14 de setembro de 2013

Não se sabe como ele apareceu mas foi ela quem durante anos e em segredo desbravou o caminho, longe de todos os outros caminhos, mais silencioso que todos os outros caminhos. Inebriado, quando ele chegou também não disse nada. E ela respondeu: O caminho não tem fim.
Não houve em toda a minha vida nada mais importante do que ter tido uma irmã. A autobiografia não me interessa, a biografia interessa-me o suficiente. Tenho muitas histórias que aguardam o seu momento, que aguardam que os anos passem para as publicar, quando possam ser apenas um conto, literatura. Da minha irmã contudo, não consigo dizer nada. É a minha ficção mais profunda. Aquela que me devolve a minha própria imagem. A que vive onde não há nada, no espaço sem eco da grande incógnita.

11 de setembro de 2013

Não sei se o mesmo acontece na vossa família mas na minha família há algumas histórias que são contadas à mesa repetidamente, nas poucas reuniões que ainda fazemos anualmente. São sempre as mesmas histórias, não muitas. Cada pessoa tem duas ou três histórias preferidas e a mesma pessoa a conta durante algum tempo, ou seja, ao longo de alguns anos. Por assim dizer, calha na conversa. Não é que decidamos «agora vamos para ali contar histórias antigas». Mas não sei se é natural e menos ainda posso assegurar que seja espontâneo. É um ritual que nos liga a todos e que serve para alimentar essa ligação. Penso que há como uma necessidade que nos constringe ao momento, mais ou menos raro por ser anual, e à escolha de palavras que vamos usar, porque estamos a lidar com coisas que por vezes já não lembramos bem. Somos todos muito atentos a esse momento e a essas palavras. Ninguém se levanta, ou se levanta, mantém o ouvido à mesa. Estas histórias renovam-se lentamente. A primeira renovação chega pela pessoa que a conta. Se a princípio foi a minha mãe ou o meu pai que ouvimos contarem a história que vou contar a seguir, mais tarde, aos poucos, outras pessoas começaram a contá-la. A pessoa que a conta parece por vezes usá-la como homenagem à pessoa de quem se fala na história ou então parece querer fazer reviver o acontecimento, e em primeiro para o reapresentar a si próprio. A segunda renovação chega pelo nascimento. Um filho, um neto, um sobrinho, um bebé faz renovar a vida de uma família essencialmente porque as histórias são novas. É assim que, nos almoços e jantares de Natal, de Páscoa, de alguns aniversários mas também nos funerais, nos vemos uns aos outros a pensar através das ficções que vamos narrando uns aos outros.

Aos cerca de 3, 4 anos eu não conseguia dormir. Não era falta de conforto nem preocupações nem medo do escuro a tirarem-me o sono. Os meus pais não conseguiam encontrar a razão. Eu não chorava nem me queixava, apenas não dormia. O médico também não soube explicar e não havia outra criança que sofresse do mesmo mal com quem os meus pais me pudessem comparar. Ora, o meu pai gostava de ver a TV2. Na altura havia um ciclo de filmes semanais (que entretanto regressou) que se chamava o Cinco Noites, Cinco Filmes e que consistia em cinco filmes sobre uma determinada temática ou autor ou protagonista a emitir nas cinco noites dos dias de semana à mesma hora. Assim, por exemplo, houve a semana dos Westerns e a semana do Hitchcock, a semana do cinema italiano, a semana do cinema francês, e por aí fora. A luz ficava apagada com a sala iluminada apenas pelo écrã. O meu pai sentava-se no sofá mais perto da televisão e eu queria sempre ficar mas era forçada a ir para a cama enrolar caracóis. Lembro-me de ficar a ouvir o filme, de olhos abertos, até adormecer; ouvia-se um ruído de electricidade para além do som do próprio filme. Até que um dia os meus pais me deixaram ficar.
Nesse dia estava sentada no sofá grande, oposto à televisão. Eles perguntaram se eu queria ficar, eu disse que sim sem um som, com a cabeça. Eles estavam os dois à porta, os dois a fechar juntos a porta, já do lado do corredor, com a porta meio fechada. O meu pai disse à minha mãe «Não te preocupes, não faz mal» e a minha mãe ainda preocupada acabou por aceder. Senti alívio. O alento de quem fica livre. Escondi-o profundamente porque não queria que mo voltassem a levar.
Então comecei a sentar-me ali praticamente todos os dias da semana até aos 18 anos. Ficava a ver os filmes e quando a sessão acabava desligava a televisão e ía para a cama. E foi assim que vi pela primeira vez filmes de terror, sozinha, no escuro, com 3 ou 4 anos. A minha irmã, que ao contrário de mim era muito medrosa, não queria nem ouvir falar disso. Só a sugestão do tema (como «filme de...») já a assustava ao ponto de não conseguir ela dormir ou começar a chorar. Ela sonhava com o terror que não queria imaginar. Nos olhos da minha mãe vi inverosimilhança durante muito tempo. Depois foi ela quem transformou a história em piada a ser contada à mesa anualmente. Transformou em piada o que saía da norma e que ela não conseguia entender. Ainda hoje ela diz que não percebe como eu conseguia ver aquilo sozinha e afirma peremptoriamente que nunca viu outra criança a fazê-lo. Uma criança a ver filmes de terror impressionou toda a gente mas, não sei porquê, a impressão que esses filmes me causavam a mim era tão excitante que era impossível ter medo. O que eu via era tão surreal, tão surpreendente e por vezes tão poético, que me acontecia frequentemente rir. Lembro-me da descoberta desse pensamento fundador de que a criatividade torna tudo possível enquanto via um deles.
Não sei porquê, nunca mais vi filmes de terror. Todo o entusiasmo que em criança tinha por eles se desfez. Mas o hábito fez-se e vi outros filmes. Também vi filmes com bolinha. Enquanto crescia vi os filmes de Bergman, de Tarkovski, os musicais americanos, o Eisenstein, o Chaplin, o Manoel de Oliveira, a Marylin, o Woody Allen e outros na televisão da casa dos meus pais, sozinha. Filmes que continuei a ver e a rever. Na cidade onde nasci, um deserto menos movimentado que o Sahara, onde à época nem havia cinema, este hábito teve o seu quê de salvífico. Talvez por isso a história surja à mesa quando alguém quer falar de mim.

10 de setembro de 2013

私は夢を見た夢の中で夢を見ています

Watashi wa yumewomita yumenonakade yume o mite imasu.

Estou a sonhar dentro do sonho que me sonhou.

8 de setembro de 2013

A contraste do pensamento abstracto, o problema do pensamento analítico é o mesmo do nazismo: a assumpção de primazia. É o pensamento dos mercados, totalizante, sintético, redutor. As perguntas sem resposta, como aquelas que as crianças formulam, não têm aqui lugar. Mas mais do que reduzir a interrogação a uma fórmula que não admite divisões, o pensamento lógico exceptua o pensamento alheio. Não é só a diversidade que está em causa mas a capacidade da dúvida, enquanto matéria criadora. O saber unívoco está sob a grande ameaça do poder.
Daí que o grande projecto da lógica tenha sido sempre a instauração de um sistema de linguagem, uma linguagem analítica que destruísse os problemas filosóficos (coisas estranhas que não se podem conhecer como a estética, a ética, o significado da vida e a fé). Trata-se portanto de um projecto de selecção. Uma selecção pela linguagem. O critério é muito simples: o teu problema ou é falso ou é verdadeiro e pode ou não pode ser verificado. Caso não entre nestes critérios, caput, o teu problema não existe. É essa grande frase de Wittgenstein, corrijam-me à-vontade pois vou citar de cor, "O que pode ser dito pode ser dito claramente mas aquilo de que não podemos falar devemos calar. O que está oculto não interessa.", (devo ter comido umas palavras mas é este o sentido).
O que me irrita – e me fez levar a lógica na garganta tantos anos – é que estes rapazes passam a vida a querer que a gente imagine coisas. Situações, proposições, na lógica analítica nada é feito sem o auxílio da imaginação. Podia ser literatura. Podíamos fazer com a lógica o que o Italo Calvino fez com as cartas de tarôt, quando pegou nelas sem saber nada de tarôt para contar uma história a partir das gravuras nelas inscritas. E a imaginação não é passível de demonstrações verificáveis. Uma coisa é o quotidiano, outra coisa é a vida onde esse quotidiano se dá.

6 de setembro de 2013

La croissance à l'absence du désir habite tout enfant. Tout créateur est un enfant habité pour le désir dont il faudra faire le deuil.

Marie-José Mondzain, Cultura do Possível e Fundação da Vida Pública, conferência na Fundação Calouste Gulbenkian.

O mais terrível dos crimes é a obliteração do real. E o desejo é o que cumpre plenamente a obliteração do real. Com a sua solidão inexaurível, a loucura mantém com o real uma relação de forças nostálgica.
O André Téchiné tem um filme chamado Les Voleurs onde a certa altura uma personagem diz uma frase que me entrou pelos ouvidos como um comboio: «nous ne faisons que remplacer». Hoje um amigo disse-me a mesma coisa: «estamos sempre a substituir». Fez-me lembrar uma carta que tem uma frase que sei de cor desde que a li a primeira vez. Recebi-a na véspera do meu casamento e dizia o seguinte: «Pessoas como tu e eu — e escrevo-te isto com as mãos a tremer — terão sempre um vazio.» A verdade é incontornável, mesmo em dia de bodas.

2 de setembro de 2013

Durante anos a fio o meu destino de férias foi a Nazaré, primeiro com os meus pais e mais tarde com a minha tia, uma bela mulher loira de olhos azuis na altura com os seus 30 e poucos anos. Com a minha irmã, éramos portanto três loiras de olhos azuis que os nazarenos recebiam nas ruas e nos mercados com o seu francês, inglês e alemão cantados mas nunca em português.
Há dois piropos desses anos, colectivos por sinal, que nunca esqueci. Um deles não será original mas foi o meu primeiro piropo. Íamos na autoestrada, primeiro dia de férias e levávamos o vidro aberto. Um carro colocou-se a par do nosso e os rapazes lá dentro começaram a gritar piropos, empoleirados nas janelas, um a seguir ao outro, o condutor a apitar, não fosse o estardalhaço ser pouco. A minha tia se tivesse um buraco tinha-se escondido, vermelha que ficou. Eu e a minha irmã nem estávamos a perceber, ficámos assustadas a princípio. Depois quando ouvimos o que eles diziam, desatámos a rir. As férias estavam ganhas, tínhamos recebido o nosso primeiro piropo!
Noutro ano, eu devia ter uns 14, 15 anos, já podia sair à noite e quando acabei de jantar entrei pelo labirinto antes de me dirigir à praça ao encontro dos amigos. Era tarde e a noite não caía, a cal das paredes cegava, cheirava a creme Nivea e a peixe seco. Após uma esquina, dou de caras com um enorme grupo de homens sentados na esplanada de um restaurante. Adivinhando o que seguia, acelerei o passo. De repente eles aparecem à minha frente. Tinham todos o mesmo fato branco, camisa negra, gravata vermelha e chapéu. Sempre sem parar, juntaram-se e caminhando para trás começam a cantar a Garota de Ipanema. Cantaram a música do início ao fim, sempre a caminhar para trás (que eu não dei mole e nunca parei de andar), com várias vozes e uns batuques. No final tiraram os chapéus e foram embora. Depois disso, fazer parar o trânsito não me pareceu nada de especial.

Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
No doce balanço, a caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar
Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor

31 de agosto de 2013

Entro no Mercado do Bolhão, junto-me aos turistas que tiram fotografias. Atrás de mim, alguém que vem a entrar diz: «Two or three months ago I dreamt about a place like this.» E então eu vejo os nossos sonhos a nascer dentro dos corredores, escada acima, escada abaixo, na boca dos vendedores, nas facas, nos baldes, debaixo das bancadas, uma matéria num devir que nunca cessa.

7 de agosto de 2013

Num restaurante, fico sentada atrás de uma montra à frente da qual está sentado um rapaz a pedir e leio-lhe nos lábios o solilóquio.
No jardim de um museu, dois cigarros fumados de seguida para expelir o fumo em direcção a um raio de sol sob uma árvore.
Numa loja reparo em pessoas que se escondem como leprosos, quando os empregados se dirigem a elas.

4 de agosto de 2013

Há muito, muito tempo atrás, ocultava-se por entre as densas florestas e profundos vales de uma grande montanha, um pequeno mosteiro budista. Nele habitavam 10 monges e 10 monjas que viviam abnegadamente, cumprindo com afã rituais e tarefas, praticamente os mesmos todos os dias.
Os monges acordavam antes do sol nascer e adormeciam quando a noite estava completa. Os seus dias eram límpidos, cheios de trabalho e mantinham entre si o zelar do silêncio. No fim do dia contudo, os 20 monges reuniam-se em redor de uma fogueira e nessa altura, podiam falar. Um dia, um monge pequeno e careca mas com uma longa barba branca, contou a história da filha do pedreiro da sua aldeia, nas margens do rio Nejanra, que enfrentou um vil imperador. Um monge sábio e respeitado por todos gostava de contar anedotas, por isso quando se preparava para falar, um sorriso surgia atrás das orelhas dos seus ouvintes. Havia uma monja cujas palavras se dirigiam ao coração e outra que tinha o dom de interrogar.
Entre as 10 monjas havia uma cuja beleza era a primeira coisa que todos queriam ver pela manhã. A sua prática era irrepreensível e devotada. Quando não estava a trabalhar, retirava-se para a montanha ou sentava-se na Sala do Buda do Umbigo Aberto. Nunca falava.
Entre os 10 monges havia um que era muito jovem. Tinha uma memória prodigiosa, uma imaginação arrebatadora, um raciocínio quase exótico e a modéstia do seu discernimento fazia com que até os animais o procurassem.
Cuidava do Poço das Relíquias Azuis, ocupava-se com a lavandaria e com a plantação na encosta mais íngreme da colina, a que os monges mais frágeis eram poupados.
O jovem monge observava de longe a devota, sem saber como aproximá-la. Um dia, decidiu escrever-lhe uma carta.
Todos os dias o monge deixou cartas de amor à porta do seu quarto. No entanto, quando regressava à porta do quarto da monja para deixar uma nova carta, o monge reencontrava a que tinha deixado na noite anterior.
Durante o dia, enquanto trabalhavam, os seus olhares cruzavam-se. O jovem não entendia a ausência de um sinal da bela mulher. Debatia-se com a sua conquista, procurando ser mais persuasivo a cada nova carta. Mas nada parecia interferir nos ritmos da monja, que continuava a isolar-se na Sala do Buda do Umbigo Aberto e partia longas horas para a montanha, regressando novamente para o meio do seu silêncio.
Um ano volvido, como acontecia todos os dias, a fogueira levantou-se e todos se reuniram. Neste momento tão íntimo, muitos queriam apenas mostrar-se gratos pelo cansaço que o dia trouxera. Mas neste dia, a bela monja levantou-se e deu um passo em direcção à fogueira. Como nada surpreende mais na vida do que romper com um hábito, todas as cabeças se voltaram para ela. Olhando para o centro da fogueira disse: «Se me amas, levanta-te.»

31 de julho de 2013

Depois de irmos andar de bicicleta pela primeira vez, continuámos a ir. As ruas do bairro rapidamente se esgotaram e o caminho das cobras (haverá uma história só sobre ele) não demorava muito tempo a percorrer numa ida e volta. Atrás da casa da minha avó havia campo. Colinas e mais colinas verdes, matas, figueirais, olivais, caminhos ladeados de arbustos carregados de amoras e marmelos no Verão. Nós fomos descobrir de bicicleta esses caminhos e um dia escolhemos uma colina. A nossa colina era o fim de todos os dias. Religiosamente, antes de ir para casa, quando já não nos apetecia descobrir mais caminhos, íamos para lá. E com o tempo, o tempo que ficávamos na nossa colina foi aumentando. Era um espaço resguardado, íntimo, sem promessas. E um momento de contemplação. Pura contemplação. Deitados na relva ao lado das bicicletas, ou encostados a uma oliveira, ficávamos em silêncio, os três. Por vezes conversávamos mas naquele ponto do dia a sintonia era tanta que não era preciso dizer muito. Agora que escrevo isto, sinto novamente vontade de me calar. O que é o tempo?

28 de julho de 2013

Nos seus jardins murados, os monges cultivavam ervas medicinais; num dado momento — ninguém sabe quando —, ocorreu-lhes a ideia de adicionar algumas ervas à aguardente, inventando assim o licor beneditino. Pode parecer estranha esta associação da vida monástica com o luxo das bebidas alcoólicas, mas o vinho foi sempre uma bebida permitida aos Beneditinos. Ligava bem com as suas refeições simples, constituídas essencialmente por pão, ovos, queijo e peixe. Embora a carne fosse proibida nos primeiros séculos, posteriormente algumas abadias adicionaram aos alimentos consumidos aves de capoeira e de caça, uma vez que o fundador não as mencionara expressamente entre as virtualhas proibidas. Em todas as refeições, porém, reinava o silêncio. Deste modo, a Regra de São Bento, posto que severa sob muitos aspectos, conseguiu atingir um certo equilíbrio entre a ascese e o comprazimento.

Enciclopédia Ao Encontro do Passado, Selecções Reader's Digest.

26 de julho de 2013

Em 1995 parti o fémur e em consequência disso descobri que, para além de um crânio negróide e não caucasiano, uma lordose lombar acentuada e mais duas ou três características que não vale agora a pena mencionar, herdei da raça negra, por linhagem do meu avô materno, uma coisa chamada quelóides: uma lesão saliente que pode ocorrer na cicatrização e que por ser muito comum nas peles negras, algumas tribos africanas usam para fazer uma espécie de desenhos na pele, como uma tatuagem sem tinta. Portanto, depois da operação e apesar de duas operações plásticas, fiquei com várias cicatrizes grandes no corpo, isto é, compridas, grossas e escuras, encontrando-se a maior de todas elas na nádega direita.
Eu tinha 19 anos e isto arrasou-me. Não deixava que ninguém visse as cicatrizes que eu própria tinha dificuldade em observar e não conseguia aceitar o corpo que, anteriormente angélico, estava subitamente marcado para lá de Bagdad. Ainda por cima, por serem diferentes de tudo o que alguma vez tinha visto, era como se aquelas cicatrizes trouxessem à visão algo daquilo que, por doer demais, preferiríamos não nomear. Era como se agora eu fosse obrigada a nomear uma coisa a que nunca deveria ter sido dada existência.
No Verão do ano seguinte, fiz uma pequena viagem com uma amiga e passámos uns dias na praia da Nazaré, que ela não conhecia. Apesar do calor, e apesar do discurso dissuasor da minha amiga, lá andava eu com o meu pano sobre o corpo, que só tirava à beira-mar para entrar na água. Tínhamos acabado de chegar à praia, após um passeio pelo labirinto da Vila. Naquele dia, o céu cinzento tornava o calor ainda mais intenso. Estávamos a ler, à espera do sol para ir tomar banho. Deixei-a frente ao mar. Levantei-me para ir à casa-de-banho e atravessei num passo lento a praia até às casas-de-banho públicas perto das rochas. Senti-me grata por a praia ainda estar quase deserta àquela hora. Quando comecei a lavar as mãos, pousei o pano no lavatório ao lado e entrou uma mulher com o filho, uma criança com cerca de 3 ou 4 anos. Ao passar por mim, o miúdo toca em cheio na minha grande cicatriz sobre a nádega direita e diz: «- Qué ito?» Olhei para os seus olhos enormes à espera de uma resposta e tranquilizei a mãe que o arrebatava para longe do meu corpo. Sorri e respondi: «- É uma cicatriz.» Ele continuou: «- O qué uma ticatiz?» E eu continuei a responder: «- É quando fazemos uma ferida grande e depois temos de voltar a fechar. Fica lá a marca. Tu também já fizeste uma ferida não já?» Ele disse logo que sim. Satisfeito com a resposta, continuou a sua vida e voltou-se para a mãe para que ela o levasse à casa-de-banho. Nunca nos chegámos a despedir.
A sua inocência deixou-me perplexa. Enquanto vestia o pano, já sem muita convicção, pensava que de facto era apenas isso, nada mais do que isso: uma cicatriz. Voltei a atravessar o areal. O sol começava a espreitar. O mar brilhava. Entre mais um e outro pensamento, voltei a sorrir e retirei o pano enquanto caminhava. Foi nesse momento que dei o salto.

24 de julho de 2013

Pessoas com sofás. Pessoas que trazem um sofá para casa. Primeiro pensam que precisam de um sofá. Há um espaço vazio na sala, onde devia estar um sofá. Ou então o sofá está velho, gasto, tem nódoas, um pé partido. Imaginam um sofá novo, com um padrão novo e pés novos. Vão à loja, procuram na Internet pelo sofá certo. Nesse momento o sofá, a coisa que preenche o espaço, já começou a existir. Depois encontram um sofá que corresponde ao que querem ter. Pagam. Pagam também o transporte, dois homens e uma carrinha trazem o sofá no dia e na hora combinados até ao destino. O sofá novo chega, embrulhado em plástico bolha. Ter um sofá é um momento sério na vida. A vida acaba no instante em que os homens que fizeram o transporte saem e se contempla o sofá adquirido, da mesma maneira que um rio acaba quando chega ao mar e que um dia acaba no crepúsculo. Um sofá novo é o princípio de qualquer coisa que já acabou.