(...) Assim não é apenas a vida privada que nos acompanha enquanto
clandestina na nossa breve ou longa viagem, mas a própria vida corpórea e
tudo o que tradicionalmente se inscreve na esfera da chamada
“intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o sono, a
sexualidade… E o peso desta companheira sem cara é tão forte que todos o
procuramos partilhar com um outro – e todavia a estranheza e a
clandestinidade nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais
amorosa das convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa
roubada que o rapaz esconde sob as suas roupas e não pode confessar
ainda que lhe dilacere atrozmente a carne.
É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da
vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como
tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar,
foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e
incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem
outro objecto que a vida vegetativa dos corpos é neste sentido a figura
da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na
verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar a política ao
quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão
naufragar.
E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública
não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina,
que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada,
publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e
todavia ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com
ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas
pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.
E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.