lhe obedecer, como se obedece a um segredo. Quem poderia ter antes sabido que a felicidade é o contrário do desespero e que toda a vida foi desespero? Sigo pela escuridão desprezando o mundo e a minha alegria nasce de me abandonar a mim própria. Sou uma resposta a um chamamento mais ténue que estas nuvens, que estão no céu para dar a impressão de nada lá estar. Sou um ouvido que escuta um som e se deixa conduzir por ele e todavia tudo é silêncio e quietude. Não tenho deuses. Não estou no espaço nem no tempo, desconheço a dúvida e a interjeição, nenhum sonhar me atormenta. Apenas entendo o que é ignoto e nisto reconheço grande fragilidade, pois enquanto aprendo a respirar delicadamente descubro que a delicadeza tem poder. Para diante nada, tudo branco, nenhum contorno. Não há escolta neste som, em tudo improvável. Prossigo independente, certamente direção a nenhures, mas quem esculpiu a minha embarcação atribuiu-lhe a vontade indivisível de ceder a apenas um vento.
10 de setembro de 2014
Quando me perguntam se gostei de viver em Paris, costumo dar a resposta mais complicada: que não. Naturalmente que gostei de coisas em Paris. Da luz cinzenta, dos boulevards, de Clunny, dos jardins onde se deixa de ouvir o trânsito, dos passeios à beira do Sena, das livrarias, do preço dos livros, dos cinemas que passam sempre o mesmo filme, dos museus e sobretudo de uma sensação extrema de possibilidade por parte da minha sombra que, frequentemente deixada de parte, parecia agora regozijar-se por se sentir integrada. O melhor de Paris não era que tudo era possível, era que tudo estava a acontecer. A diferença não podia ser mais abissal. Ainda assim, aquilo de que abdiquei não chegava a ter o peso de uma pena perante aquilo que recuperei ao regressar a Portugal.
Costumo contar uma história depois de responder à curiosidade, para que as pessoas possam ter algum indicador do que é estar efetivamente a viver em França. Conto sempre a mesma história e começo sempre por oferecer primeiro um dado, ao mencionar que o que vou relatar de seguida me aconteceu precisamente dez vezes ao longo dos quatro anos que lá vivi. Não tenho dúvidas de que uma história, por real que seja, e mesmo quando é contada na primeira pessoa, não passa de uma ficção para os outros, portanto não me surpreende que a tendência dos meus ouvintes seja para desdramatizar o conteúdo. «De certeza que não é assim tão mau», respondem frequentemente, evitando já olhar-me nos olhos, pois concerteza estarei a inventar ou a sobrevalorizar o que não merece destaque. Na altura em que isto me aconteceu, fiz questão de me lembrar para contar. Como a memória é traiçoeira e nela não me fio, percebi que podia escolher esta situação a partir do momento em que ela se reproduziu uma segunda vez, num local e tempo completamente distintos da primeira, esta que me fez entrar num choque profundo, cuja vergonha, de uma profunda indecência, nunca vou esquecer.
Portanto os franceses gostam de fazer jantares. Entre o frio e o individualismo não sei qual é a motivação mais forte, mas o certo é que é hábito generalizado organizarem-se grandes jantares em casa onde o ambiente a maior das vezes comedido, não chega para dissimular a avidez por extravagância. Para mim, que oiço mal, tanto melhor. Não tinha de passar a noite toda a fingir que tinha percebido o que me tentavam dizer no meio de um ruído absurdo. Chegada há pouco, eu era sempre uma estranha para a maioria dos convidados, despertando atenções ferozes e gerando um murmúrio animado. Até que finalmente alguém se aproximava e começava a falar.
Como te chamas?
Marta.
O que fazes?
Estudo Filosofia.
Ah bom? Onde estás a estudar?
Na Sorbonne.
(Neste momento os olhos do interrogador brilhavam mais intensamente, que ganhava impulso para mais perguntas).
E tens bolsa? Ou estás a trabalhar?
Tenho uma pequena bolsa mas também trabalho, numa Mediateca.
(Descontraído). És de cá?
(A pergunta era motivada pela minha falta de sotaque e pretendia descobrir se tinha nascido em Paris ou noutra região francesa).
Não. Sou portuguesa.
Ah, és de origem portuguesa. Mas nasceste em Paris?
Não. Sou portuguesa de origem africana. O meu pai é português, a minha mãe é angolana e eu nasci em Portugal. Estou cá há pouco tempo.
E com esta frase, os meus interlocutores voltavam costas. Quando não havia nojo no olhar deles, havia uma terrível incapacidade de simplesmente continuar a conversa: não podiam pensar. Voltavam costas balbuciando com os seus botões que era impossível. Impossível que uma pessoa loira de olhos azuis tivesse origens africanas. Impossível que uma portuguesa falasse a sua língua sem sotaque. E sobretudo, impossível que esta pessoa estivesse a estudar na Sorbonne e a trabalhar.
Situações como esta eram vividas quotidianamente por quem não podia disfarçar a sua condição de emigrado, ao ponto de uma senhora de bengala empurrar de um banco na paragem do autocarro uma mulher com burka para o chão, uma das últimas alucinações que vi. Ao ponto também dos mais conceituados intelectuais, entre outros destacados membros da alta sociedade parisiense, fazerem correr tinta nos jornais ao longo de praticamente um ano, porque havia miúdos a usar peças da marca Lacoste. Miúdos, leia-se, filhos de emigrantes. La racaille. Uma tão prestigiada marca não podia ser democratizada, tinha de permanecer ao uso das elites, pelo que se estudava o aumento de preços ou mesmo a retirada do mercado de certas peças. A forma como estes miúdos falavam (como se abrasileirassem o francês, introduzindo expressões novas, modificando a pronúncia de algumas palavras e resgatando o calão), bastava para o justificar: era a própria língua francesa que estava perdida se não se tomassem as devidas precauções. No ano em que regressei, protegendo-me de dar mais explicações com a minha tendência para a provocação, quando me perguntavam se tinha gostado de lá estar a viver, respondia simplesmente «Num nada as ruas de Paris vão estar a arder.», o que num nada aconteceu, nas banlieues. Para mim era evidente que os franceses possuem uma espécie de ressentimento com origem na segunda guerra. Há neles um desejo de vingarem a história através da sua confirmação, pois um francês não pode deixar de ter razão: e os franceses foram delatores. A arrogância de um francês é a última a morrer, era a moral da história de uma anedota corsa que costumava ouvir. O silêncio e a paz da ocupação Nazi tornaram-se infecciosos com o final da guerra. E só há um destino para uma infeção: espalhar-se.
Parece haver contradições nesta história, quase posso ouvir-vos pensar. Afinal eu estava a trabalhar, a estudar e sobre isso não menciono quaisquer problemas, pelo contrário. As leis em vigor para a comunidade europeia, que estabelecem a livre circulação de bens e de pessoas, estavam implementadas há muito. Estudar num país da comunidade europeia é em princípio tão simples quanto pedir a transferência de um processo de uma faculdade para outra e passar com uma nota suficiente o exame da língua na faculdade escolhida. Conseguir trabalhar pode ser mais difícil, há que perseverar nas buscas, o que leva tempo, e esperar por um golpe de sorte, mas isso é assim por definição. Foi o que fiz e a certa altura fiz até outra coisa: casei com um francês. Santifiquei-me aos olhos das instituições. Com uma carta de séjour nas mãos, ninguém tinha poder para me vedar o acesso a nada. E tive prazer na minha mesquinhez, ao ser capaz de deixar os franceses enxovalhados por frequentemente conhecer melhor do que eles a língua que tanto dizem amar.
Em conversa recente com um amigo, fiquei a saber que uma amiga em comum considera regressar a Portugal, após cerca de 16 anos de vida em Paris. Confessava-lhe ela que o bloqueio nunca tinha sido quebrado e que assim que abre a boca, denunciando o seu sotaque, as pessoas deixam de a ouvir. Parece que em 16 anos não mudou grande coisa. Mas que belos são os boulevards.
Costumo contar uma história depois de responder à curiosidade, para que as pessoas possam ter algum indicador do que é estar efetivamente a viver em França. Conto sempre a mesma história e começo sempre por oferecer primeiro um dado, ao mencionar que o que vou relatar de seguida me aconteceu precisamente dez vezes ao longo dos quatro anos que lá vivi. Não tenho dúvidas de que uma história, por real que seja, e mesmo quando é contada na primeira pessoa, não passa de uma ficção para os outros, portanto não me surpreende que a tendência dos meus ouvintes seja para desdramatizar o conteúdo. «De certeza que não é assim tão mau», respondem frequentemente, evitando já olhar-me nos olhos, pois concerteza estarei a inventar ou a sobrevalorizar o que não merece destaque. Na altura em que isto me aconteceu, fiz questão de me lembrar para contar. Como a memória é traiçoeira e nela não me fio, percebi que podia escolher esta situação a partir do momento em que ela se reproduziu uma segunda vez, num local e tempo completamente distintos da primeira, esta que me fez entrar num choque profundo, cuja vergonha, de uma profunda indecência, nunca vou esquecer.
Portanto os franceses gostam de fazer jantares. Entre o frio e o individualismo não sei qual é a motivação mais forte, mas o certo é que é hábito generalizado organizarem-se grandes jantares em casa onde o ambiente a maior das vezes comedido, não chega para dissimular a avidez por extravagância. Para mim, que oiço mal, tanto melhor. Não tinha de passar a noite toda a fingir que tinha percebido o que me tentavam dizer no meio de um ruído absurdo. Chegada há pouco, eu era sempre uma estranha para a maioria dos convidados, despertando atenções ferozes e gerando um murmúrio animado. Até que finalmente alguém se aproximava e começava a falar.
Como te chamas?
Marta.
O que fazes?
Estudo Filosofia.
Ah bom? Onde estás a estudar?
Na Sorbonne.
(Neste momento os olhos do interrogador brilhavam mais intensamente, que ganhava impulso para mais perguntas).
E tens bolsa? Ou estás a trabalhar?
Tenho uma pequena bolsa mas também trabalho, numa Mediateca.
(Descontraído). És de cá?
(A pergunta era motivada pela minha falta de sotaque e pretendia descobrir se tinha nascido em Paris ou noutra região francesa).
Não. Sou portuguesa.
Ah, és de origem portuguesa. Mas nasceste em Paris?
Não. Sou portuguesa de origem africana. O meu pai é português, a minha mãe é angolana e eu nasci em Portugal. Estou cá há pouco tempo.
E com esta frase, os meus interlocutores voltavam costas. Quando não havia nojo no olhar deles, havia uma terrível incapacidade de simplesmente continuar a conversa: não podiam pensar. Voltavam costas balbuciando com os seus botões que era impossível. Impossível que uma pessoa loira de olhos azuis tivesse origens africanas. Impossível que uma portuguesa falasse a sua língua sem sotaque. E sobretudo, impossível que esta pessoa estivesse a estudar na Sorbonne e a trabalhar.
Situações como esta eram vividas quotidianamente por quem não podia disfarçar a sua condição de emigrado, ao ponto de uma senhora de bengala empurrar de um banco na paragem do autocarro uma mulher com burka para o chão, uma das últimas alucinações que vi. Ao ponto também dos mais conceituados intelectuais, entre outros destacados membros da alta sociedade parisiense, fazerem correr tinta nos jornais ao longo de praticamente um ano, porque havia miúdos a usar peças da marca Lacoste. Miúdos, leia-se, filhos de emigrantes. La racaille. Uma tão prestigiada marca não podia ser democratizada, tinha de permanecer ao uso das elites, pelo que se estudava o aumento de preços ou mesmo a retirada do mercado de certas peças. A forma como estes miúdos falavam (como se abrasileirassem o francês, introduzindo expressões novas, modificando a pronúncia de algumas palavras e resgatando o calão), bastava para o justificar: era a própria língua francesa que estava perdida se não se tomassem as devidas precauções. No ano em que regressei, protegendo-me de dar mais explicações com a minha tendência para a provocação, quando me perguntavam se tinha gostado de lá estar a viver, respondia simplesmente «Num nada as ruas de Paris vão estar a arder.», o que num nada aconteceu, nas banlieues. Para mim era evidente que os franceses possuem uma espécie de ressentimento com origem na segunda guerra. Há neles um desejo de vingarem a história através da sua confirmação, pois um francês não pode deixar de ter razão: e os franceses foram delatores. A arrogância de um francês é a última a morrer, era a moral da história de uma anedota corsa que costumava ouvir. O silêncio e a paz da ocupação Nazi tornaram-se infecciosos com o final da guerra. E só há um destino para uma infeção: espalhar-se.
Parece haver contradições nesta história, quase posso ouvir-vos pensar. Afinal eu estava a trabalhar, a estudar e sobre isso não menciono quaisquer problemas, pelo contrário. As leis em vigor para a comunidade europeia, que estabelecem a livre circulação de bens e de pessoas, estavam implementadas há muito. Estudar num país da comunidade europeia é em princípio tão simples quanto pedir a transferência de um processo de uma faculdade para outra e passar com uma nota suficiente o exame da língua na faculdade escolhida. Conseguir trabalhar pode ser mais difícil, há que perseverar nas buscas, o que leva tempo, e esperar por um golpe de sorte, mas isso é assim por definição. Foi o que fiz e a certa altura fiz até outra coisa: casei com um francês. Santifiquei-me aos olhos das instituições. Com uma carta de séjour nas mãos, ninguém tinha poder para me vedar o acesso a nada. E tive prazer na minha mesquinhez, ao ser capaz de deixar os franceses enxovalhados por frequentemente conhecer melhor do que eles a língua que tanto dizem amar.
Em conversa recente com um amigo, fiquei a saber que uma amiga em comum considera regressar a Portugal, após cerca de 16 anos de vida em Paris. Confessava-lhe ela que o bloqueio nunca tinha sido quebrado e que assim que abre a boca, denunciando o seu sotaque, as pessoas deixam de a ouvir. Parece que em 16 anos não mudou grande coisa. Mas que belos são os boulevards.
9 de setembro de 2014
Quando a primavera começava, a minha irmã e eu demorávamos mais tempo a chegar a casa da minha avó para almoçar. Pelo caminho estávamos atentas às flores que podíamos comer e que pendiam dos arbustos nos quintais ou nasciam em bermas de estrada. Comê-las era o resultado de uma aprendizagem que agora podíamos continuar a desenvolver. Ou seja, por vezes comíamos o que não devíamos. As primeiras a aparecer eram amarelas e cresciam por toda a parte mal despontavam os primeiros raios de sol. Arrancávamo-las sem raiz e mascávamos o caule ácido deixando a flor. As preferidas eram cor de laranja mas tínhamos de esperar o início do verão para as começar a ver. Em forma de trompete, nasciam em cachos numa trepadeira que caía dos muros. Dentro guardavam uma espécie de mel, tão doce que tínhamos de afastar as formigas antes de o sorver. Cuidando de não estragar as pétalas, que continham o licor, soprávamos para as expulsar e sorríamos uma para a outra num silêncio cúmplice, antes de dar destino às que estavam coladas. Bebíamos como de um copo e porque o prazer era curto arrancávamos outra de seguida.
Sei que alguma criança, porventura numa aldeia portuguesa, continua a saber comer flores. Mas os adultos que as ensinam são quem admiro profundamente. São eles que enfrentam a comunhão, palavra imunda, como a natureza.
Sei que alguma criança, porventura numa aldeia portuguesa, continua a saber comer flores. Mas os adultos que as ensinam são quem admiro profundamente. São eles que enfrentam a comunhão, palavra imunda, como a natureza.
Kafka não tem imaginação; é um cérebro privilegiado capaz de esgotar um assunto desde que ele lhe seja sugerido. Problemas como a educação, a liberdade, a servidão e o amor, são-lhe oferecidos por Walser numa obra curta e original.
Agustina Bessa-Luís, Um Presépio Aberto in Contemplação carinhosa da angústia.
Agustina Bessa-Luís, Um Presépio Aberto in Contemplação carinhosa da angústia.
8 de setembro de 2014
A sua admiração já se tinha denunciado em encontros anteriores mas até dele eu a mantinha em segredo, para que nada, como poderiam a sua vergonha ou medo, viesse corromper o que é puro. Tinha certo contentamento nela, que me fez compreender que a paixão ignora convenções e decretos. Isso não me assustava ou impacientava, pois o tempo ainda era tido por um mar seguro, onde as tempestades se atravessam e nunca fazem naufragar. Reconheci no entanto imediatamente nesse contentamento uma forma de correspondência espontânea a uma admiração que eu não tinha escolhido. E isso era novo. A consciência dos olhares dos homens adultos sobre mim era terrível, um conjunto de ameaças de que tinha de me desviar em permanência. O dele não. Naturalmente que por ser uma criança o seu desejo não transportava qualquer ameaça. Ele iria crescer e esquecer, pensava eu, e não havia qualquer razão para reprimir o que era tão belo.
Quando naquele dia o vi chegar à festa, estranhei que viesse tão bem vestido, com um fato azul e uma pequena gravata impossível de compor, o cabelo muito penteado com gel. Foi mais tarde que percebi a escolha, depois de já termos estado a falar e a repicar da mesa juntos. Eu estava sentada e do outro lado da pista de dança improvisada, o pai e o irmão falavam-lhe ao ouvido enquanto ele olhava para mim a sorrir. Depois a sua agilidade em desviar-se das pessoas que dançavam para chegar perto de mim, a mão estendida, o rosto vermelho, e um convite para dançar. Dancei a noite toda com ele e não queria ter dançado com mais ninguém. Não o conduzi, nem quando demos a mão para ir comer. Havia no meu sorriso uma felicidade submissa e ele sabia-o. Imponderavelmente, o meu contentamento estava a nu e a sua correspondência fez de mim a mulher mais feliz naquela sala.
Quando naquele dia o vi chegar à festa, estranhei que viesse tão bem vestido, com um fato azul e uma pequena gravata impossível de compor, o cabelo muito penteado com gel. Foi mais tarde que percebi a escolha, depois de já termos estado a falar e a repicar da mesa juntos. Eu estava sentada e do outro lado da pista de dança improvisada, o pai e o irmão falavam-lhe ao ouvido enquanto ele olhava para mim a sorrir. Depois a sua agilidade em desviar-se das pessoas que dançavam para chegar perto de mim, a mão estendida, o rosto vermelho, e um convite para dançar. Dancei a noite toda com ele e não queria ter dançado com mais ninguém. Não o conduzi, nem quando demos a mão para ir comer. Havia no meu sorriso uma felicidade submissa e ele sabia-o. Imponderavelmente, o meu contentamento estava a nu e a sua correspondência fez de mim a mulher mais feliz naquela sala.
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