11 de abril de 2015

e as histórias que não podem ser contos. porventura apenas um pormenor, cuja repercussão, contudo, atravessa uma vida. demonstrar essa repercussão, é como conectar um ponto do sonho com outro da vigília, sem nada deixar ao acaso no percurso entre ambos.

10 de abril de 2015

a tendência da criação contemporânea que radica no envolvimento com uma comunidade o objetivo em si da produção de uma obra de arte (as chamadas práticas artísticas comunitárias), soa-me sempre como os sinais de alarme emitidos por aqueles que temem o fim dos tempos e pretendem resgatar a fé à força, antes que chegue o derradeiro momento do Juízo Final. até determinado período, muito recente, a arte contemporânea dirigia-se e convocava apenas e somente o indivíduo. Freud terá sido um dos maiores responsáveis por esta passagem ao individual e ao seu caráter singular e, pelo menos desde os anos 60, tornou-se comum afirmar que há tantas leituras de uma obra de arte quanto forem os indivíduos que a observem (sendo o conceito de observação importante, por permitir abranger a noção de interação). ao dizer que cada um de nós é um artista, Joseph Beuys, levou ao limite essa afirmação, conferindo ao comum, de resto tal como John Cage, destaque individual, ou seja, caráter único, excecional. se antes a beleza era tida por raridade, apenas acessível e uma elite, num instante imprevisto e improvável, passou a estar disseminada numa multitude de acontecimentos que, embora eles próprios impermanentes, tornaram o seu acesso possível de modo permanente. a arte conceptual, em particular, veio contudo estabelecer uma diferença: a partir do momento em que a obra se pensa a si própria, passa novamente a pertencer a uma elite, detentora das suas chaves e códigos. mas sem deixar de se dirigir ao individual, pelo contrário, ainda através da exacerbação do potencial individual. desde a escolha dos materiais, à composição da forma, tudo na obra passou a constituir um código próprio inultrapassável. Susan Sontag chega a declarar que a arte tende para a anti-arte. que, tal como a atividade do místico se dirige à ausência de Deus e ao silêncio para além do discurso, também a arte tende para a eliminação da imagem ou do objeto, substituindo o acaso pela intenção. a inescapável mediação entre a criação individual, de dimensão espiritual, e o caráter material da arte, acaba por surgir ao artista como uma negação da transcendência que procura, nada lhe restando senão não criar.
se pensarmos que na Idade Média a ideia de um eu separado da comunidade nem sequer existia, e que, séculos mais tarde, mesmo um Louis XIV afirma que o Estado é ele, e não o contrário, percebemos que há casos em que nem a História ajuda, pois o que se perde fica perdido com o que se ganha — e uso aqui o verbo perder fora da sua conotação negativa, pois a perda é irremediável tanto quanto o ganho é passageiro. pelo menos desde a arte rupestre até ao período barroco, as obras de arte confundem-se, senão com a própria comunidade, através das suas vivências, pelo menos com a sua espiritualidade, através dos seus credos, espiritualidade que não era, pois a própria definição o impedia, vivida individualmente.
vivo num ciclo interminável de recomeços, lutos consecutivos, separada dos outros por uma rede inextricável de mal-entendidos. é engraçada a vida que me coube viver. antes procurava saídas. agora que posso admirar perfeitamente a rede (cuja espessura, grandeza e malha apertada me deixam espantada e incrédula por deixar passar o ar e portanto, por poder continuar a respirar), estou cada vez mais curiosa para perceber onde me levará a capacidade de a viver. do que posso ver acima de mim, pressuponho que seja uma rede cilíndrica mas, para ser completamente honesta, é uma abóbada, já que abaixo de mim nada vejo e nada toco, o que torna perfeitamente plausível a pergunta sobre a existência, que não é senão uma pergunta sobre limites. talvez um dia escreva qualquer coisa sobre isso. ou não. talvez, ao contrário, tudo o que procede do silêncio a ele regresse, e o percurso sirva apenas para adquirir uma forma mais plena, se é que isto seja coisa (não é) que se possa dizer sobre o silêncio. na verdade, sei que também esta malha é um engano. embora ainda não o possa ver, e porque ainda me lembro das suas formas anteriores, sei que um dia será porventura tão densa que acabará por desaparecer perante os meus olhos, transformando-se em pura escuridão intransponível, não sei se negra se branca. o que serei eu quando estiver a admirar isso não consigo imaginar. estou só curiosa por saber se ainda serei capaz de lhe dar um nome.

9 de abril de 2015

E la classe degli scialli neri di lana,
dei grembiuli neri da poche lire,
dei fazzoletti che avvolgono
le facce bianche delle sorelle,
la classe degli urli antichi,
delle attese cristiane,
dei silenzi fratelli del fango
e del grigiore dei giorni di pianto,
la classe che dà supremo valore
alle sue povere mille lire,
e, su questo, fonda una vita
appena capace di illuminare
la fatalità del morire.

Et la classe des châles noirs de laine,
des tabliers noirs à peu de lires,
des fichus qui enveloppent
les visages blancs des sœurs,
la classe des hurlements antiques,
des attentes chrétiennes,
des silences fraternels dans la boue
et de la grisaille des jours de pleur,
la classe qui donne valeur suprême
à ses pauvres mille lires,
et qui, là-dessus, fonde une vie
à peine capable d'illuminer
la fatalité du mourir. 


Pier Paolo Pasolini, poema sobre mulheres de mineiros vítimas de uma explosão de gás.

8 de abril de 2015

(...) la «rêverie» n'est pas démission, mais combat, fût-il d'ordre spirituel.

Raymond Trousson, Lettres françaises de Belgique: 1981-1990.
vejo-me a assumir vertiginosamente uma infantilidade plena. na medida em que sou cada vez mais perfeitamente pueril, inocente, ingénua e na medida também em que, por outro lado, desenvolvo — ou desenvolve-se, já que é um movimento amplamente involuntário —, um profundo desligamento do mundo. este movimento é em parte sentido como emancipação, serenidade, tranquilidade e, no mesmo peso, sentido como fragilidade, ameaça ou instabilidade.
que o sou — infantil — «cada vez mais perfeitamente», significa que o sou melhor. por exemplo: não se pode ser melhor uma coisa que se deixou de ser, porque isso implicaria voltar a ser o que já deixou de ser e portanto necessariamente, ser uma coisa nova. o tempo é o ónus da nossa humanidade, nada há que o inverta, belisque, reverta, pare. o amor pode confundir-nos com ele e esse é o limiar. ora, estou numa fase da vida em que não só afirmo que sou uma coisa que deixei de ser, como acrescento que o sou melhor e a seguir coloco um ponto final.
o que há de mais puro e subtil nos corpos não é atingível nem mesmo pela doença. é por isso que os corpos caem quando morrem, porque o devir é interrompido. o que a existência tem de perecível é isto portanto, o seu devir (e serão aliás muito poucas as situações em que um corpo está tão violentamente exposto ao devir como na doença), tudo o resto pode perdurar. todas as mortes são inconclusivas. o rigor que se espera da morte, nomeadamente nas expetativas de revelação que as pessoas alimentam sobre ela, não existe, porque o rigor é contrário àquilo que se termina, isto é, não existe rigor fora do movimento, não existe rigor onde não existe mudança e tudo o que a compõe, como volume, sensibilidade, ritmo. os fins são sempre remotos. ao contrário da existência, que é aquilo que é porquanto é, o fim é aquilo que nunca é enquanto não é.

5 de abril de 2015

Je parle des pierres qui n'ont même pas à attendre la mort et qui n'ont rien à faire que laisser glisser sur leur surface le sable, l'averse ou le ressac, la tempête, le temps.

Roger Caillois, L'écriture des pierres.

29 de março de 2015

E foi.
E onde devia haver beijo há uma falha.
É o único sinal visível do acontecimento esse. A montanha arrepanhada ao contrário.
A falha não é um erro, não é uma falha no sistema, não há sistema, não é um acto falhado, é toda acto, falha que é a abertura de onde.
É a abertura depois da derrocada, é o rewind da avalanche.
Não: é o fim da avalanche quando do som só há silêncio e a falha é a maior parte do som. 


Sónia Baptista, a falha de onde a luz (com Francisco Goulão).

28 de março de 2015

O silêncio tornou-se a sua língua materna.

Oliver Goldsmith
nunca mais quero escrever numa língua voraz,
porque já sei que não há entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,
para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo —
estou farto de tanto vazio à volta de nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,
e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-las numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio


Herberto Helder, Servidões, 2013.
Bilhete Postal Negro

I.
Calendário repleto de compromissos, futuro incerto.
O rádio trauteia uma canção popular sem nacionalidade.
Cai neve no mar totalmente gelado. Vultos acotovelam-se no cais.

II.
Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta
e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida,
e a vida continua. O fato, porém, esse é cosido em silêncio.

Tomas Tranströmer, 50 Poemas, 2012.
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega

Herberto Helder

21 de março de 2015

Moi-même je dois en périr,
Le cœur me fait si mal,
Je voudrais mourir de douleur
En voyant ma propre image


Heinrich Heine, A Lorelei, 1823.
Et ajoutes: finie, l’harmonie sonore
Tu as aimé Mozart en pure perte
Vient maintenant la surdité des araignées
Cette chute dépasse nos forces

Nadezhda Mandelstam
tenho saudades de ruas onde ecoa apenas o som dos nossos próprios passos. é talvez — ou sem dúvida —, ter saudades de um certo tipo de solidão. a solidão do viajante, ou melhor, do wanderer, daquele cuja vida não se dissocia da deriva e do seu profundo silêncio, que estabelece a presença (do corpo no tempo) e, por isso também, da treva onde toda a intimidade com o mundo se aloja. em suma, tenho saudades de certa solidão infantil, onde todas as fantasias se gozam e que, ao invés de experimentar a fugacidade do tempo, apenas tem nele lugar, entre todas as coisas.
Und ich wand're sonder Massen. [E eu caminho sem medida] (Schubert, Die Winterreise).