Cortam árvores neste país como quem muda de cuecas. No meu bairro desapareceu mais uma, do pátio do Palácio do Machadinho, onde funciona o departamento cultural da câmara municipal de Lisboa. Era a última da rua do Quelhas no sentido de quem desce, não sei que árvore era, era uma daquelas que têm por vezes o tronco e os ramos cinzentos, era muito alta, ficava no meio de um pátio atualmente usado para estacionar carros. No dia anterior ao corte vi bloquearem os lugares de estacionamento da rua do Quelhas, suspeitei, fui perguntar. O segurança revelou o motivo, seria no dia seguinte às 8:00, a árvore ameaçava cair, já não se encontrava ninguém com quem pudesse falar sobre a responsabilidade disso. Hoje ergui os olhos para a ver, mergulhada nos meus pensamentos já não me lembrava disto, e vi o tronco cortado.
Nos passos que me restaram até casa percebi que o corte destas árvores, sem tumulto, sem que rios de dinheiro sejam gastos a salvá-las, sem comoção, é a medida da minha posição política no mundo.
11 de julho de 2014
10 de julho de 2014
(...).
Tento escrever sobre coisas muito elementares, que são talvez as mais complexas da vida. Quero perceber como é que essa complexidade se diz.
(...).
Tinha terminado um livro e queria começar qualquer coisa. Estava à espera. Passaram duas semanas, três e não acontecia nada. Então sentei-me numa sala de uma casa que tinha arrendado por ali e disse: «ok, aqui estou eu sem nada para fazer. É melhor ir à procura.» Escrevi umas 12 páginas sem saber o que estava a escrever. Queria apenas dar alguma utilidade ao meu tempo. Escrevi mais umas quantas e então o outro livro de que eu estava à espera chegou. Nessa altura pus aquilo de lado e não lhe voltei a pegar seriamente senão 20 anos depois. Parar e repegar é normal. Escrevi outros livros, fiz a minha vida. Eu estava à espera mas não estava inanimado.
(...).
[normal] É uma palavra que as personagens usam para tentar exercitar o domínio que têm sobre as suas vidas. Elas estão a viver um processo de saída dessa normalidade e a criar um vocabulário para isso. E dizem: «Eu estou bem, não sou assim tão diferente, não tenho de ser alvo de ajuda, e se tenho, bom... então talvez possa perder a minha vida. Ou talvez ainda tenha de arranjar uma vida para mim.» É quando se está desta forma tão emocionalmente isolado que nos afastamos do amor e da atenção das pessoas. Muito desse sentimento ou dessa sensação tem a ver com a palavra que escolhemos para nos descrevermos a nós mesmos.
(...).
As pessoas acham que passaram para lá da normalidade quando atingem os limites da imaginação. Muitas vezes chega-se a esse limite por coisas tão simples ou complexas como estar-se apaixonado ou doente ou numa situação moralmente constrangedora. Situações de vida em que a lucidez esteja em causa. Dostoievski escrevia sobre pessoas moralmente doentes. Há muitos livros sobre isso e sobre o modo como as pessoas sentem que têm domínio sobre essa normalidade. O curioso é que por vezes só se consegue sentir esse domínio quando se convoca a imaginação. As histórias tornam-se úteis para os leitores quando eles sentem que os livros e as personagens falam do mesmo que eles. Quando os limites da ficção os atingem como os seus próprios limites possíveis.
(...).
Sim. Talvez seja [o lado útil da literatura]. Não no sentido de resolver um problema. Útil no sentido em que se entra num livro como num território estranho e isso nos coloca num certo distanciamento em relação a algo que se vai revelando como nosso. E é esse distanciamento que permite um melhor entendimento do que somos.
(...).
Quando descrevo uma planície ou uma paisagem de montanhas é muito mais um exercício verbal do que de descrição. É escolher as palavras. Se eu quiser mudo a cor do céu.
Entrevista a Richard Ford, Público, 18.04.2014
Tento escrever sobre coisas muito elementares, que são talvez as mais complexas da vida. Quero perceber como é que essa complexidade se diz.
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Tinha terminado um livro e queria começar qualquer coisa. Estava à espera. Passaram duas semanas, três e não acontecia nada. Então sentei-me numa sala de uma casa que tinha arrendado por ali e disse: «ok, aqui estou eu sem nada para fazer. É melhor ir à procura.» Escrevi umas 12 páginas sem saber o que estava a escrever. Queria apenas dar alguma utilidade ao meu tempo. Escrevi mais umas quantas e então o outro livro de que eu estava à espera chegou. Nessa altura pus aquilo de lado e não lhe voltei a pegar seriamente senão 20 anos depois. Parar e repegar é normal. Escrevi outros livros, fiz a minha vida. Eu estava à espera mas não estava inanimado.
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[normal] É uma palavra que as personagens usam para tentar exercitar o domínio que têm sobre as suas vidas. Elas estão a viver um processo de saída dessa normalidade e a criar um vocabulário para isso. E dizem: «Eu estou bem, não sou assim tão diferente, não tenho de ser alvo de ajuda, e se tenho, bom... então talvez possa perder a minha vida. Ou talvez ainda tenha de arranjar uma vida para mim.» É quando se está desta forma tão emocionalmente isolado que nos afastamos do amor e da atenção das pessoas. Muito desse sentimento ou dessa sensação tem a ver com a palavra que escolhemos para nos descrevermos a nós mesmos.
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As pessoas acham que passaram para lá da normalidade quando atingem os limites da imaginação. Muitas vezes chega-se a esse limite por coisas tão simples ou complexas como estar-se apaixonado ou doente ou numa situação moralmente constrangedora. Situações de vida em que a lucidez esteja em causa. Dostoievski escrevia sobre pessoas moralmente doentes. Há muitos livros sobre isso e sobre o modo como as pessoas sentem que têm domínio sobre essa normalidade. O curioso é que por vezes só se consegue sentir esse domínio quando se convoca a imaginação. As histórias tornam-se úteis para os leitores quando eles sentem que os livros e as personagens falam do mesmo que eles. Quando os limites da ficção os atingem como os seus próprios limites possíveis.
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Sim. Talvez seja [o lado útil da literatura]. Não no sentido de resolver um problema. Útil no sentido em que se entra num livro como num território estranho e isso nos coloca num certo distanciamento em relação a algo que se vai revelando como nosso. E é esse distanciamento que permite um melhor entendimento do que somos.
(...).
Quando descrevo uma planície ou uma paisagem de montanhas é muito mais um exercício verbal do que de descrição. É escolher as palavras. Se eu quiser mudo a cor do céu.
Entrevista a Richard Ford, Público, 18.04.2014
Passeio no jardim ao final da tarde com um sentimento de enorme tranquilidade. Sentada no quiosque a ler, desinquieta-me a vontade de escrever e logo me levanto para correr para casa. Apesar da pressa, quando começo a andar fico presa num passo lento e arrastado, que de tão lento me aflige. Estarei doente? Será cansaço? Poderá este cansaço ser normal? Estarei a envelhecer assim tão vertiginosamente? Tenho dores no corpo, talvez alguma doença esteja a anunciar-se. Já começou a chegar o outono?
Em vez de a contrariar, enquanto espreito a incógnita, decido colocar ainda mais lentidão nos meus passos, e reparo que aquele caminhar me conforta. Percebo, não sem algum tumulto, que aquele é um passo muito próprio, um tempo muito próprio: o meu próprio. Continuarei assim até ter descido a ladeira e chegado a casa. Passeio no jardim ao final da tarde, estou dentro da sombra das copas das árvores sobrepostas umas às outras, dentro dos seus profundos matizes de verde, de sombra e das cores das flores que mal acabaram de nascer já começaram a cair, das folhas largas que me lembram como sou pequena. Ao passar pelo portão algo se torna claro.
Em vez de a contrariar, enquanto espreito a incógnita, decido colocar ainda mais lentidão nos meus passos, e reparo que aquele caminhar me conforta. Percebo, não sem algum tumulto, que aquele é um passo muito próprio, um tempo muito próprio: o meu próprio. Continuarei assim até ter descido a ladeira e chegado a casa. Passeio no jardim ao final da tarde, estou dentro da sombra das copas das árvores sobrepostas umas às outras, dentro dos seus profundos matizes de verde, de sombra e das cores das flores que mal acabaram de nascer já começaram a cair, das folhas largas que me lembram como sou pequena. Ao passar pelo portão algo se torna claro.
9 de julho de 2014
8 de julho de 2014
Heidegger costumava usar uma metáfora para o seu trabalho filosófico sobre a casa onde escreveu a maior parte da sua obra. Dizia ele que sempre que chegava a essa casa, a encontrava coberta de gelo, pelo que era necessário escavar, removendo camadas sucessivas de neve, até que a casa ficasse visível e habitável. Dizia que era do mesmo modo que progredia na filosofia.
Se quisesse usar uma metáfora semelhante, teria de ser sobre como, quando regresso a casa, me vou afastando de camadas sucessivas de ruído e bulício, citadinos e íntimos, até finalmente me sentar e não haver mais nada senão uma página em branco à minha frente. Nos dias em que eu própria me torno a página em branco, cheguei a casa.
Se quisesse usar uma metáfora semelhante, teria de ser sobre como, quando regresso a casa, me vou afastando de camadas sucessivas de ruído e bulício, citadinos e íntimos, até finalmente me sentar e não haver mais nada senão uma página em branco à minha frente. Nos dias em que eu própria me torno a página em branco, cheguei a casa.
7 de julho de 2014
Nunca percebi as pessoas que adoram a velocidade. Que interesse pode haver em ir o mais rápido possível em cima de uma mota ou dentro de um carro, por exemplo? Só me fascina a adrenalina da lentidão, se adrenalina é coisa que lhe possa chamar. Gostaria de escrever e falar com uma tonalidade como essa, de uma lentidão quase imperceptivelmente pontoada por raros júbilos, mas um júbilo que incluísse o seu contrário (como se chama a isso que une as duas pontas de um círculo?). E, um dia, gostaria de nomear essa lentidão. Pelo menos uma vez na vida, nomeá-la.
6 de julho de 2014
Percebo perfeitamente a Eva que, seduzida pela serpente, retira o paraíso a Adão, perdendo-o para si mesma. Eva, de quem todos herdámos a culpa, é a mulher que conhece o homem, a sua insensatez e o seu laxismo.
A história parece incompleta. O Génesis quer fazer-nos acreditar numa ausência de ligações primordiais entre quer a serpente e o homem quer entre Eva e a serpente. E isso, a meu ver, torna a história ilegível, incompreensível.
Personagens: o primeiro homem, a quem os animais não fizeram companhia que bastasse para esquecer a solidão. A primeira mulher, perfeição da obra fora de qualquer espontaneidade. A serpente, presença do mal a ocupar o centro do paraíso, estranha presença de um perigo que nem sequer é indesejado para poder ser combatido. E a árvore do conhecimento do bem e do mal, cujos frutos eram interditos mas pendiam, amadurecidos.
Quando fica a conhecer o bem e o mal, Eva vê também a sua perfeição, única e posterior. Mas a Eva seduzida já conhece a sua solidão. Ora, isto passa-se após a oferta do fruto: após ter falado. A primeira vez que Eva fala coincide com a queda original.
A história parece incompleta. O Génesis quer fazer-nos acreditar numa ausência de ligações primordiais entre quer a serpente e o homem quer entre Eva e a serpente. E isso, a meu ver, torna a história ilegível, incompreensível.
Personagens: o primeiro homem, a quem os animais não fizeram companhia que bastasse para esquecer a solidão. A primeira mulher, perfeição da obra fora de qualquer espontaneidade. A serpente, presença do mal a ocupar o centro do paraíso, estranha presença de um perigo que nem sequer é indesejado para poder ser combatido. E a árvore do conhecimento do bem e do mal, cujos frutos eram interditos mas pendiam, amadurecidos.
Quando fica a conhecer o bem e o mal, Eva vê também a sua perfeição, única e posterior. Mas a Eva seduzida já conhece a sua solidão. Ora, isto passa-se após a oferta do fruto: após ter falado. A primeira vez que Eva fala coincide com a queda original.
5 de julho de 2014
Estive a escrever um parágrafo sobre uma frase numa carta que uma vez me enviaram e quando por fim acabei e reli o que tinha acabado de escrever, percebi que a quero, a ela e a tudo o que penso sobre ela, só para mim. É a primeira vez que encontro uma coisa com este caráter nas minhas memórias. Não de secretismo, o caráter, mas de grau de apreço. São demasiado raras as coisas que não queremos usar.
3 de julho de 2014
Disseram-me que o elefante que recolhia amendoins da nossa mão no Jardim Zoológico e depois tocava o sino, morreu. Disseram-me, a meio de outra frase: claro. Claro que já morreu, claro que já era velho. De facto, provavelmente seria velho até quando nasci, mas nunca tinha imaginado a sua morte e por isso a notícia chocou-me, um pouco como se tivesse recebido a notícia da morte de um amigo que vivesse noutra cidade. Gostaria de ter assistido às suas exéquias e tenho pena de não poder voltar a vê-lo. O elefante deixou de estar lá, do outro lado do fosso, a comer amendoins e a tocar o sino.
A conversa tinha contudo começado com a história da sua vinda para Portugal. Este elefante terá pertencido ao tio avô de um amigo que vivia em Angola e que, depois de ter tido alguns problemas com ele, o ofereceu ao novo Jardim Zoológico de Lisboa. De súbito, fico a conhecer uma pequena parte da vida daquele que foi o ser mais amado na minha infância, justamente o início e o fim de uma longa vida, pois ele já era velho quando o conheci, o que na altura me causou enorme espanto e estranheza, porquanto aquele que eu tinha longamente imaginado em devaneios solitários, comigo no dorso, a voar, era robusto e jovem. O elefante velho do Jardim Zoológico estava afastado de nós por um enorme fosso, recebia amendoins e tocava o sino mecanicamente, uma vez após a outra, ao serviço de adultos e de crianças, a ponto de a intervalos o esconderem para descansar. No momento que se seguiu à explicação do motivo do seu desaparecimento, ninguém poderia ter imaginado que no profundo e incompreensível silêncio em que mergulhei o resto da tarde, se escondia ódio contra todos os presentes, os meus pais incluídos, cuja voz denunciava em primeira fila indiferença e mesmo apatia perante a situação. A situação. O elefante dos meus devaneios, sobre quem pedia muitas vezes para me falarem outra vez, era inteligente, amável, gostava de brincar, era tão poderoso que aceitava amendoins das nossas mãos. Em suma, era livre.
Poderá esta ter sido a primeira vez que me vi rodeada de mutismo? Tinha chegado ao Zoológico cumprindo uma ansiada promessa, e aquela, pensava eu, seria a primeira de muitas visitas. Demasiado consciente de um ódio que nasceu contra a minha própria infância, nunca lá voltei.
A conversa tinha contudo começado com a história da sua vinda para Portugal. Este elefante terá pertencido ao tio avô de um amigo que vivia em Angola e que, depois de ter tido alguns problemas com ele, o ofereceu ao novo Jardim Zoológico de Lisboa. De súbito, fico a conhecer uma pequena parte da vida daquele que foi o ser mais amado na minha infância, justamente o início e o fim de uma longa vida, pois ele já era velho quando o conheci, o que na altura me causou enorme espanto e estranheza, porquanto aquele que eu tinha longamente imaginado em devaneios solitários, comigo no dorso, a voar, era robusto e jovem. O elefante velho do Jardim Zoológico estava afastado de nós por um enorme fosso, recebia amendoins e tocava o sino mecanicamente, uma vez após a outra, ao serviço de adultos e de crianças, a ponto de a intervalos o esconderem para descansar. No momento que se seguiu à explicação do motivo do seu desaparecimento, ninguém poderia ter imaginado que no profundo e incompreensível silêncio em que mergulhei o resto da tarde, se escondia ódio contra todos os presentes, os meus pais incluídos, cuja voz denunciava em primeira fila indiferença e mesmo apatia perante a situação. A situação. O elefante dos meus devaneios, sobre quem pedia muitas vezes para me falarem outra vez, era inteligente, amável, gostava de brincar, era tão poderoso que aceitava amendoins das nossas mãos. Em suma, era livre.
Poderá esta ter sido a primeira vez que me vi rodeada de mutismo? Tinha chegado ao Zoológico cumprindo uma ansiada promessa, e aquela, pensava eu, seria a primeira de muitas visitas. Demasiado consciente de um ódio que nasceu contra a minha própria infância, nunca lá voltei.
Sexta-feira de manhã [5 de Junho de 1942],
às sete e meia, na casa de banho.
Esta tarde vi gravuras japonesas com o Glassner. E de repente fiquei a saber: é assim que eu quero escrever. Com um espaço imenso à volta das palavras. Detesto muitas palavras. Quereria escrever somente palavras organicamente inseridas num grande silêncio, daquelas cuja única utilidade é dominar o silêncio e rasgá-lo. Na realidade as palavras devem acentuar o silêncio, tal como naquela gravura japonesa com o ramo florido para baixo, para o canto. Umas ténues pinceladas - mas com que olho para reproduzir o mais pequeno pormenor - e, à volta delas, o grande espaço, mas não um espaço representando um vazio, mas sim, digamos, um espaço com alma. Detesto uma acumulação de palavras. Na realidade pode usar-se poucas palavras para nomear as grandes coisas que importam na vida. Se algum dia chegar a escrever - o quê, sinceramente? - gostaria então de pincelar algumas palavras sobre um fundo mudo. E há-de ser mais difícil de reproduzir e animar esse silêncio e essa mudez do que achar as palavras. O importante será a relação justa entre palavras e silêncio, um silêncio no qual acontece mais do que em todas as palavras que uma pessoa consiga reunir. E em cada novela - ou seja lá aquilo que for - o fundo em silêncio terá de ter um matiz e um conteúdo diferentes, exactamente como acontece nas gravuras japonesas. Não se trata de um silêncio vago e inatingível, esse silêncio terá também de ter os seus próprios contornos definidos e a sua própria forma. E, por conseguinte, as palavras deveriam servir somente para dar forma e delineação ao silêncio. E cada palavra é como um pequeno marco ou um pequeno relevo ao longo de infindáveis caminhos planos e extensos, e vastas planícies.
(...).
Etty Hillesum, Diário 1941-1943.
às sete e meia, na casa de banho.
Esta tarde vi gravuras japonesas com o Glassner. E de repente fiquei a saber: é assim que eu quero escrever. Com um espaço imenso à volta das palavras. Detesto muitas palavras. Quereria escrever somente palavras organicamente inseridas num grande silêncio, daquelas cuja única utilidade é dominar o silêncio e rasgá-lo. Na realidade as palavras devem acentuar o silêncio, tal como naquela gravura japonesa com o ramo florido para baixo, para o canto. Umas ténues pinceladas - mas com que olho para reproduzir o mais pequeno pormenor - e, à volta delas, o grande espaço, mas não um espaço representando um vazio, mas sim, digamos, um espaço com alma. Detesto uma acumulação de palavras. Na realidade pode usar-se poucas palavras para nomear as grandes coisas que importam na vida. Se algum dia chegar a escrever - o quê, sinceramente? - gostaria então de pincelar algumas palavras sobre um fundo mudo. E há-de ser mais difícil de reproduzir e animar esse silêncio e essa mudez do que achar as palavras. O importante será a relação justa entre palavras e silêncio, um silêncio no qual acontece mais do que em todas as palavras que uma pessoa consiga reunir. E em cada novela - ou seja lá aquilo que for - o fundo em silêncio terá de ter um matiz e um conteúdo diferentes, exactamente como acontece nas gravuras japonesas. Não se trata de um silêncio vago e inatingível, esse silêncio terá também de ter os seus próprios contornos definidos e a sua própria forma. E, por conseguinte, as palavras deveriam servir somente para dar forma e delineação ao silêncio. E cada palavra é como um pequeno marco ou um pequeno relevo ao longo de infindáveis caminhos planos e extensos, e vastas planícies.
(...).
Etty Hillesum, Diário 1941-1943.
2 de julho de 2014
Guardo a sensação de sentir uma proximidade intolerável com a Duras. Não pego num livro dela há anos, por medo desse espelho. Creio que não conseguiria escrever. Quando voltar aos seus livros, o que tenho muitas vezes vontade de fazer, terei deixado de precisar de ser visível. Mas também terei deixado de precisar de ler outros livros.
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