29 de junho de 2018
aquilo que me impressiona na religião cristã, é a ideia de um deus vivo. os gregos acreditavam em deuses com características antropomórficas, não só na aparência, mas também no caráter. assim, os seus deuses podiam sentir ciúmes, inveja, injustiça, medo, raiva e qualquer outro sentimento humano. as deidades dos gregos brigavam entre si, lutavam entre si e conspiravam umas contra as outras. não há falta de deuses cruéis, traiçoeiros, adúlteros, incestuosos, mentirosos, assassinos e até mesmo embriagados, para nomear apenas algumas das suas características. para além disso, também acreditavam que os deuses se podiam apaixonar pelos seres humanos e gerar filhos com eles, a quem era dado o nome de semideuses. embora imaginassem os seus deuses muito maiores em tamanho e ultrapassando os homens em beleza e força, os seus corpos eram retratados como corpos humanos e, nas suas veias, em vez de sangue, fluía icor. era possível infligir-lhes feridas dolorosas, mas na realidade os seus corpos eram incorruptíveis, pois as feridas saravam e, à exceção dos semideuses, a sua juventude era eterna. os deuses gregos comiam, bebiam, dormiam, tinham relações sexuais entre si ou com humanos, viviam como uma família, brigavam e lutavam, seduziam e violavam. podiam deslocar-se entre os humanos de forma visível ou invisível. já os romanos não se interessavam tanto quanto os gregos pela criação divina e simplesmente adoravam os seus deuses com a certeza de que isso os agradava. ao contrários dos gregos, viam-nos como soldados, como se a todo momento estivessem preparados para a guerra. e nisto aparece o deus cristão, um deus que, em todo o mistério daquilo que revela aos homens, interage com a sua criação. o termo deus vivo é utilizado pelos cristãos para marcar a diferença com os deuses pagãos adorados na Antiguidade. no Antigo Testamento, as referências a esses deuses são feitas usando palavras que em hebraico significam inúteis, vãos, pobres, ocos e sem substância. são deuses inanimados, imagens criadas pelo homem, o oposto do deus vivo que se revela. muito mais que uma energia ou força, o seu espírito, omnisciente em relação às coisas do passado, do presente e do futuro, sem princípio nem fim, mostra-se em claro desafio desses deuses que nada sabem. o que me parece decisivo é, de facto, que o deus vivo não apenas se revela na sua criação, mas participa da vida dos que acreditam nele. o que quer isso dizer? que, sendo criador, se manifesta na vida da fé como criação. o deus vivo confunde-se com a própria vida daqueles que nele crêem, manifesta-se através de um comportamento aberto à fé, ou seja, através do amor. e o que é o amor? uma relação. deus em relação connosco é o que as escrituras fizeram chegar até nós. ora, a situação afetiva vincula-nos à existência mais do que a consciência, do que o entendimento, é por ela que somos determinados. o deus que se oculta na essência das coisas é também o deus que fala através delas ao ser amoroso que o testemunha.
26 de junho de 2018
boa parte da minha vida mental é passada a pensar em lugares onde nunca estive. sempre foi assim. quando era criança pensava que queria conhecer os desertos e quando era adolescente era ainda com os desertos — de fogo e de gelo —, mas também com as florestas e com os oceanos que sonhava. contudo, conta-se pelos dedos de uma mão as vezes que saí de Portugal. a falta de dinheiro, pelo menos assim avalio, impediu-me de viajar com a frequência que desejei. quando pude, no entanto, viajei dentro de Portugal e há ainda muitas viagens que gostaria de fazer pelo país: dormir no Palácio Hotel do Buçaco, por exemplo, ir ao Pulo do Lobo, em Mértola, ou conhecer os Açores e a Madeira. recentemente, porém, dei por mim a pensar no que iria eu fazer a Nova Iorque, à cordilheira dos Andes ou ao monte Evereste. percebi então que gosto das pequenas viagens, com um ojetivo preciso e circunscrito: assistir ao festival de ópera de Bayreuth. conhecer a casa onde Virginia Woolf escreveu. fazer praia numa pequena ilha grega e de lá não sair. ir às catacumbas em Roma. viajante solitária, de resto, por parolo que isso possa parecer, é em Portugal que quero estar, entre os costumes que conheço, a língua que falo, a paisagem que por aqui se avista. não me chama ir ao gigante Japão, à Índia, à Austrália, sequer ao Brasil. são, com toda a certeza, países belos, lugares cheios de maravilhas, enfim, simplesmente (e isso me basta) lugares onde nos podemos confrontar com o Outro. sendo eu própria uma imigrante, pergunto-me muitas vezes na minha vida em Lisboa até que ponto estou aberta à diferença e, a bem da verdade, por ignorância ou por puro preconceito, nem sempre a resposta é satisfatória. porque se viaja? para romper com a rotina, para nos enriquecermos espiritual e culturalmente, para nos libertarmos de padrões, para aprendermos a perder-nos. conheci em tempos um ministro do Mali que me disse que, na aldeia onde nasceu, o mais sábio não é aquele que mais viveu, mas sim aquele que saiu mais vezes da sua aldeia. Adama Samassekou acrescentou então que queria estar «nenhures, onde estão as pessoas e o esquecemos» (nulle part, là où sont les gens et qu'on oublie). a frase atravessou-me como um clarão e nunca a esqueci. percebi subitamente que iria sempre preferir os lugares onde não há nada para encontrar as coisas.
17 de junho de 2018
Nessa tarde, tomou um comprimido para dissipar a angústia que a devorava sem que conseguisse determinar a sua origem. Tomou-o sem convicção, apesar de ter hesitado durante vários dias em fazê-lo, a mesma falta de convicção que lhe parecia contaminar todos os atos que, força da rotina ou da vontade, realizava. Ponderou por instantes se seria essa ausência de convicção o motivo da angústia que a consumia, mas como seria possível saber qual delas nascia da outra? Não, tinha de haver outra razão. Algo estava a mudar, algo que não era, para o seu olhar atento, absolutamente imperceptível. Dirigindo-se à sala, reparou no grande silêncio daquela tarde de verão. Apenas se escutava o vento a passar por entre a folhagem das duas árvores diante da casa, fazendo as copas balançar-se ligeiramente e tocarem-se. O calor da rua não ganhava contra o fresco da casa, cuja penumbra era entrecortada por finos raios amarelos em direção ao chão perto da janela. O seu corpo parecia arrastar-se sugado por um peso obscuro que, nada dizia o contrário, podia ser o reflexo da angústia que a atormentava. Tinha de ir à loja se queria jantar, lembrou-se, e decidiu fazê-lo imediatamente. Observou enquanto se vestia como os membros do seu corpo eram como que atraídos para o solo e assim, mesmo contra a sua vontade, se moviam lentamente. No entanto, não tinha sono, não se sentia indolente, pelo contrário, a sua mente estava disponível, alerta, analítica, mas também serena, como um barco cheio de redes à beira-rio se prepara para a pescaria. Esse era, aliás, um dos sinais da angústia: como podia estar tão vigilante e ao mesmo tempo ter um corpo que não responde? Chamou o elevador e ficou, como sempre acontecia, a olhar para a luz verde do botão de chamada. Quando as portas se abriram olhou-se ao espelho pela primeira vez naquele dia. A tez estava pálida, tinha sulcos azuis abaixo dos olhos, os lábios eram quase indistintos, dois riscos profundos contornavam-lhe o pescoço, o cabelo, pintado, mostrava as raízes brancas, pois nos últimos tempos, causa da lassidão, se tinha descurado com o seu cuidado. «Se estamos a envelhecer desde o dia que nascemos, não é envelhecer que é triste, como se costuma dizer amiúde entre risos», pensou. «No entanto, se a um tempo da vida tudo me acrescentava em vez de me diminuir, a partir deste momento deixou de ser assim. Algo mudou e o que mudou, para ficar, porta a angústia, sim, a tristeza, que me tomou». Estava à deriva entre os corredores do supermercado com estes pensamentos fazendo um esforço hercúleo para se lembrar do que precisava de comprar, mas agora com certa leveza, pois qualquer coisa fazia sentido. Houve um tempo em que tudo era possível e esse tempo tinha definhado. Por muito que se dissesse que ainda tinha muito que fazer, reconhecia ao mesmo tempo que o fulgor da juventude não tinha produzido nada. O que restava da rapariga que fora aos dezassete anos? Sozinha, sem paixões, a vida era agora como o campo abandonado de uma festa, com as fitas coloridas no chão, os balões rebentados, os copos largados, as beatas amassadas e, em breve, seria o seu mundo a morrer. Era nisto em que pensava enquanto esperava na fila para pagar, quando subitamente, uma bela mulher, que já tinha visto uma vez, passa ao seu lado entrando no supermercado. «Agora só o amor te poderá salvar», pensa, «mas com essa cara macilenta não vais atrair ninguém». A felicidade não se torna habitual para ninguém, mas sim a sombra, concluía. A peste negra alastrava e corroía toda a alegria instalando a indiferença, a frieza e o distanciamento. Ou talvez sempre tivessem estado lá e era apenas a camada de tinta que as escondia que, aos poucos, desaparecia. Dizem que estamos vivos, mas na verdade somos apenas uma multidão muda e sem saída.
4 de junho de 2018
Tenho o privilégio de ter trabalhado com o Alexandre Esgaio neste conto, que ilustrou e a quem só tenho a agradecer. Está publicado na revista ESC:ALA #11, que podem ver aqui.
3 de junho de 2018
ao contrário do que nos querem fazer crer, começa-se a envelhecer num dia preciso. nesse dia, e não noutro qualquer, percebemos que a partir dali é sempre a descer. os acontecimentos do corpo acompanham-nos toda a vida e a mente parece esforçar-se por acompanhar e adaptar-se ao que, de súbito, constata que sucedeu. por exemplo, aqui há uns anos, uma conversa com um amigo impressionou-me brutalmente. dizia-me ele que o cheiro dos velhos se tinha instalado no seu corpo, substituindo irrevogavelmente o frescor da juventude. da sua pele, reparei imediatamente, emanava agora um cheiro ácido e metálico, próprio de quem perdera sem remédio o fulgor dos dias que vieram e se foram. embora há muito o meu corpo tenha começado a dar sinais de velhice, só esta semana percebi, como o meu amigo naquele tempo, que comecei a envelhecer, pois a amargura insidiosa de quem olha para trás e vê o vazio, quis encontrar lugar em mim e preencher-me. será que todas as recordações alegres desaparecerão? será que deixarei de encontrar a alegria? que quer de mim essa amargura do não-vivido? terei armas para a combater? não sei se a beleza, o viço e a vivacidade, terão também elas um lugar na velhice numa sociedade que a despreza. temos tão pouco controlo sobre o que vivemos e tão poucas respostas sobre o que é a vida. e porém, mesmo com o seu medo, a sua amargura, o corpo que falha ao levantar, ela renova-se.
29 de maio de 2018
28 de maio de 2018
numa das visitas que fiz ao Louvre, decidi ir ver a Mona Lisa. qual não é o meu espanto quando entro numa sumptuosa e larga sala onde o quadro, numa das paredes, está protegido por uma redoma de vidro. diante dele, uma multidão de turistas acotovelando-se aglomerava-se. aqueles que ocupavam os lugares mais atrás seguravam as máquinas fotográficas ao alto e apontavam disferindo flashes e olhando depois para os ecrãs. ninguém arredava pé dali. em bicos de pé, furando, alguns com crianças ao colo ou pela mão, procuravam chegar mais perto daquele que é tido pelo quadro mais famoso do mundo. perto dos cordões que delimitavam o acesso em torno dele, algumas pessoas demoravam-se e também tiravam fotografias. outros, mal chegavam voltavam costas e saíam da sala visivelmente desiludidos, quase ofendidos. nunca cheguei sequer a aproximar-me da zona em que está o quadro. sentei-me encostada à parede oposta e, atónita, fiquei a observar o magote. depois fui-me embora, reconfortada por nunca ter visto a Mona Lisa.
21 de maio de 2018
17 de maio de 2018
abandono a perfeição num misto de medo e de furor e rapidamente deixo de ter muros à volta. uma promíscua simplicidade envolve-me na habitação do mundo. entro nela sem repulsa e sem recusas, como se entra no deserto. não preciso de uma imagem para o meu próprio nome, sou um impasse sem revelações. onde antes a alegria entrava desmedidamente existe hoje uma melancolia espontânea, um dom lascivo, delirante, silencioso. sei de segredos irredutíveis, alguns insignificantes, outros origem de importantes mutações, com geografias, riscos, analogias — não fosse eu igualmente um princípio. tenho as portas e as janelas abertas, o meu gato olha para o reflexo da água no teto. enquanto me recordo do dia, concebo um mundo sem estirpes, entre o inesperado rigor de uma ampla partitura e uma imaginação profunda. tudo o que nele se manifesta é movimento e som, tem o inquietante sabor de uma potência íntima. é improvável que a possa compreender, mas não desejo interrupções.
7 de maio de 2018
5 de maio de 2018
um céu azul que desafia a coerência liberta-me de mil intentos e vejo-me lançada na grande planície do desejo. aqui tudo se oferece, mas nada se recebe. ao crepúsculo, a monstruosa — ainda que porventura sagrada — nostalgia da duração, abre um espaço crescente no corpo. a ela respondo com voracidade e deito por terra as perguntas que impõem limites: sou senão uma afirmação pungente, um vértice, uma graça irreconciliada feita para tocar e ser tocada.
3 de maio de 2018
Faz parar
O movimento, a gravidade, os homens do lugar
O horizonte, o calor, a bomba atômica
A correnteza, a multidão, a minha música
A tempestade, o cristal da minha lágrima
Faz parar tudo que move esse seu olhar
Seu olhar
Desperta o medo, o desejo, os homens do lugar
Os olhos negros, a cidade, a carne trêmula
A madrugada que eu guardava em minha música
O mundo inteiro que guardo em um lágrima
Desperta tudo que atravessa esse seu olhar
Vem dizer pra mim meu nome
Ponha as coisas no lugar
Vem mostrar a maravilha
Não me deixe desabar
Eu não sei o que é morrer
Eu só quero olhar
Faz parar
O movimento, a gravidade, os homens do lugar
O horizonte, o calor, a bomba atômica
A correnteza, a multidão, a minha música
A tempestade, o cristal da minha lágrima
Faz parar tudo que move esse seu olhar
Seu olhar
Desperta o medo, o desejo, os homens do lugar
Os olhos negros, a cidade, a carne trêmula
A madrugada que eu guardava em minha música
O mundo inteiro que guardo em um lágrima
Desperta tudo que atravessa esse seu olhar
Vem dizer pra mim meu nome
Ponha as coisas no lugar
Vem mostrar a maravilha
Não me deixe desabar
Eu não sei o que é morrer
Eu só quero olhar
Filipe Catto, Faz Parar.
22 de abril de 2018
no meu livro de horas #2
no meu livro de horas está inscrita a claridade da alvorada e tudo aquilo que em mim, de tão sombrio, se manifesta indizível. quando está aberto, nenhuma presença perturba a minha atenção, nem mesmo a da criança que não me chegou a visitar. no momento em que nada respira e onde apenas a luz se move, escrevo nele. o encontro com a gratuitidade do tempo é feroz, a mãe solar envolve-me. pensando que estão sozinhos, os animais olham-me nos olhos antes de desaparecer novamente, livres e selvagens. estou aqui, estou viva. e os outros? têm um papel difícil, sempre catastrófico: o de fugir à banalidade e ao espetáculo. como um silêncio que nos é oferecido em resposta à agitação do mundo, caminhamos lado a lado com a alegria inesperada do encontro. mergulhamos num espaço voluptuoso onde a espera e o vazio repousam sem regras e sem violência. somos viajantes da montanha, temos um tesouro entre as mãos. a nossa récita inscreve-se no branco da página, inefável e segura.
no meu livro de horas está inscrita a claridade da alvorada e tudo aquilo que em mim, de tão sombrio, se manifesta indizível. quando está aberto, nenhuma presença perturba a minha atenção, nem mesmo a da criança que não me chegou a visitar. no momento em que nada respira e onde apenas a luz se move, escrevo nele. o encontro com a gratuitidade do tempo é feroz, a mãe solar envolve-me. pensando que estão sozinhos, os animais olham-me nos olhos antes de desaparecer novamente, livres e selvagens. estou aqui, estou viva. e os outros? têm um papel difícil, sempre catastrófico: o de fugir à banalidade e ao espetáculo. como um silêncio que nos é oferecido em resposta à agitação do mundo, caminhamos lado a lado com a alegria inesperada do encontro. mergulhamos num espaço voluptuoso onde a espera e o vazio repousam sem regras e sem violência. somos viajantes da montanha, temos um tesouro entre as mãos. a nossa récita inscreve-se no branco da página, inefável e segura.
8 de abril de 2018
o balneário
entrei para imediatamente me deparar com a nudez das poucas mulheres que o ocupavam, ou seja, com o extraordinário. descalças com uma toalha à volta do torso ou do pescoço, dirigem-se para a zona dos duches ou regressam ao seu cacifo para se voltarem a vestir. há uma que fala ao telefone: sentada nos bancos, indiferente ao que se passa à sua volta, olha para o chão e abre e fecha uma das pernas. é muito alta e quase não tem pelos, o cabelo comprido tapa-lhe o rosto. a sua lassidão é de tal forma atraente, que fico a pensar que também devia tirar os meus pelos. também devia ser magra, alta e estar sentada como numa pintura, com as costas ligeiramente curvadas e a cabeça a pender sobre o peito. enquanto me dispo, volto a pensar nas minhas cicatrizes. há muitos anos que não estava tão consciente delas, mas agora sei novamente que é para lá que vão olhar. uma mulher negra abre um cacifo ao meu lado. tem o peito pequeno e o rabo grande, umas cuecas de tigresa com renda cor de rosa que também invejo. porque não uso coisas assim? embora gostasse de me passear entre elas como num jardim, a observar os seus corpos nus, começo-me a despir. peça a peça revela-se a minha própria nudez imperfeita — como será a minha nudez? a instrutora passa sorridente com uma toalha em torno do corpo e outra enrolada à cabeça. pergunta-me se estou a gostar e eu respondo sinceramente que sim, apesar de me lembrar que quase desmaiei na primeira aula. ao mesmo tempo, reparo mais uma vez nos seus braços bem torneados cheios de sardas e tenho curiosidade pelas formas do seu corpo. devia ser possível admirar cada corpo muito tempo, atentar aos detalhes, poder perguntar porque tens essa cicatriz. depois de vestir o equipamento, fico sem saber onde guardar a chave do cacifo e uma mulher ao meu lado ensina-me a prendê-la aos atacadores da sapatilha. rimo-nos da minha inexperiência. saio o mais lentamente possível do meu lugar para ver quem ocupa os cacifos que estão mais longe. há quem ponha creme no corpo, quem seque o cabelo, quem se maquilhe. para pouca surpresa minha, os olhares evitam-se: a maioria destas mulheres despe-se com timidez na presença das outras. ainda assim, contrariando tudo o que publicamente se defende sobre a privacidade, este lugar onde a singularidade de um corpo trespassa a apatia, existe.
entrei para imediatamente me deparar com a nudez das poucas mulheres que o ocupavam, ou seja, com o extraordinário. descalças com uma toalha à volta do torso ou do pescoço, dirigem-se para a zona dos duches ou regressam ao seu cacifo para se voltarem a vestir. há uma que fala ao telefone: sentada nos bancos, indiferente ao que se passa à sua volta, olha para o chão e abre e fecha uma das pernas. é muito alta e quase não tem pelos, o cabelo comprido tapa-lhe o rosto. a sua lassidão é de tal forma atraente, que fico a pensar que também devia tirar os meus pelos. também devia ser magra, alta e estar sentada como numa pintura, com as costas ligeiramente curvadas e a cabeça a pender sobre o peito. enquanto me dispo, volto a pensar nas minhas cicatrizes. há muitos anos que não estava tão consciente delas, mas agora sei novamente que é para lá que vão olhar. uma mulher negra abre um cacifo ao meu lado. tem o peito pequeno e o rabo grande, umas cuecas de tigresa com renda cor de rosa que também invejo. porque não uso coisas assim? embora gostasse de me passear entre elas como num jardim, a observar os seus corpos nus, começo-me a despir. peça a peça revela-se a minha própria nudez imperfeita — como será a minha nudez? a instrutora passa sorridente com uma toalha em torno do corpo e outra enrolada à cabeça. pergunta-me se estou a gostar e eu respondo sinceramente que sim, apesar de me lembrar que quase desmaiei na primeira aula. ao mesmo tempo, reparo mais uma vez nos seus braços bem torneados cheios de sardas e tenho curiosidade pelas formas do seu corpo. devia ser possível admirar cada corpo muito tempo, atentar aos detalhes, poder perguntar porque tens essa cicatriz. depois de vestir o equipamento, fico sem saber onde guardar a chave do cacifo e uma mulher ao meu lado ensina-me a prendê-la aos atacadores da sapatilha. rimo-nos da minha inexperiência. saio o mais lentamente possível do meu lugar para ver quem ocupa os cacifos que estão mais longe. há quem ponha creme no corpo, quem seque o cabelo, quem se maquilhe. para pouca surpresa minha, os olhares evitam-se: a maioria destas mulheres despe-se com timidez na presença das outras. ainda assim, contrariando tudo o que publicamente se defende sobre a privacidade, este lugar onde a singularidade de um corpo trespassa a apatia, existe.
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