19 de outubro de 2014

Tenho um grande defeito: não quero aprender através de alguém que me diga: "Faz-se assim." Queria descobrir. Por isso é que posso esperar 20 anos. Não quero que me digam: "Não percebes, mas é isto." É uma machadada em mim. Não tem nada que ver com orgulho. Nada, nada, nada. Tem que ver com uma autodescoberta que acabava de perder.

Maria Filomena Molder

18 de outubro de 2014

O consultório do meu pediatra tinha as paredes negras. A secretária dele, diante da qual eu me sentava numa cadeira ao lado da minha mãe, com um bloco cheio de desenhos da sala de espera na mão (que não queria mostrar a ninguém) era de vidro, e sobre ela, um candeeiro largo e redondo iluminava toda a sala com uma luz amarela suave. Ao lado do divã havia outra luz, na extremidade de um candeeiro de pé alto muito fino, que ele deslocava sobre o meu corpo. Havia uma balança de onde eu descia sempre para ouvir que tinha de comer mais e usavam-se espátulas de madeira para ver a garganta, que davam vómitos. Lembro-me dele, simpático e careca. Lembro-me do nome dele. Lembro-me da voz dele. De tudo isto me lembro porque numa das paredes do consultório havia um poster do The Kid. Era um poster a preto e branco absolutamente gigantesco pelo qual fiquei hipnotizada no momento em que o vi pela primeira vez. Duas pessoas, um adulto e uma criança, estavam sentadas no degrau de uma porta. Lado a lado, apertados na ombreira para conseguirem caber os dois. O meu pediatra era a-pessoa-que-tinha-o-poster. Um mago, um sábio, um alquimista, na sua caverna negra de luz suave e quente, com voz doce e grave, que resolvia tudo. Apercebendo-se do meu fascínio, pois desde que chegava ao consultório arranjava sempre maneira de ficar a olhar para as figuras no poster, um dia, estava eu deitada no divã, perguntou-me sorridente, com um olho virado para mim e o outro para a minha mãe: «Achas que estão tristes ou alegres?» A pergunta deixou-me perplexa e não respondi. Pensei naquilo muito tempo e durante muito tempo voltei ao consultório sem saber a resposta. Para meu grande alívio, ele nunca mais voltou ao assunto. O meu problema não estava em achar que aquelas pessoas pudessem estar imersas numa ou noutra dessas emoções, permanecendo contudo indecisa sobre elas. O meu problema era justamente achar que não estavam tristes. E que também não estavam alegres. Portanto, se não era tristeza, mas também não era alegria, essa outra coisa, o que era? Estava no olhar e no corpo deles, adulto e criança, maltrapilhos e sujos (não como quem tivesse acabado de jogar à bola mas como quem era muito pobre). Era uma dádiva. E era a única coisa em que eu queria pensar.

17 de outubro de 2014

no meu amor por Lisboa nem tudo é viço e exuberância. como muitos dos seus jardins onde, apesar de se pagar para entrar, as plantas crescem esquecidas, debeladas contra a poda que há muito não veem. nem tudo neles é viço e exuberância. e é precisamente isso que me atrai.

16 de outubro de 2014

(...) Assim não é apenas a vida privada que nos acompanha enquanto clandestina na nossa breve ou longa viagem, mas a própria vida corpórea e tudo o que tradicionalmente se inscreve na esfera da chamada “intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o sono, a sexualidade… E o peso desta companheira sem cara é tão forte que todos o procuramos partilhar com um outro – e todavia a estranheza e a clandestinidade nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais amorosa das convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa roubada que o rapaz esconde sob as suas roupas e não pode confessar ainda que lhe dilacere atrozmente a carne. 

É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar, foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem outro objecto que a vida vegetativa dos corpos é neste sentido a figura da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar a política ao quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão naufragar.

E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.

E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.
... nulle part, là où sont les gens et qu'on oublie.

Adama Samassekou
Acender velas para gastar menos luz. Comer menos para poupar na conta do supermercado, uma refeição por dia chega. Não ter filhos. Vestir mais uma camisola e um casaco por cima dela para não ter de ligar o aquecedor. Não ficar doente. Sair menos à rua ou sair prevenido com uma peça de fruta ou uma sandes e água. Comprar o passe apenas em caso estritamente necessário, de resto, andar a pé. Encontrar estratégias para não pagar telefone e não pagar internet. Acumular louça para abrir uma só vez a torneira. Usar a torneira de água quente exclusivamente para o duche. Se o mês chegar antes do meio do mês, jantar em casa de amigos e aceitar o auxílio do pai ou da mãe. Não sair com os amigos a não ser para passear num jardim ou ir ver uma exposição ao domingo. Não ir ao cinema, não ir ao teatro, não comprar livros nem jornais, não fazer inscrições em seminários, cursos ou ateliers. Não ter dias da semana nem fins-de-semana. Falar o menos possível entre nós sobre isto e menos ainda àqueles que não estão na mesma situação em que nós estamos. Ser tolerante quando alguém avaliar a sociedade por si próprio. Ser tolerante quando falarmos de preocupações com a renda a alguém que nos responde que está na mesma situação e a seguir nos convida para jantar fora. Ser tolerante com as nossas lágrimas e implacável quando chega o momento de sair da cama de manhã. Enviar muitos CV's, todos os dias. Ter no mínimo três CV's em várias línguas: um muito reduzido, com o mínimo de habilitações académicas, um médio com as principais experiências profissionais e o registo completo das habilitações académicas e um verdadeiro, para não nos esquecermos de que estivemos sempre a trabalhar. Ter vergonha. Ter medo. Saber esperar sem ter mais nada a esperar. Não ter tempo precisamente quando se tem todo o tempo do mundo. Ouvir quando o amigo nos diz que quando estou parado começo logo a sentir-me um logro e lembrar a frase quando formos nós o logro. Saber estar em silêncio, porque o prazer é possível mas a esperança não. Lembrar quando nos disse que quando as perspetivas se reduzem a nada, todos os caminhos parecem válidos e achamos que nunca estamos a fazer o que realmente devíamos estar a fazer e lembrar muitas vezes que perante o que temos é obsceno ficar e contudo, também não podemos partir, porque tudo é um grande talvez ou um grande nunca ou um grande não sei ou um grande não aguento mais. Quando deixar de ser possível pensar, será ainda possível respirar. E quando já não for possível respirar, talvez seja doce.


Para o Pietro Romani, que nunca me deixou só.

14 de outubro de 2014

Li no Gulistan, ou Jardim das Flores, de autoria do xeque Sadi de Shiraz, que um dia perguntaram a um sábio: «Entre as muitas árvores célebres que o Altíssimo Deus criou altaneiras e umbrosas, nenhuma é chamada azade, ou livre, exceptuando o cipreste, que não dá frutos. Qual o mistério disso?» O sábio replicou: «Cada uma tem seu fruto adequado e sua estação determinada, durante a qual fica fresca e florida e fora dela seca e murcha; o cipreste não está sujeito à variação de estados, está sempre a florescer. Da mesma natureza são os azades ou religiosos independentes. Não ponhas o teu coração no que é transitório, porque o Dijlah, ou Tigre, seguirá fluindo através de Bagdade mesmo depois de a raça dos califas se extinguir. Se as tuas mãos estão cheias, sê liberal como as tamareiras, mas se estão vazias, sê um azade, ou um homem livre como o cipreste.»

Henry David Thoreau, Walden ou a vida nos bosques

13 de outubro de 2014

Mon cas n'est pas unique: j'ai peur de mourir et je suis navrée d'être au monde. Je n'ai pas travaillé, je n'ai pas étudié. J'ai pleuré, j'ai crié. Les larmes et les cris m'ont pris beaucoup de temps. La torture du temps perdu dès que j'y réfléchis. Je ne peux pas réfléchir longtemps mais je peux me complaire sur une feuille de salade fanée où je n'ai que des regrets à remâcher. Le passé ne nourrit pas. Je m'en irai comme je suis arrivée. Intacte, chargée de mes défauts qui m'ont torturée. J'aurais voulu naître statue, je suis une limace sous mon fumier. Les vertus, les qualités, le courage, la méditation, la culture. Bras croisés, je me suis brisée à ces mots-là.

Violette Leduc, La bâtarde

12 de outubro de 2014

tinha uma avó que comia medula
e era isso que fazia dela uma pessoa muito velha
como se fosse descendente direta
dos primeiros homens
que povoaram a terra
e cuja melancolia
deu origem à civilização

não se sabe onde teve origem
mas desde que existe
o amor nunca envelheceu
a nossa vida
é uma tímida reminiscência
da devastação que deixa
quando desaparece

11 de outubro de 2014

Há textos que gostamos mais de escrever que outros. Talvez porque tenham aquele efeito de livro arrumado, acabado de ler, ao qual não voltamos com a mesma excitação porque sabemos que depois de escalado o muro há um jardim arruinado.
Há textos que escrevemos a que faltam degraus, como dentes, e essas faltas essas falhas, na antecipação de uma paisagem feliz, são a boca toda aberta ao vento.

Raquel Nobre Guerra

9 de outubro de 2014

Alguns narradores contam que Medeia, em fuga, não teve possibilidade de levar consigo os filhos que, perante a negligência de Jasão, foram apedrejados até à morte pela família de Creonte, como vingança.
Contudo, a versão mais conhecida é ainda mais sombria e deve-se a Eurípides, na sua tragédia Medeia, apresentada pela primeira vez em 431 a.C.. Aqui, é a própria Medeia quem mata os filhos antes de fugir para Atenas, não num acesso de loucura, mas num acto de fria e premeditada vingança em relação ao marido infiel. Eurípides foi, na altura, acusado de ceder perante um elevado suborno de cidadãos coríntios que preferiam uma versão onde não fosse o povo daquela cidade a cometer o infanticídio.




De artigo da Wikipédia completo aqui.
os milhares de casais de turistas que passeiam em Lisboa lembram-me que o amor cansa.
Fui ver uma exposição muito estranha, no Museu de São Roque (Visitação, curadoria de Paulo Pires do Vale). Entre os objetos do espólio da Misericórdia de Lisboa expostos, encontram-se alguns exemplos de cartas que eram entregues com as crianças que deixavam na roda. O costume era que a cada criança correspondesse um identificador, entregue com essas cartas, que funcionasse como prova de pertença: apenas quem tivesse a outra metade a poderia resgatar. Pelo menos de acordo com a proporção que é mostrada nas vitrines, a grande maioria das crianças era entregue com cartas de baralho e cautelas de lotaria. Quem as entregava fazia um recorte único, transformando-os em peças de um puzzle. Também há outros exemplos, como cabelo, dados e até uma pequena e incompreensível escultura em palha. Alguns são bastante elaborados, e ricos, como é o caso de uma bolsa de seda vermelha bordada e umas meias de renda branca fina.
Fora da galeria, na igreja de São Roque, estão dois écrãs, cada um com o rosto de uma criança do filme Casa de Lava de Pedro Costa, cuidadosamente escondidos em cada um dos lados do transepto, certamente para não perturbar a oração.