- o vento
- bolas de sabão
- os fios da teia de aranha
- o calor da tua boca
- água
- o traço do desenho
18 de outubro de 2013
17 de outubro de 2013
O dia em que cheguei a Lisboa também era branco. Era um fim de tarde de Novembro e eu não sabia onde estava. Desfiz a mala a correr e saí pela primeira vez, ansiosa e anestesiada. Queria ir até ao cruzamento com mais trânsito e ficar aí para ver como o dia mudava até ser noite, como eram as pessoas, saber se me perdia. Quando tinha feito cinco metros de rua dei de caras com o deus grego que eu observava ao longe na praia da Nazaré todos os verões.
O deus grego não era grego. Era um rapaz loiro de olhos muito azuis mais ou menos da minha altura cujos contornos poderiam ter sido esculpidos em mármore. Eu ficava siderada assim que ele aparecia na praia. Começava a tremer e de início tinha de ficar muito quieta. Penso que talvez fosse isso que eu temia nele — e eu temia-o, pois o nosso encontro deixava-me em silêncio. Eu achava que isso lhe dava um poder colossal sobre mim, que ele nunca poderia descobrir.
Portanto eu estava há um par de horas em Lisboa e o deus grego descia o passeio na minha direcção. Fiquei atónita, imóvel, o meu coração fez tic e depois já não fez tac. Julguei que era uma contingência tremenda, que ele passaria por mim sem me reconhecer. Mas não, o deus grego dirigiu-se a mim com um grande sorriso, abraçou-me e tcharam!: sabia o meu nome. Eu não sabia o dele.
Perguntou-me o que é que eu estava a fazer ali, se tinha vindo estudar para Lisboa (respondi com um sim) explicou que o pai dele trabalhava cá, era advogado, que os pais eram divorciados e que até ali ele tinha vivido com a mãe na Nazaré mas que agora que tinha vindo estudar ía ficar com o pai, só que ainda não sabia dizer se estava contente com isso ou não. Falava muito rápido, com um grande sorriso, as mãos tocaram-me nos braços várias vezes. Eu fiquei sempre na mesma posição e ao que me lembro com os olhos mais arregalados do mundo. Pensava: «Ele está feliz por me encontrar. Ele sabe o meu nome. Ele não só é bonito como está a estudar Sociologia.»
Querendo continuar tranquilamente a conversa, o deus grego convidou-me para tomar um café. Foi como se me tivessem dado um murro na cara. Senti-me desesperar na minha incredulidade. Agora era um fogo de artifício, com todo o seu ruído, que não me deixava pensar. «Ele está-te a convidar, ele quer passar tempo contigo.» Então tomei uma decisão com a plena consciência de estar a escolher entre dois caminhos na vida, uma coisa que não é todos os dias que acontece. Olhei directamente para os olhos dele, respondi «Não», voltei as costas e comecei a andar.
No segundo a seguir comecei a sentir a anestesia passar. As minhas pernas tremiam mas já não era por causa dele. Tive pena da tristeza que vi sobre o seu rosto, uma sombra assustadora que o envolveu inteiramente. Quis encontrar uma explicação para o que tinha acabado de fazer e não a tinha. Senti que Lisboa era uma cidade sem refúgios mas não sabia que qualidade havia a identificar nisso. A única coisa em que conseguia pensar era que ele vinha do passado e que, deus grego ou não, o meu passado terminava ali. Nunca o voltei a encontrar.
O deus grego não era grego. Era um rapaz loiro de olhos muito azuis mais ou menos da minha altura cujos contornos poderiam ter sido esculpidos em mármore. Eu ficava siderada assim que ele aparecia na praia. Começava a tremer e de início tinha de ficar muito quieta. Penso que talvez fosse isso que eu temia nele — e eu temia-o, pois o nosso encontro deixava-me em silêncio. Eu achava que isso lhe dava um poder colossal sobre mim, que ele nunca poderia descobrir.
Portanto eu estava há um par de horas em Lisboa e o deus grego descia o passeio na minha direcção. Fiquei atónita, imóvel, o meu coração fez tic e depois já não fez tac. Julguei que era uma contingência tremenda, que ele passaria por mim sem me reconhecer. Mas não, o deus grego dirigiu-se a mim com um grande sorriso, abraçou-me e tcharam!: sabia o meu nome. Eu não sabia o dele.
Perguntou-me o que é que eu estava a fazer ali, se tinha vindo estudar para Lisboa (respondi com um sim) explicou que o pai dele trabalhava cá, era advogado, que os pais eram divorciados e que até ali ele tinha vivido com a mãe na Nazaré mas que agora que tinha vindo estudar ía ficar com o pai, só que ainda não sabia dizer se estava contente com isso ou não. Falava muito rápido, com um grande sorriso, as mãos tocaram-me nos braços várias vezes. Eu fiquei sempre na mesma posição e ao que me lembro com os olhos mais arregalados do mundo. Pensava: «Ele está feliz por me encontrar. Ele sabe o meu nome. Ele não só é bonito como está a estudar Sociologia.»
Querendo continuar tranquilamente a conversa, o deus grego convidou-me para tomar um café. Foi como se me tivessem dado um murro na cara. Senti-me desesperar na minha incredulidade. Agora era um fogo de artifício, com todo o seu ruído, que não me deixava pensar. «Ele está-te a convidar, ele quer passar tempo contigo.» Então tomei uma decisão com a plena consciência de estar a escolher entre dois caminhos na vida, uma coisa que não é todos os dias que acontece. Olhei directamente para os olhos dele, respondi «Não», voltei as costas e comecei a andar.
No segundo a seguir comecei a sentir a anestesia passar. As minhas pernas tremiam mas já não era por causa dele. Tive pena da tristeza que vi sobre o seu rosto, uma sombra assustadora que o envolveu inteiramente. Quis encontrar uma explicação para o que tinha acabado de fazer e não a tinha. Senti que Lisboa era uma cidade sem refúgios mas não sabia que qualidade havia a identificar nisso. A única coisa em que conseguia pensar era que ele vinha do passado e que, deus grego ou não, o meu passado terminava ali. Nunca o voltei a encontrar.
13 de outubro de 2013
Barcos às dezenas no rio, pescadores, bicicletas, cães, carros, camiões, motas, aviões, comboios, gaivotas, música no café, filmes, conversas. Distraio-me com surpresa do livro por um som longínquo, de todos o mais comum: o restolhar cristalino de um monte de folhas secas que atribuo rapidamente ao vento e que algumas horas mais tarde descubro ser o esconderijo de uma lagartixa. Aconteceu apenas uma vez.
10 de outubro de 2013
Em
1998 fui para Paris onde vivi o que restava desse ano e os 3 anos
seguintes. Casei com um judeu filho de pai córsego e mãe nascida em
Marrocos, cuja avó, viúva de um prospector, vivia no 16ème e cuja tia
tinha desistido do seu laboratório premiado de astrofísica para criar
cabras e fazer queijo numa quinta no sul. Trabalhei e estudei em Paris e
tive a sorte descomunal de viajar. Conheci França de
uma ponta a outra à custa de muito enjoo no carro. Foi lá que vi uma
montanha pela primeira vez. Foi lá que vi um transexual pela primeira
vez. O francês tornou-se a minha segunda língua para descobrir que todos
os sonhos em francês são pesadelos. Quando chegou a altura de decidir
levei seis meses para ter a certeza de que queria regressar a Portugal.
De tudo o que vivi, de todos os rostos que conheci, todos os livros que trouxe, todas as histórias (e intensas que foram) que se acumularam, aquilo que recordo com mais vivacidade, e também com mais emoção, são os meus passeios solitários de dias inteiros pela cidade.
De tudo o que vivi, de todos os rostos que conheci, todos os livros que trouxe, todas as histórias (e intensas que foram) que se acumularam, aquilo que recordo com mais vivacidade, e também com mais emoção, são os meus passeios solitários de dias inteiros pela cidade.
8 de outubro de 2013
Começo a ler Walter Benjamin. Esperei o
tempo possível porque gosto de ler em silêncio. É difícil descrever o
que se encontra quando há encontro. Estou ainda no início, talvez as
palavras surjam entretanto, porque quero dizer: a descrição é a resposta
que me resta a um amor que está apenas a nascer. Hoje,
enquanto lia, ri. Um riso cristalino, profundo, comovido. O riso mais
raro que quase, quase, quase ninguém consegue ouvir.
Lembro-me perfeitamente
da primeira vez que uma pessoa o ouviu. Foi numa aula de filosofia no
12º ano, a primeira em que falávamos de Kant e lemos um parágrafo da
Crítica da Razão Pura, não me lembro qual. O professor lia, os alunos
estavam debruçados sobre os livros a acompanhar a leitura. Depois do
ponto final, dei uma grande gargalhada. Uma gargalhada generosa, sem
tirar os olhos do texto de que já procurava o início para reler. Como não se
tratava de uma anedota, os meus colegas riram também e disseram que eu
era mesmo tonta. Já o professor, ficou muito surpreendido. Olhou para
mim com olhos de quem também queria poder rir assim e disse: «Se ris é porque percebeste» e continuou a dar a aula. Foi quando também percebi, ou quando pensei a primeira vez, naquele, meu próprio, riso.
*Léo Férré, On est pas sérieux quand on a dix-sept ans.
6 de outubro de 2013
0. Um dia uma parte do corpo começa a doer ao levantar, a frase no livro que gostámos tanto de ler enterrou-se não se sabe onde, pensamos que temos de correr para apanhar aquele autocarro e abrandamos o passo. Enquanto esses eventos não se destacam ainda dos outros, até quando intocados, descobrimos através deles que começámos a envelhecer.
1. Em menos de 24h dois acontecimentos levam-me à amarga constatação que nunca vi um grão de trigo. Eu que quero ver todas as montanhas do mundo, que gostava de ver um deserto de gelo e um de fogo, que quero ler quanto conseguir, que quero aprender outra língua e a tocar um instrumento antes de morrer e que aprendi a nadar no ano passado só para saber o que era isso, nunca vi um grão de trigo. Quase me envergonho. Não passo do quase porque de facto ainda não morri e sei onde há campos de trigo.
2. Sei que um dia destes vou fazer alguém passar vergonha no cinema. É a segunda vez que me acontece. Estou a ver os pescadores e a pesca no écrã, cânticos, força, água, sangue, peles queimadas. No regresso da faina, um grupo em pé em cima de um dos barcos acena à câmara. Suprimo a tempo o meu acenar de resposta.
3. Num dos barcos os sons raptam-me. Gaivotas, cordas a passar por metal, metal a girar sobre metal, metal a chocalhar, um motor. Sou chamada e não sei onde estou.
4. Os pastores fazem queijo de cabra. Sinto um nó atar-se na alma e renego todos os supermercados onde tenho posto os pés. Prometo a mim mesma que farei uma refeição de queijo de cabra, pão caseiro, uvas brancas, nozes e vinho.
5. Num dos filmes vejo uma figueira só com folhas novas. Pergunto-me se isso ainda existe.
6. É uma festa para comemorar o início da Primavera, cortam uma árvore e tiram-lhe a casca no cimo de um monte para a trazer para baixo para a aldeia e voltar a erguê-la. As mulheres esperam os homens no vale com um piquenique. Entre as crianças há uma que não se distrai com a câmara, olha para dentro a comer um naco de pão. Está a pensar e eu penso que talvez ela pense em cinema.
7. No fim da festa nenhum som. Esse som que tantas insónias me trouxe.
O Mundo Perdido de Vittorio De Seta (Curtas-metragens de Vittorio De Seta 1954-1959), hoje na Cinemateca Portuguesa.
1. Em menos de 24h dois acontecimentos levam-me à amarga constatação que nunca vi um grão de trigo. Eu que quero ver todas as montanhas do mundo, que gostava de ver um deserto de gelo e um de fogo, que quero ler quanto conseguir, que quero aprender outra língua e a tocar um instrumento antes de morrer e que aprendi a nadar no ano passado só para saber o que era isso, nunca vi um grão de trigo. Quase me envergonho. Não passo do quase porque de facto ainda não morri e sei onde há campos de trigo.
2. Sei que um dia destes vou fazer alguém passar vergonha no cinema. É a segunda vez que me acontece. Estou a ver os pescadores e a pesca no écrã, cânticos, força, água, sangue, peles queimadas. No regresso da faina, um grupo em pé em cima de um dos barcos acena à câmara. Suprimo a tempo o meu acenar de resposta.
3. Num dos barcos os sons raptam-me. Gaivotas, cordas a passar por metal, metal a girar sobre metal, metal a chocalhar, um motor. Sou chamada e não sei onde estou.
4. Os pastores fazem queijo de cabra. Sinto um nó atar-se na alma e renego todos os supermercados onde tenho posto os pés. Prometo a mim mesma que farei uma refeição de queijo de cabra, pão caseiro, uvas brancas, nozes e vinho.
5. Num dos filmes vejo uma figueira só com folhas novas. Pergunto-me se isso ainda existe.
6. É uma festa para comemorar o início da Primavera, cortam uma árvore e tiram-lhe a casca no cimo de um monte para a trazer para baixo para a aldeia e voltar a erguê-la. As mulheres esperam os homens no vale com um piquenique. Entre as crianças há uma que não se distrai com a câmara, olha para dentro a comer um naco de pão. Está a pensar e eu penso que talvez ela pense em cinema.
7. No fim da festa nenhum som. Esse som que tantas insónias me trouxe.
O Mundo Perdido de Vittorio De Seta (Curtas-metragens de Vittorio De Seta 1954-1959), hoje na Cinemateca Portuguesa.
29 de setembro de 2013
O que me interessa na linguagem - qualquer forma de linguagem - é a sua relação com o silêncio. O que me interessa no silêncio é a ausência de relação que o caracteriza e que dá forma em nós ao desejo de dizer. Talvez não haja música sem ouvinte. Mas o que há de mais profundo é silêncio, que não procede nem prossegue, não existe nem é nada porquanto o que é não tem relação com o tempo. E no entanto, não sei como nem onde, está em mim.
17 de setembro de 2013
O meu primeiro beijo foi roubado. Ele chamava-se Ivo. Era um rapaz de aparência rude, pequeno, com orelhas grandes e cheio de sardas. Achava-o muito bruto e como ele deitava perdigotos nunca brincava com ele, aliás, evitava estar perto dele. Mas como as crianças e os pássaros andam sempre em bando, fui como toda a gente à festa de aniversário dele. Levava o meu vestido de fazenda cor-de-rosa, a estrear, que eu tinha ajudado a desenhar, e um laço no cabelo.
O Ivo morava num castelo. Não estou a inventar nem a ser metafórica, o Ivo morava num castelo com masmorras e torres e portas pesadas de madeira, paredes e chão de pedra, um poço, alçapões, lareiras do tamanho de casas, num sítio onde demorámos muito tempo a chegar. Com o olho à janela fui perdendo de vista as casas e quando chegámos a paisagem tinha o esplendor inóspito dos sobreiros que parecem reafirmar com prepotência o vazio em redor. Ao sair do carro, quando vi o castelo pela primeira vez, parei de pensar.
À porta para nos receber estava uma mulher grande, alta, de formas exuberantes, com o cabelo muito loiro (e como era a primeira vez que estava a ver cabelos pintados pensei Porque é que o Ivo não é loiro) e muito comprido, vestida com roupas modernas, os lábios pintados de vermelho, os olhos de azul, com pulseiras e colares, um cigarro sempre na mão, e cuja voz era demasiado grossa e rouca para uma mulher. Era a mulher mais bela que tinha visto. Parecia irreal. Era hipnotizante. Onde ela estava, o ar era raro. No interior, uma sala com sofás de veludo verde. Ela, sorrindo efusivamente, dava a boas vindas aos pais e dizia às crianças que tudo era permitido.
Brincámos até ser noite. Subimos à torre para ver o mundo, jogámos às escondidas na masmorra. Um caçador mostrou-nos as armas. Comemos tantos doces que julguei não voltar a ter fome. E vi o Ivo andar de cavalo, o que antes de significar que eu estava doida quase fez dele um rapaz giro.
À hora de jantar fomos cantar os parabéns. Toda a gente se reuniu à volta da mesa e eu estranhei ver a minha mãe ao lado da mulher loira. Muito composta e bem comportada, fiquei ao fundo da mesa, do lado oposto ao bolo e portanto oposto também ao lugar do Ivo. E eis que a minha mãe me chama para ir para perto dele. Disse que não o mais discretamente possível com a cabeça. Disse que não com a cabeça e com os olhos. Disse que não com a cabeça, com os olhos e com o corpo. E fui.
Enquanto cantávamos os parabéns, fiquei ao lado dele a sentir-me uma jarra, uma jarra contrariada, com a luz das velas a iluminar a zanga e o embaraço que eu queria esconder. Foram segundos até que no momento de apagar as velas, em vez de as apagar, o Ivo se volta para mim e me dá um beijo na boca. Afastei-o com todas as minhas forças, olhei-o nos olhos, gritei não e corri dali para fora. Ainda hoje me lembro da humidade. E não é do castelo.
O Ivo morava num castelo. Não estou a inventar nem a ser metafórica, o Ivo morava num castelo com masmorras e torres e portas pesadas de madeira, paredes e chão de pedra, um poço, alçapões, lareiras do tamanho de casas, num sítio onde demorámos muito tempo a chegar. Com o olho à janela fui perdendo de vista as casas e quando chegámos a paisagem tinha o esplendor inóspito dos sobreiros que parecem reafirmar com prepotência o vazio em redor. Ao sair do carro, quando vi o castelo pela primeira vez, parei de pensar.
À porta para nos receber estava uma mulher grande, alta, de formas exuberantes, com o cabelo muito loiro (e como era a primeira vez que estava a ver cabelos pintados pensei Porque é que o Ivo não é loiro) e muito comprido, vestida com roupas modernas, os lábios pintados de vermelho, os olhos de azul, com pulseiras e colares, um cigarro sempre na mão, e cuja voz era demasiado grossa e rouca para uma mulher. Era a mulher mais bela que tinha visto. Parecia irreal. Era hipnotizante. Onde ela estava, o ar era raro. No interior, uma sala com sofás de veludo verde. Ela, sorrindo efusivamente, dava a boas vindas aos pais e dizia às crianças que tudo era permitido.
Brincámos até ser noite. Subimos à torre para ver o mundo, jogámos às escondidas na masmorra. Um caçador mostrou-nos as armas. Comemos tantos doces que julguei não voltar a ter fome. E vi o Ivo andar de cavalo, o que antes de significar que eu estava doida quase fez dele um rapaz giro.
À hora de jantar fomos cantar os parabéns. Toda a gente se reuniu à volta da mesa e eu estranhei ver a minha mãe ao lado da mulher loira. Muito composta e bem comportada, fiquei ao fundo da mesa, do lado oposto ao bolo e portanto oposto também ao lugar do Ivo. E eis que a minha mãe me chama para ir para perto dele. Disse que não o mais discretamente possível com a cabeça. Disse que não com a cabeça e com os olhos. Disse que não com a cabeça, com os olhos e com o corpo. E fui.
Enquanto cantávamos os parabéns, fiquei ao lado dele a sentir-me uma jarra, uma jarra contrariada, com a luz das velas a iluminar a zanga e o embaraço que eu queria esconder. Foram segundos até que no momento de apagar as velas, em vez de as apagar, o Ivo se volta para mim e me dá um beijo na boca. Afastei-o com todas as minhas forças, olhei-o nos olhos, gritei não e corri dali para fora. Ainda hoje me lembro da humidade. E não é do castelo.
16 de setembro de 2013
Há dois tipos de crise: aquela que procede da angústia e é uma explosão de revolta pela constatação de que as coisas são irrevogavelmente distantes da sua origem e aquela que é trazida pela luz, a claridade ou a dolorosa ausência de sombras das imagens que concede acesso ao horror. Nenhuma crise é mais terrível do que o amor puro.
15 de setembro de 2013
Eu estava sozinha mas eram poucos os momentos em que me permitia ficar nesse encontro com a minha própria amplitude, sem acrescentar nem ocultar nada para poder parecer menos isolada ou menos diferente. Havia nisso um sabor supremo. Uma serenidade. E eu tinha um ritual para o saborear.
No meu quarto em silêncio, ficava a escutar atentamente uma linguagem que por vezes não compreendia. Encontrava através dela uma mulher a nascer mas a grande maioria das imagens permaneciam misteriosas. Sem as distinguir suficientemente, não sabia que qualidade do assombro existia nela. Interrogava-me se, como num livro de crianças para pintar, teria de ser eu com o tempo a definir as suas cores. Ou se simplesmente um dia seria ela a engolir-me. Certo é que queria apoderar-me daquela música. Queria dominá-la, que é o mesmo que dizer que queria poder ouvir tudo, sem véus, sem enigmas, e traduzi-la.
Descia à cidade depois do jantar mas não ia directamente para a praça encontrar os amigos que me esperavam. Fazia um desvio.
Entrava nas ruas escuras, onde era suposto não ir. O caminho era mais longo do que o habitual e o movimento na rua era diferente. Por vezes, ninguém. O nevoeiro subindo do rio, o bafo da minha boca, sons de pequenas pedras a rolar, animais que passavam. Outras vezes desconhecidos. Pessoas mais velhas que eu encostadas à parede de uma casa a fumar ou sentadas nos degraus de um edifício. Conversas que se interrompiam quando eu passava. Olhos. Uma liberdade virgem que a esforço não me fazia sorrir.
Entrava no salão de jogos, o maior, cheio de fumo, muito barulho, onde iam as pessoas mais velhas e portanto eu não podia entrar. A vibração mudava assim que eu me aproximava e aqueles que estavam à entrada me viam. Dirigia-me à Jukebox e punha a tocar o Wild Thing do Jimi Hendrix. Enquanto a música tocava eu dançava, cantava e sorria quanto fosse a minha vontade. Vivia aquilo que estava a viver, tudo o que em mim estava a viver. Sobretudo o indecifrável.
No meu quarto em silêncio, ficava a escutar atentamente uma linguagem que por vezes não compreendia. Encontrava através dela uma mulher a nascer mas a grande maioria das imagens permaneciam misteriosas. Sem as distinguir suficientemente, não sabia que qualidade do assombro existia nela. Interrogava-me se, como num livro de crianças para pintar, teria de ser eu com o tempo a definir as suas cores. Ou se simplesmente um dia seria ela a engolir-me. Certo é que queria apoderar-me daquela música. Queria dominá-la, que é o mesmo que dizer que queria poder ouvir tudo, sem véus, sem enigmas, e traduzi-la.
Descia à cidade depois do jantar mas não ia directamente para a praça encontrar os amigos que me esperavam. Fazia um desvio.
Entrava nas ruas escuras, onde era suposto não ir. O caminho era mais longo do que o habitual e o movimento na rua era diferente. Por vezes, ninguém. O nevoeiro subindo do rio, o bafo da minha boca, sons de pequenas pedras a rolar, animais que passavam. Outras vezes desconhecidos. Pessoas mais velhas que eu encostadas à parede de uma casa a fumar ou sentadas nos degraus de um edifício. Conversas que se interrompiam quando eu passava. Olhos. Uma liberdade virgem que a esforço não me fazia sorrir.
Entrava no salão de jogos, o maior, cheio de fumo, muito barulho, onde iam as pessoas mais velhas e portanto eu não podia entrar. A vibração mudava assim que eu me aproximava e aqueles que estavam à entrada me viam. Dirigia-me à Jukebox e punha a tocar o Wild Thing do Jimi Hendrix. Enquanto a música tocava eu dançava, cantava e sorria quanto fosse a minha vontade. Vivia aquilo que estava a viver, tudo o que em mim estava a viver. Sobretudo o indecifrável.
Entrámos finalmente no jardim. Nunca lá tinha estado, era enorme. Começámos a descer a colina da entrada e observei o horizonte verde onde grupos de crianças corriam sobre o relvado, várias pessoas se reuniam em redor de toalhas estendidas sobre a terra, havia jogos de raquetes, namorados escondidos atrás de arbustos ou abraçados ao sol, bandos de pássaros chilreavam e levantavam voo da copa das árvores. Enquanto os amigos com quem estava começavam a escolher um lugar para ficarmos, notei ao longe um engenho colorido que nunca tinha visto. Parecia ser um carrossel. Havia contudo naquele carrossel qualquer coisa de extraordinário que me atraía inexoravelmente. A partir do momento em que o vi, longínquo, ao fundo do jardim, não consegui mais desviar dele a minha atenção. Ao contrário, chamei os meus amigos. Procurei dizer-lhes como estava ali à nossa frente, a poucos passos de nós, a coisa mais assombrosa que alguma vez tinha visto e que devíamos ir lá. Mas nenhum deles olhou para o engenho ou para mim. Portanto comecei a atravessar o jardim em direcção a ele.
Será difícil descrever esta máquina. Na sua base estava o casco de um grande barco em madeira. O mastro principal era cruzado por uma verga de igual tamanho e em cujas extremidades rodavam quatro cascos de embarcações, igualmente de madeira, duas de cada lado. Com o interior encostado ao interior do outro casco, faziam lembrar nozes, um pouco mais pequenas que o barco de madeira na base da estrutura. Das extremidades da verga ao topo do mastro, pendia uma corda com bandeirolas coloridas, semelhantes às bandeiras tibetanas de orações. Chamo-lhe máquina ou carrossel porque, para além de parecer haver alguém a vigiar, à excepção da base e do mastro principal, tudo estava em movimento. As cascas de noz giravam na horizontal e na vertical, rodando uma sobre a outra, em simultâneo, o mesmo movimento de cada lado, e a verga rodava a grande velocidade. Era um movimento impossível. Tinha de perceber como funcionava e para que servia.
Depois de caminhar durante muito tempo, alcancei o fim do jardim onde encontrei um lago dentro de uma caverna. Para ver a máquina teria de o atravessar mas não sabia como pois a única coisa que os meus olhos podiam avistar ao redor era pedra. Hesitei durante alguns minutos, tentando encontrar uma solução. Não sabia nadar e seja como for não sei se poderia nadar aquela distância. Do outro lado do lago, a máquina continuava a girar. Distinguia-se agora melhor a pessoa que se encontrava perto da base, caminhando de um lado para o outro lentamente. Não havia mais ninguém para além dele perto da máquina. Como um druida, tinha um capuz e uma espécie de cajado, mais ou menos da sua altura. Podia ver-se a sua longa barba branca. Já me tinha visto.
Olhei para a máquina. Precisava de a ver de perto. As águas negras do lago ocultavam a sua profundidade e espelhavam-se no tecto da gruta, reflexos verdes, azuis, amarelos, o mundo negro, onde as aparências deixam de ser, começava ali. Olhei para os meus pés perto da água. Ondas minúsculas batiam na rocha. Decido avançar, coloco um pé sobre a água.
Mal me preparo para dar um passo sobre a água fico nua. Estou neste momento em pé dentro de uma pequena embarcação que avança a remos. O remador coloca uma capa negra sobre o meu corpo imóvel. O druida está voltado para mim e espera-me.
Chegamos ao outro lado do lago. A embarcação pára para me deixar sair e volta a partir. Estou finalmente diante dele. É colossal. O movimento dos cascos é prodigioso. Estou siderada, penso, tento pensar mas não consigo encontrar um correspondente em nada que tenha visto ou ouvido relatar. Estou também a ignorar o druida, que se mantém num dos lados da máquina e me observa durante alguns minutos até começar a falar:
- O que vieste aqui fazer?
- Vim para ver.
Menti. Não sei porquê. Na verdade eu tinha feito a viagem para entrar na máquina e experimentar o seu movimento. Lembrei-me que estava nua por baixo do manto negro e tive medo. Queria perguntar-lhe qual era a moeda que tinha de pagar para poder dar uma volta no carrossel mas o meu ego causava-me embaraço. Ele continuou a falar.
- Vieste para dizer a palavra.
- Qual palavra?
- Tu sabes a palavra.
Então o druida removeu o seu capuz. Era um velho de barbas brancas que me olhava com o meu próprio rosto. O meu rosto masculino e envelhecido. Havia uma grande atração entre nós, que eu talvez não possa explicar. Ainda em choque, senti que poderia morrer às mãos dele. A sua mão ergueu-se com uma grande espada e quando me cortou o pescoço, a luz que emanei devolveu-me à vigília. Acordei a sorrir.
Será difícil descrever esta máquina. Na sua base estava o casco de um grande barco em madeira. O mastro principal era cruzado por uma verga de igual tamanho e em cujas extremidades rodavam quatro cascos de embarcações, igualmente de madeira, duas de cada lado. Com o interior encostado ao interior do outro casco, faziam lembrar nozes, um pouco mais pequenas que o barco de madeira na base da estrutura. Das extremidades da verga ao topo do mastro, pendia uma corda com bandeirolas coloridas, semelhantes às bandeiras tibetanas de orações. Chamo-lhe máquina ou carrossel porque, para além de parecer haver alguém a vigiar, à excepção da base e do mastro principal, tudo estava em movimento. As cascas de noz giravam na horizontal e na vertical, rodando uma sobre a outra, em simultâneo, o mesmo movimento de cada lado, e a verga rodava a grande velocidade. Era um movimento impossível. Tinha de perceber como funcionava e para que servia.
Depois de caminhar durante muito tempo, alcancei o fim do jardim onde encontrei um lago dentro de uma caverna. Para ver a máquina teria de o atravessar mas não sabia como pois a única coisa que os meus olhos podiam avistar ao redor era pedra. Hesitei durante alguns minutos, tentando encontrar uma solução. Não sabia nadar e seja como for não sei se poderia nadar aquela distância. Do outro lado do lago, a máquina continuava a girar. Distinguia-se agora melhor a pessoa que se encontrava perto da base, caminhando de um lado para o outro lentamente. Não havia mais ninguém para além dele perto da máquina. Como um druida, tinha um capuz e uma espécie de cajado, mais ou menos da sua altura. Podia ver-se a sua longa barba branca. Já me tinha visto.
Olhei para a máquina. Precisava de a ver de perto. As águas negras do lago ocultavam a sua profundidade e espelhavam-se no tecto da gruta, reflexos verdes, azuis, amarelos, o mundo negro, onde as aparências deixam de ser, começava ali. Olhei para os meus pés perto da água. Ondas minúsculas batiam na rocha. Decido avançar, coloco um pé sobre a água.
Mal me preparo para dar um passo sobre a água fico nua. Estou neste momento em pé dentro de uma pequena embarcação que avança a remos. O remador coloca uma capa negra sobre o meu corpo imóvel. O druida está voltado para mim e espera-me.
Chegamos ao outro lado do lago. A embarcação pára para me deixar sair e volta a partir. Estou finalmente diante dele. É colossal. O movimento dos cascos é prodigioso. Estou siderada, penso, tento pensar mas não consigo encontrar um correspondente em nada que tenha visto ou ouvido relatar. Estou também a ignorar o druida, que se mantém num dos lados da máquina e me observa durante alguns minutos até começar a falar:
- O que vieste aqui fazer?
- Vim para ver.
Menti. Não sei porquê. Na verdade eu tinha feito a viagem para entrar na máquina e experimentar o seu movimento. Lembrei-me que estava nua por baixo do manto negro e tive medo. Queria perguntar-lhe qual era a moeda que tinha de pagar para poder dar uma volta no carrossel mas o meu ego causava-me embaraço. Ele continuou a falar.
- Vieste para dizer a palavra.
- Qual palavra?
- Tu sabes a palavra.
Então o druida removeu o seu capuz. Era um velho de barbas brancas que me olhava com o meu próprio rosto. O meu rosto masculino e envelhecido. Havia uma grande atração entre nós, que eu talvez não possa explicar. Ainda em choque, senti que poderia morrer às mãos dele. A sua mão ergueu-se com uma grande espada e quando me cortou o pescoço, a luz que emanei devolveu-me à vigília. Acordei a sorrir.
14 de setembro de 2013
Não houve em toda a minha vida nada mais importante do que ter tido uma irmã. A autobiografia não me interessa, a biografia interessa-me o suficiente. Tenho muitas histórias que aguardam o seu momento, que aguardam que os anos passem para as publicar, quando possam ser apenas um conto, literatura. Da minha irmã contudo, não consigo dizer nada. É a minha ficção mais profunda. Aquela que me devolve a minha própria imagem. A que vive onde não há nada, no espaço sem eco da grande incógnita.
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