6 de outubro de 2014
5 de outubro de 2014
3 de outubro de 2014
Sou austeramente selvagem. Vou perseverando numa atmosfera composta de distâncias sem enigma. Entro como um vulto em casas prontas para serem deixadas porque há no abandono qualquer coisa infinitamente apaziguadora. Pressinto nelas o eco de lembranças que não tenho. Sou apaixonada por essas casas vazias, que flutuam abertas para lá da memória. Elas são o exótico altar da minha infância pois a infância é uma fórmula imaterial, uma fonte geométrica enterrada na revelação genuína. Sou uma mulher e sei que sou essa mulher mais do que sei quem sou. É uma questão de sobrevivência: a linguagem da perdição tem implicações que estão sempre a ser negociadas. Às vezes penso que se estava melhor no cativeiro mas a fatalidade impregna-o de tal maneira que me repugna regressar. Aporto a um voluptuoso silêncio. Não posso afirmar que seja límpido. A minha satisfação está em vê-lo adensar-se e expandir-se. Imperfeitamente.
1 de outubro de 2014
29 de setembro de 2014
27 de setembro de 2014
26 de setembro de 2014
24 de setembro de 2014
Lembro-me que a minha primeira surpresa foi sentir que o meu silêncio não era desconfortável dentro do carro. As conversas entre eles eram as mesmas. A intimidade entre nós prevalecia apesar de eu já não saber muito bem onde estava nem quem era. A certa altura vi o mar no horizonte. Estacionaram junto da areia. Saí do carro e eles começaram a caminhar em direção à água. Mas olharam para trás. As dores e a inexperiência com as muletas não me deixavam avançar. Estava encalhada, a olhar para os pés e a preparar-me para me sentar por ali. Eles voltaram para trás, tiraram-me as muletas e dois deles levaram-me ao colo até à beira da água. Ficámos ali até o sol se por.
É tudo.
23 de setembro de 2014
A casa da minha avó tinha um portão branco que tinha um truque para ficar fechado e atrás dele, em frente à direita, uma escadaria que levava à casa dela e cada degrau da escadaria tinha um vaso com uma flor diferente. Ela estava sempre de volta das flores. Cortava, regava, transplantava, plantava, procurava bichos. Sabia de cor quando tinham sido plantadas, quando floresceriam, se era pé que pegasse, se deveriam ser transplantadas para o quintal. Até ao fim da vida, as suas flores desviaram-lhe a atenção da saudação ou da despedida às netas. Foi apenas à medida que a velhice se instalou que ela se foi deixando ficar ao cimo da escadaria sem mexer nas flores, a olhar para nós, com os seus olhos muito azuis. Isso sempre me causou espanto. E admiração.
22 de setembro de 2014
Giorgio Agamben
Tenho memórias vagas desse dia e contudo é uma das memórias mais pungentes que frequentemente me assaltam. Eu tinha uns sapatos novos. Eram azuis escuros, de pele rija, encaixavam na perfeição apertando no tornozelo. Foi um presente. Já os tinha estreado numa ocasião especial anterior a este dia, hoje era dia de escola. Sabia que não podia usá-los e mesmo assim pedi à minha mãe para os levar para o colégio. Insisti duas vezes apenas e ela cedeu. Sim, teria todo o cuidado. Retirei os sapatos velhos dos pés, calcei os novos e fui. Não sei porque regressei sozinha a casa nesse dia. Poderia eu ter apenas seis anos? Aproximava-se uma tempestade, as freiras estavam a reter as crianças que não tivessem os pais à porta para aguardarem abrigadas. Não sei porque assim quis, lembro-me do meu coração bater tanto que quase doía, consegui escapulir-me sozinha e seguir para casa através do Largo do Rossio. O deserto. A escuridão abateu-se, era tremenda. O vento e a água eram mais fortes do que poderia ter imaginado. O meu corpo ia sendo empurrado, dava pequenos saltos involuntários, nem sempre em frente. A água inundou tudo em segundos. A lama, poças de água que eram piscinas. O chapéu de chuva ser arrancado da minha mão e voar. A bata e o meu vestido de lã por baixo ficaram encharcados. Pensei nos meus livros, havia que protegê-los. Quando finalmente cheguei a casa não tinha um sapato.
A minha mãe estava furiosa. Porque não tinha esperado. Subitamente olha para os meus pés. Eu olhei também. Tinha umas meias brancas. Fiquei quieta, muda.
Onde está o sapato?
Não sabia responder.
Naturalmente a minha mãe não acreditou. Porém eu dizia a verdade: quando a minha mãe me perguntou pelo sapato foi como se começasse a regressar de muito longe. Fiquei a olhar para os meus pés, o esquerdo calçado, o direito descalço, atónita, emudecida. Constatei que não me lembrava de parte do caminho. Pensei que tinha passado muito tempo, milénios, Eras. Senti necessidade de olhar para o espelho. Mas os meus pés pareciam-me inalterados e para além da ausência do sapato a minha mãe não tinha notado nenhuma diferença. Fiquei muda. Sabia que ela nunca acreditaria em mim mas não tinha outra explicação a oferecer para além da incógnita. Eu própria queria saber o que tinha acontecido ao sapato. O meu belo sapato azul escuro novo em folha.
Sempre quis escrever sobre esta recordação. Mas não sei como. Algo me constrange a tentar desvendar o que aconteceu naquele tempo branco e me impede de o substituir através da ficção. A estranha angústia do enigma gravou-se em mim no momento em que a minha mãe me perguntou Onde está o sapato. Acreditei que tivesse acontecido algo de sobrenatural. E essas eram as coisas de que não se falava. Mas como, se eu própria não me lembrava quer do mensageiro quer da mensagem? Um recorte de tempo tinha-me sido retirado, era tudo. E portanto a espera instala-se: um dia vou perceber, um dia vou-me lembrar. Anos mais tarde, a propósito de um acidente de carro que tive, descobri que os acidentados perdem sempre um dos sapatos. Cheguei a investigar sobre isso, vi fotografias dos pés das vítimas a que de facto faltava sempre um sapato. Como temos sempre teorias para tudo, também havia uma teoria qualquer para explicar isso, que não me trouxe contentamento. Procurei refazer o caminho até à exaustão, nada. A última coisa de que me lembro, é de estar debaixo de um fabuloso céu negro a ser empurrada, o chapéu voar, proteger a pasta. Mas isto foi ainda no início do largo. Depois toquei à campainha.