16 de outubro de 2014

(...) Assim não é apenas a vida privada que nos acompanha enquanto clandestina na nossa breve ou longa viagem, mas a própria vida corpórea e tudo o que tradicionalmente se inscreve na esfera da chamada “intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o sono, a sexualidade… E o peso desta companheira sem cara é tão forte que todos o procuramos partilhar com um outro – e todavia a estranheza e a clandestinidade nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais amorosa das convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa roubada que o rapaz esconde sob as suas roupas e não pode confessar ainda que lhe dilacere atrozmente a carne. 

É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar, foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem outro objecto que a vida vegetativa dos corpos é neste sentido a figura da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar a política ao quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão naufragar.

E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.

E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.