a primeira coisa é o sono
o sonhador aproxima-se dele
como se presidisse ao seu destino
e, fiel, apressa-se a entrar
naquele que é sempre demasiado escasso
até regressar ao princípio.
todas as noites
a terra tensa e húmida
dá um sinal maciço
ao diabo que diz a verdade
e é na voragem de ternura dessa palavra
que tudo se extingue sem razão.
26 de janeiro de 2018
25 de janeiro de 2018
ainda não decidi se uma por semana se uma por mês, mas sei que tem princípio, meio e fim. como diz o Charles Dickens, "uma coisa criada ama-se mesmo antes de existir."
subscrição aqui: https://tinyletter.com/fogoslocais
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FLOR AZUL, de Raul Domingues |
21 de janeiro de 2018
20 de janeiro de 2018
17 de janeiro de 2018
Outra: O que estás a tentar fazer nem sempre tem bons resultados. Deita fora essa proximidade contigo, põe de lado esse feitiço da rememoração a quente. Põe o lamento na boca de outrem. Desfaz essa amizade com o teu próprio lamento. Deita pela borda fora os objectos sensíveis com os quais encheste a memória, alguns são surpreendentes mas tens de te livrar deles e talvez te reapareçam desfigurados, macerados pelas ondas, transformados em pertenças do mar. Já não são mais teus, já não te protegem. Estão prontos para serem pasto das tuas chamas. Assim como os tens são refractários ao fogo, não consegues transformá-los em cinzas. E é isso por que anseias, sem saberes como fazê-lo. Tenta o que te disse. Requer uma disciplina feroz, uma frieza, um desprendimento, a que terás de obedecer sem teres de te decidir. Às vezes, sem dares por nada, já começaste a experiência que, também inadvertidamente, interrompes, e de novo te prendes amorosamente às tuas lembranças. Não encostes o ouvido à concha, o segredo que ouvias foi enterrado. Agora desce entre os mortos. Ao terceiro dia, ressurreição. Isso não sei.
Maria Filomena Molder
Maria Filomena Molder
12 de janeiro de 2018
rascunhos
tenho textos guardados no blogue que já não sei se fui eu a escrever. não me lembro de os ter escrito e não me lembro de os ter copiado. estão, por isso, indefinidamente guardados nos rascunhos, onde anoto as ideias e de onde raramente apago alguma coisa. se fui eu a escrevê-los, não me lembro quando foi. podem ter passado anos ou apenas uma semana, é assim que funciona a minha memória, reduzida a uma dúzia de acontecimentos da minha vida e, com algum esforço, às necessidades prementes do dia-a-dia. com ou sem legitimidade transformo tudo o resto, de facto a ficcional e também inversamente. dou pouca importância aos factos na medida em que sirvam ou não para a sua descrição e, assim, um facto que não encontra o seu lugar na escrita é merecedor do meu desprezo, seja ele qual for. pelo contrário, factos ambíguos, híbridos e em metamorfose agradam-me e desafiam-me. tanto quanto vejo, é-me difícil diferenciar um facto ocorrido de um facto escrito e, quando leio, acontece frequentemente pensar que já vivi o que ali está escrito, tal como, quando me acontece alguma coisa, digamos, ver cair uma couve no supermercado e rolar até debaixo dos mostruários, pode ter o efeito de uma febre tão intensa que me julgo capaz de extrair dali um romance.
tenho textos guardados no blogue que já não sei se fui eu a escrever. não me lembro de os ter escrito e não me lembro de os ter copiado. estão, por isso, indefinidamente guardados nos rascunhos, onde anoto as ideias e de onde raramente apago alguma coisa. se fui eu a escrevê-los, não me lembro quando foi. podem ter passado anos ou apenas uma semana, é assim que funciona a minha memória, reduzida a uma dúzia de acontecimentos da minha vida e, com algum esforço, às necessidades prementes do dia-a-dia. com ou sem legitimidade transformo tudo o resto, de facto a ficcional e também inversamente. dou pouca importância aos factos na medida em que sirvam ou não para a sua descrição e, assim, um facto que não encontra o seu lugar na escrita é merecedor do meu desprezo, seja ele qual for. pelo contrário, factos ambíguos, híbridos e em metamorfose agradam-me e desafiam-me. tanto quanto vejo, é-me difícil diferenciar um facto ocorrido de um facto escrito e, quando leio, acontece frequentemente pensar que já vivi o que ali está escrito, tal como, quando me acontece alguma coisa, digamos, ver cair uma couve no supermercado e rolar até debaixo dos mostruários, pode ter o efeito de uma febre tão intensa que me julgo capaz de extrair dali um romance.
11 de janeiro de 2018
passei lá a ver se te via
é sobretudo no interior do país que os sítios assim resistem, lugares onde passamos a fim de ver se encontramos um amigo. são lugares importantes, tanto quanto a caminhada que nos leva a eles, cheia de entusiasmo, uma ligeira ansiedade e propósito. o que desaparece com esses lugares contribui para o nosso isolamento e para a crença de sermos náufragos inúteis e esquecidos. são tão importantes que temo encontrar neles o sinal inultrapassável da nossa bondade.
é sobretudo no interior do país que os sítios assim resistem, lugares onde passamos a fim de ver se encontramos um amigo. são lugares importantes, tanto quanto a caminhada que nos leva a eles, cheia de entusiasmo, uma ligeira ansiedade e propósito. o que desaparece com esses lugares contribui para o nosso isolamento e para a crença de sermos náufragos inúteis e esquecidos. são tão importantes que temo encontrar neles o sinal inultrapassável da nossa bondade.
10 de janeiro de 2018
trabalho em frente a uma janela através da qual, do outro lado da rua, vejo a fachada de um prédio com as suas altas janelas cujas portadas estão fechadas ou meio abertas. essas portadas parecem estáticas e nunca aconteceu ver ninguém do outro lado. os meus dias passam-se diante destas janelas, enquanto trabalho e penso que devia estar a escrever. deve haver alguém que habite estas casas, alguém que nunca vejo e me vê. por vezes, à hora de almoço, quando estou sozinha no escritório, deito a cabeça sobre a secretária para descansar um pouco. são apenas alguns minutos, mas renovadores. agora são três e meia e hoje não pude descansar. conto os minutos até à hora da saída, como todos os dias, quer esteja muito ou pouco ocupada. embora a ele me veja forçada, se há coisa em que descreio com todas as minhas forças é no trabalho. quem assomar do outro lado destas janelas não verá mais do que o meu semblante desiludido, frustrado e impaciente.
5 de janeiro de 2018
escrever todos os dias nas férias, eram esses os meus planos, mas a minha atenção desviou-se para a leitura no tempo que me restou livre das obrigações familiares. é nestas alturas que dou conta da medida de silêncio e solidão que me são necessárias para escrever e não me imagino com uma família. quase todas as pessoas que conheço acabaram por ter filhos mais cedo ou mais tarde, algumas delas surpreendentemente cedo ou tarde. digo quase porque se excetuam aqueles que têm tendência para a melancolia, para o isolamento e para o pessimismo, entre os quais, contra todas as aparências, me incluo. entre os que tiveram filhos por acaso e os que os planearam, nunca encontrei nenhum que se dissesse arrependido. porém, aos que envelhecem sem os ter ouço muitas vezes formular a amargura da sua ausência. também penso nisso por vezes e, no entanto, ter filhos parece-me assustador: a ligação de extrema necessidade, a preocupação constante, a angústia no desamparo da doença, a incógnita sobre o futuro, e enfim, toda a gestão de termos um ser humano ao nosso lado em permanência, é um evento de uma exigência demolidora a que só aptidões como a compreensão, a temperança, o zelo e o altruísmo podem corresponder. com isto, vêm-me à memória escritores como Elena Ferrante, Karl Ove Knausgård e tantos outros que têm filhos e conseguiram ainda assim encontrar a solidão para escrever. julgo, contudo, que essa necessidade de distância e independência é dificilmente compreensível para quem a conhece apenas modestamente e, quanto mais imprescindível for, mais deformados e desavindos parecemos — ou somos. é portanto algo que tem de ser imposto com veemência. certo é que valorizar a procrastinação sobre o fazer, o tédio sobre o empenho, o isolamento sobre a convivência, cada vez mais me parece fundamental. não são essas as marcas do amor quando aparece?
4 de janeiro de 2018
cansaço
diz-se no livro Um Homem Apaixonado, de Karl Ove Knausgård, que não vale a pena escrever se não for para ir a um lugar desconhecido. cito de cor, mas creio poder dizer com segurança que não erro. fiquei com a frase na cabeça assim que a li e tenho pensado nela desde aí, perguntando-me, confesso, se chego a lugares desconhecidos quando escrevo e, assim, se pode chamar-se literatura aos textos que crio. sempre me pareceu uma palavra demasiado pretensiosa e o que faço, seja lá o que for, o contrário disso. não sinto necessidade de nomear aquilo que faço, de saber o que é. durante todo o dia penso em escrever, desde que acordo até adormecer. por vezes anoto pequenas frases ou ideias, mas por norma escrevo mentalmente com o material do mundo até que ele adquira a força que procuro, altura em que tenho de o expelir. para chegar a essa fase, contudo, esse material tem de vencer o cansaço com que se resguarda. é essa a grande batalha, aquela em que se forma uma palavra com a força suficiente para dar origem a um texto. é essa palavra que não sabemos onde nos levará.
3 de janeiro de 2018
ratos
nas traseiras do prédio onde trabalho, da janela onde vou para fumar, vê-se uma ruína de uma casa térrea e um prédio com seis andares cujas paredes se aguentam sustentadas por andaimes enferrujados. no meio da vegetação que cresce bravia faça chuva ou faça sol e sobre o telhado da casa, vejo muitas vezes ratos com as suas maneiras assustadiças à procura de comida. à distância que estou, do outro lado da rua e no quarto andar, não tenho nojo. acontece o mesmo com certos textos: se não estivermos a uma boa distância, a enxurrada racional impede-nos de os escrever. pelo contrário, assim como estou, tenho até deleite em observá-los a correr de um lado para o outro, levando de vez em quando à boca as patas dianteiras e sou mais feliz quando fumo a ver ratos do que quando não os vejo.
nas traseiras do prédio onde trabalho, da janela onde vou para fumar, vê-se uma ruína de uma casa térrea e um prédio com seis andares cujas paredes se aguentam sustentadas por andaimes enferrujados. no meio da vegetação que cresce bravia faça chuva ou faça sol e sobre o telhado da casa, vejo muitas vezes ratos com as suas maneiras assustadiças à procura de comida. à distância que estou, do outro lado da rua e no quarto andar, não tenho nojo. acontece o mesmo com certos textos: se não estivermos a uma boa distância, a enxurrada racional impede-nos de os escrever. pelo contrário, assim como estou, tenho até deleite em observá-los a correr de um lado para o outro, levando de vez em quando à boca as patas dianteiras e sou mais feliz quando fumo a ver ratos do que quando não os vejo.
Put all those nasty thoughts you have to use:
If someone asks me, “Why do you write?” I can reply by pointing out that it is a very dumb question. Nevertheless, there is an answer. I write because I hate. A lot. Hard. And if someone asks me the inevitable next dumb question, “Why do you write the way you do?” I must answer that I wish to make my hatred acceptable because my hatred is much of me, if not the best part. Writing is a way of making the writer acceptable to the world—every cheap, dumb, nasty thought, every despicable desire, every noble sentiment, every expensive taste.
If someone asks me, “Why do you write?” I can reply by pointing out that it is a very dumb question. Nevertheless, there is an answer. I write because I hate. A lot. Hard. And if someone asks me the inevitable next dumb question, “Why do you write the way you do?” I must answer that I wish to make my hatred acceptable because my hatred is much of me, if not the best part. Writing is a way of making the writer acceptable to the world—every cheap, dumb, nasty thought, every despicable desire, every noble sentiment, every expensive taste.
29 de dezembro de 2017
Somos um espelho mais ou menos deformado das nossas famílias?
Sem dúvida. Foi o que eu procurei encontrar, a minha identidade, e como é que a formei. O livro é 90% a minha família e 10% eu. Os pensamentos que escrevi, as coisas que disse, na sua grande parte não são minhas, foram-me passados por eles, de uma maneira ou de outra. Eu deformei-os e adaptei-os.
Sem dúvida. Foi o que eu procurei encontrar, a minha identidade, e como é que a formei. O livro é 90% a minha família e 10% eu. Os pensamentos que escrevi, as coisas que disse, na sua grande parte não são minhas, foram-me passados por eles, de uma maneira ou de outra. Eu deformei-os e adaptei-os.
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