O segundo rosto, mostras aos amigos íntimos e à família.
O terceiro rosto, nunca mostras a ninguém.
Uma semana na cidade onde nasci. Caminho em ruas conhecidas que desembocam em ruas que as obras, as construções e as demolições desfiguraram e me devolvem com dureza a imagem de acontecimentos importantes cujo lugar desapareceu totalmente. Há muitas casas em ruínas, algumas semi-demolidas para precaver desabamentos no passeio. Há ruas onde me custa passar porque me apetece ficar, ruas onde passo vagarosamente para observar e outras onde passo a correr, suspendendo a respiração para não ser contaminada por nenhuma memória. De porta em porta, a infeliz constatação de que o comércio no centro histórico continua a fechar é partilhada com a surpreendente sobrevivência de lojas que permanecem iguais há 30 anos e mais. As lojas abandonadas, cujas montras estão tapadas com jornais desbotados do início do século, não foram substituídas, nada surgiu no lugar delas, nem outros negócios nem casas. O rio vai cheio. Quase a transbordar depois das chuvas deste inverno, a água é verde e branca, como se as mulheres ainda viessem lavar. Aceno com carinho ao meu cunhado quando os nossos olhares inesperadamente se encontram através de uma janela, eu na rua e sem destino, ele no seu escritório a trabalhar desde cedo. O sentimento consolador de poder ver a minha família todos os dias e a qualquer hora é tão raro que me parece que a cidade nos pertence. Tenho prazer em percorrer a cidade a pé, mas não quero cruzar-me com ninguém. As conversas apressadas e aborrecidas (abomino o afã que leva ao lugar comum) com pessoas com quem não convivo há 27 anos, limitam-se quase todas aos tradicionais votos de fim de ano ou aos tradicionais inquéritos que exibem a consternadora hesitação entre serem dirigidos a uma fulgurante adolescente e também a uma mulher com cabelos brancos, solteira e sem filhos. Um amigo de quem me afastei há muito, chora com a frieza da minha resposta à incompreensível exigência Porque é que nunca apareces? Não me comovo e já não fico assustada por não me comover. Enquanto me afasto, gozo o conforto de talvez ter conseguido resolver a coisa pela raiz. Arranco a alegria a um corpo arrebatado pela deriva. Quem fui eu? Aquela que quis partir. Resta alguma coisa dela? Uma semana, uma missa de sétimo dia, um funeral e a notícia de outro a que não cheguei a tempo. Enquanto abraço antigas colegas de escola, percebo despreocupada que o inconformismo que me separava dos outros desapareceu. No cemitério, a minha irmã leva-me à campa dos meus avós e nas suas fotografias, os rostos familiares e vivos confundem-me como sempre, não restando à repulsa inexprimível mais do que vomitar umas quantas lágrimas grossas que já não sei o que significam. Outros mortos — que fui eu que matei bem matados, ao longo de muito tempo e com as minhas próprias mãos —, a contingência me força a encontrar sempre que venho. Aqui, não há escolhas. No Instagram, onde publico fotografias dos meus passeios, recebo mensagens que elogiam a beleza da paisagem. Onde estava esta beleza quando cá vivi? Por muito que me esforce, o que assome é a inundação da biblioteca e o posterior encerramento por mais de uma dezena de anos, o incêndio no jardim-infantil, o fecho do Cine-Teatro Virgínia cujas ruínas me contemplaram até à partida, o fogo estival na serra, o salão de jogos com a máquina de Tetris e as mesas de Snooker de onde saía carcomida pela solidão, o Trampolim, um café onde dançava e hoje não sou capaz de entrar, e opressão, opressão, opressão que me esperou ao raiar desde que me lembro e de que me despedia diante de uma estrela que brilhava mais forte diante da janela do meu quarto, à qual todos os dias prometi sair dali mal conseguisse. Enquanto revisito mais um lugar, lembro-me que é sobre isto que escrevo. Sobre tudo isto, sobre este lugar. A derrota sucessiva de todos os meus espantos trouxe-me aqui, a um apagamento que não tenho qualquer intenção de repor.
é um processo negativo
Procuro adaptar o meu olhar àquilo que vejo e que identifico de imediato, todavia, hesitando em reconhecer: as imagens que a Margarida me envia por email são impressões de panos de cozinha dobrados, redobrados, calcados e retorcidos. Provêm de uma obscuridade quase total, uma sombra cuja integridade parece conferir alguma eternidade àquilo que vemos — pois só a sombra é eterna.
Estão guardados há muito? Serão antigos? Ou terão sido retirados de uma gaveta na cozinha onde se acumulavam aos poucos, alguns usados e outros novos, comprados para se substituírem pouco a pouco? Os panos de cozinha remetem-me para um ritual antigo, uma dinâmica da casa que, faço subitamente a associação, talvez um pouco disparatada, é também a do artista. Abrem-se e fecham-se arcas, gavetas, armários, nelas se guardam e delas se retiram os panos, ativando o ato mágico de revelar uma força, uma imagem, uma linha, um signo. Invade-se as cozinhas para roubar água, plantas e panos que se levam para o atelier, mas o que aí se cozinha não tem receita. "... [A]rt itself is a sort of thinking thing, it's not spontaneous and it's also not conceptual", diz a Margarida no lúcido Artist Statement que escreveu.
A cabra-cega [blind man's buff] é um jogo recreativo em que um dos participantes é vendado e fica encarregue de procurar agarrar os outros, que, livres à sua volta, o incitam a apanhá-los (a palavra buff é aqui utilizada na sua aceção antiga de um 'pequeno empurrão'). Para isso, visto que não os pode ver, terá de descobrir onde estão. Por sua vez, aquele que for agarrado, passará a ficar com os olhos vendados. Permanecendo como uma constelação à sua volta, os jogadores fogem da pessoa vendada e ao mesmo tempo tocam-lhe ininterruptamente, colocando-se em perigo de perder para a desafiar.
Que massa embrulham estes panos?
"As dobras dão-nos acesso ao possível na obra.", diz Georges Didi-Huberman. A dobra, é o próprio movimento da vida, aquilo que se acha a viver. Estes desenhos, onde um volume vivo emerge do branco primitivo do papel, convertem-se em escultura aos nossos olhos. Não é já a pintura, que trabalha com traços numa superfície, é sobre desafiar o papel e dar-lhe, senão uma profundidade, um volume que nasce. A dobra dá profundidade, mas sobretudo acentua o movimento e o tom do movimento, sereno ou vulcânico. Talvez por isso, nada é mais difícil de representar do que as dobras e as suas formas estruturadas, por vezes, de acordo com uma lógica geométrica difícil de identificar. A dobra — e apenas a dobra — tem o potencial de desfigurar uma representação quando quer ser fiel à realidade. Um pano usado para conter alguma coisa. Um pano usado para esconder alguma coisa. Um pano usado para formar camadas sobre si próprio. Uma marca causada por uma dobra. Rugas, ondulações, envelopes, formas, quedas. Panos engelhados, diz-se, amarrotados, enrugados, encarquilhados, secos, retesados. A dobra esconde e revela, mostra e oculta. Apresenta-se e declara uma ausência, formula aparências, revela desaparecimentos. Converte-se em sinónimo tanto do que nos rodeia como do que encerramos. Leio algures e levada pelo entusiasmo esqueço-me de anotar onde: a dobra é a forma do fundo.
Mas é a dobra que fascina, não o fundo.
Tenho tendência para ver sempre uma intensidade em cada dobra, em cada massa que, inerte, parece contorcer-se ou para se subtrair à sombra ou para nela cair continuamente. Não sabemos. No processo negativo da monotipia, em que todos os elementos colocados na matriz de vidro (base) sairão impressos ao contrário, a Margarida destaca aquilo que se opõe ao desenho, que se forma quando acrescentamos tinta a uma superfície: «é um processo negativo, de retirar a tinta, para depois imprimir os restos que ficam na chapa.» Uma vez que os panos pousam na chapa da prensa de gravura onde estas imagens foram impressas, o processo passa a estar oculto e o desenho desaparece para apenas ser visto quando o pano é retirado. «Só quando saía da prensa», diz-me a Margarida, «é que via como tinha ficado». Como num jogo de cabra-cega, algo espicaça como vento no mar. Talvez nem hoje, nem aqui, o barco tenha estacionado. Há que confiar nos ventos. Sem eles não haveria viagem.
"I look at it [o desenho] and it tells me what I wanted to find, not knowing it yet; at the same time, it keeps its idea mysteriously closed in itself, never fully exhausting or losing it."
Margarida Garcia, Artist Statement.
Vinha a descer a rua da Voz do Operário. Ainda conhecia mal a zona, nunca tinha lá vivido e os meus percursos eram sobretudo no Norte da cidade, perto da faculdade e, ocasionalmente, também no centro, onde atravessava rapidamente o Rossio e a Rua Augusta para chegar à beira-rio. Neste dia vinha, por isso, a descer uma rua praticamente desconhecida, um prazer a que me dediquei tanto quanto pude. Vinha a descer a rua deserta, vi o rio ao fundo, o passeio apertado pelos carros estacionados, a estação que mudava quase impercetivelmente no ar. A mochila nas costas carregava tudo o que podia precisar. Um pensamento muito simples percorreu o meu corpo num leve frémito: «Sou livre». Mal o pensei, vi esta parede do outro lado da rua. Uma frondosa trepadeira preenchia-a inteiramente. Não tinha nada de especial aquela parede, igual a tantas que tinha conhecido numa infância vivida numa pequena Vila no interior. Continuei a desviar-me dos carros para descer, deitando-lhe um olhar de soslaio. A parede era muito alta e os ramos chegavam até ao chão. Subitamente, uma rajada forte de vento intromete-se entre a planta e a parede e levanta os longos ramos num sopro. Do outro lado da estrada, parei. Decidi encostar-me à parede e ficar a ver. Tinha tempo, ninguém me esperava. Ainda havia sol. Ajeitei mansamente o corpo contra a parede para que ficasse a bater-me na cara, mas o frio de um fim de tarde de outono, altivo e hostil, transpunha perverso o limiar da minha manga. Aconcheguei a roupa, ajustei o casaco e a gola. Não pretendia ir-me embora. O vento voltou a tocar na trepadeira, por vezes levemente, outras vezes com um vigor a lembrar tempestades em alto mar. Como a densa juba de uma mulher, os ramos da trepadeira subiam e desciam lentamente, mais alto ou mais baixo conforme a investida. Fiquei até o frio ser insuportável e a luz estar cheia de sombra. A primeira vez que comecei a descer a rua para regressar a casa, fiquei com pena de não ter ficado com um registo da trepadeira. Voltei atrás, tirei a máquina fotográfica da mochila e comecei a filmar, a tremer de frio. Foi apenas nesse momento — e através da máquina — que reparei nas folhas da trepadeira. As cores eram inumeráveis. Verdes, amarelas, rosa, castanhas, vermelhas, escuras, claras, secas, novas. Filmei durante muito tempo e depois, receando que a minha falta de destreza tivesse conseguido um mau registo de um momento genial, tirei esta fotografia que, como se pode constatar, é tão má como a filmagem, entretanto perdida. Mas assim lembro-me. Os ramos da trepadeira subiam e desciam e perguntei-me se poderia ser a única pessoa no mundo a testemunhar aquela beleza. Perguntei-me, para ser exata, se essa beleza poderia ter sido feita apenas para mim, embora tivesse gostado de a partilhar, se aquela golfada de vento que parecia falar-me seria uma entidade com uma existência tão irremediável quanto a minha e me visse. Sabia, contudo, já nessa altura, que não vale a pena fazer alarde da beleza. A beleza é sempre incomensurável e nós, sobretudo quando somos jovens, estamos sempre sozinhos em alto mar.
Em minha defesa, os meus seios esquecidos. Em minha defesa, o cabelo
que ninguém me apartou da cara. Em minha defesa, as minhas ancas.
Meses antes, lembro-me de pensar que o sexo era um barco desaparecendo
no horizonte. Nada conseguia fazer senão enterrar os meus pés na areia.
Senti falta de todas as coisas que a solidão me ensinou: olhos que te seguem
quando atravessas uma sala, mãos que acham casa em ti. Ser notada. Até.
Em minha defesa, as suas mãos. Em minha defesa, os seus braços. Em minha defesa,
o modo como sentados ficávamos somente a ouvir a respiração um do outro, ele disse, isto chega.
O meu corpo era uma casa que eu fechara para o inverno. Não devia ter sido assim
tão difícil, vazia que ela estava. Ainda assim, olhei longamente antes de apagar as luzes.
O meu corpo era um espectro que me assombrava, que aparecia quando me despia
na casa de banho, quando me enfiava em camas vazias, quando chovia.
O meu corpo era construção abandonada, andaimes de restauração
que se tornaram permanentes. O meu corpo inacabado tornou-se o meu corpo acabado.
Pelo que, em minha defesa, quando ele me tocou as luzes do meu corpo acenderam.
Em minha defesa, as janelas abriram de par em par. Em minha defesa, primavera.
Cristin O’Keefe Aptowicz
[Tradução de Valério Romão].