Put all those nasty thoughts you have to use:
If someone asks me, “Why do you write?” I can reply by pointing out that it is a very dumb question. Nevertheless, there is an answer. I write because I hate. A lot. Hard. And if someone asks me the inevitable next dumb question, “Why do you write the way you do?” I must answer that I wish to make my hatred acceptable because my hatred is much of me, if not the best part. Writing is a way of making the writer acceptable to the world—every cheap, dumb, nasty thought, every despicable desire, every noble sentiment, every expensive taste.
3 de janeiro de 2018
29 de dezembro de 2017
Somos um espelho mais ou menos deformado das nossas famílias?
Sem dúvida. Foi o que eu procurei encontrar, a minha identidade, e como é que a formei. O livro é 90% a minha família e 10% eu. Os pensamentos que escrevi, as coisas que disse, na sua grande parte não são minhas, foram-me passados por eles, de uma maneira ou de outra. Eu deformei-os e adaptei-os.
Sem dúvida. Foi o que eu procurei encontrar, a minha identidade, e como é que a formei. O livro é 90% a minha família e 10% eu. Os pensamentos que escrevi, as coisas que disse, na sua grande parte não são minhas, foram-me passados por eles, de uma maneira ou de outra. Eu deformei-os e adaptei-os.
21 de dezembro de 2017
20 de dezembro de 2017
quando escolho um tema para um texto a minha atenção sobre ele muda, de modo que o texto se vai revelando à medida que o escrevo. por vezes demora muito tempo, mesmo que seja um pequeno texto, porque a atenção alimenta-se a si própria e cresce. mas sempre que tenho ideias preconcebidas ou interditos sobre o que dizer bloqueio e o texto não passa do rascunho.
outra nota: uma escritora que conheço disse-me que tem um espaço de trabalho em casa de onde se ausenta para espairecer. não consigo imaginar a escrita como um trabalho de que queira distrair-me.
outra nota: uma escritora que conheço disse-me que tem um espaço de trabalho em casa de onde se ausenta para espairecer. não consigo imaginar a escrita como um trabalho de que queira distrair-me.
13 de dezembro de 2017
Nós estamos entregues uns aos outros. Todos os nossos sentimentos, vontades e desejos, toda a nossa constituição psíquica individual, com todos os seus esconsos recantos e duras superfícies, de certa maneira, tornou-se mais rígida cedo na infância, quase impossível de romper, e defronta-se com os sentimentos, vontades e desejos dos outros e com a sua constituição psíquica individual. Apesar de os nossos corpos serem simples e flexíveis, capazes de beber chá pelas mais finas e delicadas porcelanas chinesas, e de as nossas maneiras serem boas, de modo a sabermos o que as diferentes situações exigem de nós, as nossas almas parecem-se com dinossauros, são volumosas como casas, movem-se pesada e lentamente, mas se tiverem medo ou ficarem zangadas são perigosíssimas, não têm qualquer escrúpulo em ferir ou matar. Com esta imagem quero dizer que, se tudo parece inspirar confiança por fora, no interior acontecem sempre coisas bem diferentes, e numa dimensão bem diferente. Enquanto uma palavra no exterior é apenas uma palavra que cai ao chão e desaparece, uma palavra pode tornar-se algo de enorme no interior e permanecer aí durante muitos anos. E enquanto um incidente no exterior é apenas um incidente, frequentemente previsível e sempre depressa ultrapassado, pode ser totalmente decisivo no interior e provocar medo, que paralisa ou provoca azedume, que paralisa ou, pelo contrário, provoca temeridade que não paralisa, mas que pode conduzir a uma queda.
Karl Ove Knausgård, No Inverno.
Karl Ove Knausgård, No Inverno.
11 de dezembro de 2017
no meu livro de horas um gato atravessa uma ponte sob a qual passa um rio tumultuoso e cinzento, que se enrola em pequenas ondas com espuma. não se vê nada do leito lamacento, pensa-se que poderá haver peixes, girinos, plantas, mas na realidade, quanto a isso, não se passa da incredulidade. quando o gato alcança a outra margem, caminhou durante anos e tem fome. estamos um perante o outro e já prestes a separar-nos, pois preparo-me para iniciar a minha própria travessia. iniciamos com o nosso encontro um inóspito trabalho de memória que a água lá em baixo se encarrega de desfazer. antes de partir repousamos, sem sono nem exaltação, e nos nossos sonhos outros animais aparecem: um urso, um tigre, um galo, um homem que procuramos decifrar. contudo, cada palavra que usamos o apaga um pouco mais, e assim, esquivo e sem finalidade, observamo-lo entrar na floresta pela manhã e estilhaçar-se. sem me despedir do gato, entro na ponte e vigio as suas margens. o rio não cessa de bradar e eu penso nos peixes que nunca vi. não vou ainda a meio quando, cansada do meu silêncio, encontro um espírito que se aloja em cheio no meu centro. perturbada e comovida, não paro de caminhar quando me começa a falar da imensidão de branco que vê. debruço-me sobre um dos muros da ponte procurando preenchê-lo com o desenho do rio tormentoso, de folhas caídas, troncos que leve, rochas a descoberto, mas nada disso é meu. faltam poucos anos para chegar ao fim da minha travessia quando se cala. a sua última palavra tinha a densidade do segredo, de qualquer coisa que sulcou as águas inavegáveis e fez cair a minha máscara.
10 de dezembro de 2017
If you have ever stood in a room in front of a painting by Munch, or Van Gogh or Rembrandt for that matter, you will know that part of the painting’s magic is that it brings together its time and yours, its place and yours, and there is comfort in that, because even the distance that is inherent in loneliness is suspended in that moment.
Karl Ove Knausgård
One evening I was walking along a path, the city was on one side and the fjord below. I felt tired and ill. I stopped and looked out over the fjord—the sun was setting, and the clouds turning blood red. I sensed a scream passing through nature; it seemed to me that I heard the scream. I painted this picture, painted the clouds as actual blood. The color shrieked. This became The Scream.
Edvard Munch
FLOR AZUL, de Raul Domingues
A origem, se bem que seja uma categoria histórica, não tem nada a ver com a génese das coisas. A origem não designa o devir do que nasceu, mas o que está a nascer no devir e no declínio. A origem é um turbilhão no fluxo do devir.
Walter Benjamin
O silêncio e a natureza revelam-nos que estamos numa aldeia. Não sabemos qual, pode ser uma aldeia qualquer. Também não sabemos quem são aquelas pessoas, mas percebemos que se trata de um ambiente familiar. Há uma relação física entre o olhar da câmara e o que esta nos dá a ver. Muita delicadeza, uma beleza comovente atingem-nos sem que possamos decidir exatamente de onde vem ou o que a motiva. Essa familiaridade transborda, como se fossemos bem-vindos a todos os lugares, incluindo aquele onde nos encontramos agora (a sala de cinema, o teatro, a nossa vida). Como dizia Nuno Lisboa numa conversa justamente a propósito do trabalho de Raul Domingues, Cinema é tudo aquilo que começa quando acaba o filme.
Foi muito curioso descobrir, alguns meses depois de ter visto FLOR AZUL, que o filme tinha sido feito para terminar um curso que o Raul estava a fazer nas Caldas. Não deve haver nada mais surpreendente do que pensar em FLOR AZUL, um filme que rompe todas as regras, como um exercício de escola. É um filme intemporal. Tudo nele é uma fulguração, cada plano, cada som, cada gesto, cada forma, nos catapulta para o presente, concreto e absoluto. Por isso, este filme não termina na sala de cinema, com a sua exibição. Sem dúvida não terminou para mim, tornando-se a cada plano um filme extremamente pessoal. Um acontecimento.
Se digo que FLOR AZUL rompe com as regras, não quero contudo com isso afirmar que haja uma rejeição direta e propositada de quaisquer regras, tal como se diz que o discípulo deverá fazer em relação ao mestre. É verdade que não vejo qualquer tentativa de influenciar o mundo mas não vejo também nenhuma necessidade de o repudiar. Não há qualquer tentativa de devassar ou destruir nada. Não há pretensões em corrigir a vida.
Nunca neste filme estamos completamente sozinhos. A companhia dos animais é uma constante desde o início (um cavalo, um burro, galinhas, galos, gatos, ovelhas, pássaros). Para além disso, há também a ideia de que «aquilo que se está a fazer há-de ser recebido por outros». Assim é, com uma vinha que se inicia, com a recolha de galhos, a preparação de uma festa e com o próprio filme. Creio que uma das coisas mais importantes deste filme é o facto de não se constituir como pura contemplação. Parece-me ser esse o principal motivo porque não se trate aqui de nostalgia mas sim de presente. Explicava a certa altura o Raul que A câmara está presente, é como eu. Assim, o seu nome ouve-se algumas vezes, há conselhos que lhe são dirigidos (o senhor com o burro aconselha-o a mudar de sítio para filmar melhor a oliveira, por exemplo), alguém lhe dedica uma música quase no final. E tudo nos inclui.
Vemos desfocado, vemos próximo, vemos o silêncio. Na grande maioria do tempo ficamos imóveis e não podemos avançar. É então apenas isto?, perguntamos. Também aqui o filme é de uma enorme genuinidade: há nele qualquer coisa da ordem do isolamento. É essa a contrapartida a pagar pela beleza. Contudo, em vez de inacessibilidade e impotência, o que temos é um universo para além da banalidade. Quando focamos as coisas ao pormenor, como Raul Domingues faz aqui, não é tanto para ver mas antes porque nos entendemos próximos daquilo que vemos. E, nessa medida, porque somos vistos por aquilo que vemos. Objetos, animais, luz, sons, pessoas, é no lugar que ocupamos que as formas se decifram. O espaço puro não existe, isso é uma abstração geométrica. Há um fragmento muito conhecido de Blaise Pascal (Pensées, 1670), que fala da sua ignorância sobre todas as coisas, desde o seu corpo, à sua alma e ao mundo. Diz ele que se vê, insignificante como uma sombra, preso a uma imensa vastidão e nela coloca-se inúmeras perguntas: porquê este lugar e não outro, porquê, de toda a eternidade, este tempo e não outro. Aqui não existe essa dúvida. Somos levados numa deriva, com o seu profundo silêncio, que estabelece a presença (do corpo no tempo) e, por isso também, através de uma treva onde toda a intimidade do mundo se aloja. É uma solidão infantil, que ao invés de experimentar a fugacidade do tempo, apenas tem nele lugar, entre todas as coisas. Há por isso a sensação de poder ver as coisas pela primeira vez, de estar aqui (a abelha que poisa na flor, seguir uma borboleta). Estamos condenados a conviver com a forma das coisas, e a retirar delas o máximo possível de sinais para a nossa própria decifração. Mas a verdade é que, por muitos truques que possam ter sido utilizados, não sinto que alguém me quer dar algo a ver. Há antes um convite a ver com. Contra a fealdade e a ignorância, FLOR AZUL revela um mundo secreto feito de pormenores inoperantes, comuns.
Há aqui também um grande investimento no silêncio, que me é particularmente caro. Pois o silêncio não é uma ausência de som é a intensificação da escuta. É através dele, enquanto é presença e apelo, que se incorpora a matéria, é ele que dá forma ao corpo pleno — que se forma entre o espetador e o filme. O estado de atenção a que o filme nos convoca — pelo movimento constante da câmara, pela exuberância das formas a que cada plano nos dá acesso e pela grande vitalidade de sons —, remove tudo o que é acessório da lógica do corpo. Recordo agora a timidez do Raul, que frequentemente, embora com uma certa doçura, o leva a afirmar não gostar muito de palavras. Recordo que o tédio faz-nos falar, o sábio não fala muito.
Não é possível distinguir entre o filme e o mundo. A visão desaparece e a verdade do mundo ordenado dá lugar a uma tensão: toda a imagem porta toda a verdade. Todo o devir quer comunicar. Para lá da sua aparente candura, há nestas imagens a grande violência da juventude, sua força, bonança, aventura, toda a doçura da luz.
Uma das aulas da Professora Maria Filomena Molder a que tive oportunidade de assistir (Universidade Nova de Lisboa, 10.12.2014), terminou com a seguinte frase: «Ser-se livre é nunca mais nos envergonharmos daquilo que somos, é esse o conteúdo inteiro de uma coisa que não está terminada». Este filme lembra-me que cada momento é irrepetível. Que da vida não há redenção. Somos radicalmente livres, e é dessa forma que temos de viver no mundo e uns com os outros.
Escrito a convite de Raul Domingues e André Dias para apresentação do filme em Leiria, no dia 31 de julho de 2015, no Teatro Miguel Franco.
A origem, se bem que seja uma categoria histórica, não tem nada a ver com a génese das coisas. A origem não designa o devir do que nasceu, mas o que está a nascer no devir e no declínio. A origem é um turbilhão no fluxo do devir.
Walter Benjamin
O silêncio e a natureza revelam-nos que estamos numa aldeia. Não sabemos qual, pode ser uma aldeia qualquer. Também não sabemos quem são aquelas pessoas, mas percebemos que se trata de um ambiente familiar. Há uma relação física entre o olhar da câmara e o que esta nos dá a ver. Muita delicadeza, uma beleza comovente atingem-nos sem que possamos decidir exatamente de onde vem ou o que a motiva. Essa familiaridade transborda, como se fossemos bem-vindos a todos os lugares, incluindo aquele onde nos encontramos agora (a sala de cinema, o teatro, a nossa vida). Como dizia Nuno Lisboa numa conversa justamente a propósito do trabalho de Raul Domingues, Cinema é tudo aquilo que começa quando acaba o filme.
Foi muito curioso descobrir, alguns meses depois de ter visto FLOR AZUL, que o filme tinha sido feito para terminar um curso que o Raul estava a fazer nas Caldas. Não deve haver nada mais surpreendente do que pensar em FLOR AZUL, um filme que rompe todas as regras, como um exercício de escola. É um filme intemporal. Tudo nele é uma fulguração, cada plano, cada som, cada gesto, cada forma, nos catapulta para o presente, concreto e absoluto. Por isso, este filme não termina na sala de cinema, com a sua exibição. Sem dúvida não terminou para mim, tornando-se a cada plano um filme extremamente pessoal. Um acontecimento.
Se digo que FLOR AZUL rompe com as regras, não quero contudo com isso afirmar que haja uma rejeição direta e propositada de quaisquer regras, tal como se diz que o discípulo deverá fazer em relação ao mestre. É verdade que não vejo qualquer tentativa de influenciar o mundo mas não vejo também nenhuma necessidade de o repudiar. Não há qualquer tentativa de devassar ou destruir nada. Não há pretensões em corrigir a vida.
Nunca neste filme estamos completamente sozinhos. A companhia dos animais é uma constante desde o início (um cavalo, um burro, galinhas, galos, gatos, ovelhas, pássaros). Para além disso, há também a ideia de que «aquilo que se está a fazer há-de ser recebido por outros». Assim é, com uma vinha que se inicia, com a recolha de galhos, a preparação de uma festa e com o próprio filme. Creio que uma das coisas mais importantes deste filme é o facto de não se constituir como pura contemplação. Parece-me ser esse o principal motivo porque não se trate aqui de nostalgia mas sim de presente. Explicava a certa altura o Raul que A câmara está presente, é como eu. Assim, o seu nome ouve-se algumas vezes, há conselhos que lhe são dirigidos (o senhor com o burro aconselha-o a mudar de sítio para filmar melhor a oliveira, por exemplo), alguém lhe dedica uma música quase no final. E tudo nos inclui.
Vemos desfocado, vemos próximo, vemos o silêncio. Na grande maioria do tempo ficamos imóveis e não podemos avançar. É então apenas isto?, perguntamos. Também aqui o filme é de uma enorme genuinidade: há nele qualquer coisa da ordem do isolamento. É essa a contrapartida a pagar pela beleza. Contudo, em vez de inacessibilidade e impotência, o que temos é um universo para além da banalidade. Quando focamos as coisas ao pormenor, como Raul Domingues faz aqui, não é tanto para ver mas antes porque nos entendemos próximos daquilo que vemos. E, nessa medida, porque somos vistos por aquilo que vemos. Objetos, animais, luz, sons, pessoas, é no lugar que ocupamos que as formas se decifram. O espaço puro não existe, isso é uma abstração geométrica. Há um fragmento muito conhecido de Blaise Pascal (Pensées, 1670), que fala da sua ignorância sobre todas as coisas, desde o seu corpo, à sua alma e ao mundo. Diz ele que se vê, insignificante como uma sombra, preso a uma imensa vastidão e nela coloca-se inúmeras perguntas: porquê este lugar e não outro, porquê, de toda a eternidade, este tempo e não outro. Aqui não existe essa dúvida. Somos levados numa deriva, com o seu profundo silêncio, que estabelece a presença (do corpo no tempo) e, por isso também, através de uma treva onde toda a intimidade do mundo se aloja. É uma solidão infantil, que ao invés de experimentar a fugacidade do tempo, apenas tem nele lugar, entre todas as coisas. Há por isso a sensação de poder ver as coisas pela primeira vez, de estar aqui (a abelha que poisa na flor, seguir uma borboleta). Estamos condenados a conviver com a forma das coisas, e a retirar delas o máximo possível de sinais para a nossa própria decifração. Mas a verdade é que, por muitos truques que possam ter sido utilizados, não sinto que alguém me quer dar algo a ver. Há antes um convite a ver com. Contra a fealdade e a ignorância, FLOR AZUL revela um mundo secreto feito de pormenores inoperantes, comuns.
Há aqui também um grande investimento no silêncio, que me é particularmente caro. Pois o silêncio não é uma ausência de som é a intensificação da escuta. É através dele, enquanto é presença e apelo, que se incorpora a matéria, é ele que dá forma ao corpo pleno — que se forma entre o espetador e o filme. O estado de atenção a que o filme nos convoca — pelo movimento constante da câmara, pela exuberância das formas a que cada plano nos dá acesso e pela grande vitalidade de sons —, remove tudo o que é acessório da lógica do corpo. Recordo agora a timidez do Raul, que frequentemente, embora com uma certa doçura, o leva a afirmar não gostar muito de palavras. Recordo que o tédio faz-nos falar, o sábio não fala muito.
Não é possível distinguir entre o filme e o mundo. A visão desaparece e a verdade do mundo ordenado dá lugar a uma tensão: toda a imagem porta toda a verdade. Todo o devir quer comunicar. Para lá da sua aparente candura, há nestas imagens a grande violência da juventude, sua força, bonança, aventura, toda a doçura da luz.
Uma das aulas da Professora Maria Filomena Molder a que tive oportunidade de assistir (Universidade Nova de Lisboa, 10.12.2014), terminou com a seguinte frase: «Ser-se livre é nunca mais nos envergonharmos daquilo que somos, é esse o conteúdo inteiro de uma coisa que não está terminada». Este filme lembra-me que cada momento é irrepetível. Que da vida não há redenção. Somos radicalmente livres, e é dessa forma que temos de viver no mundo e uns com os outros.
Escrito a convite de Raul Domingues e André Dias para apresentação do filme em Leiria, no dia 31 de julho de 2015, no Teatro Miguel Franco.
8 de dezembro de 2017
a manutenção das relações é feita através de um escrupuloso uso do silêncio. enquanto instrumento de autopreservação, esse silêncio pode introduzir um certo mal-estar ao revelar inadequação, incapacidade, impossibilidade ou simplesmente ao dar a perceber a relação com o outro como uma relação complexa e contraditória. aquilo que preferimos não dizer, porque não queremos, não podemos ou não devemos, constitui a essência dessas relações e determina a sua verdade porventura mais do que o que é dito. isto significa que o que é silenciado tem mais poder na medida em que é formador de uma identidade e define a elasticidade de um vínculo. é por isso que séries como Friends ou Seinfeld têm tanto sucesso: um grupo de amigos que vivem praticamente juntos e veem tudo o que sentem e pensam ser acolhido por uma aceitação incondicional, sem nunca provocar a grande calamidade da rutura, o que pode haver de mais consolador? na realidade as pessoas não são assim. enquanto instrumento de comunicação, a linguagem mostra-se particularmente inadequada e ineficaz para dar conta daquilo que se desenvolve na sensibilidade individual e o silêncio acaba por ser a possibilidade que temos de fazer face à nossa incompletude e contradição constitutiva. são categorias como estas — a fissura, a imperfeição, o inconveniente — que nos situam na relação com os outros e nos deixam ver como qualquer discurso remete sempre para outro discurso. há coisas que, uma vez ditas, arruinariam uma relação e é precisamente isso que nos permite verificar as suas bases. se o silêncio ameaça o discurso, o diálogo, a expressão e a comunicação, é também nos silêncios que tentamos captar, interpretar e assimilar os fluxos de pensamento. é neste sentido que o silêncio não é uma alternativa simples à palavra e pode ser pressentido como um sintoma de perigo ou de dor, revelando por sua vez a superficialidade da relação que as pessoas mantêm: é nos intervalos que algo que subjaz ao discurso continua a ressoar, algo que, voluntariamente retido, é tão ou mais importante do que aquilo que é dito.
6 de dezembro de 2017
tenho uma vizinha viúva e sem filhos com princípio de demência. costumava gostar de falar com ela pela sua jovialidade e lucidez, agora aponta para coisas que não estão lá. irá morrer sozinha internada numa instituição hedionda, ausente de si mesma. por vezes, entre o discurso incompreensível, ainda diz uma ou outra coisa com sentido, mas na maioria do tempo é um brotar de ficções animado por qualquer sombra que chegou para ficar. ouço-as a todas hesitando entre deliciada e aterrada. invejo-lhe secretamente a capacidade de criar estas ficções com o material mais ordinário do mundo.
várias notícias, conferências, entrevistas e estudos sobre como morrer feliz têm-me chegado. resumi-los é fácil, pois todos apontam para a mesma resposta: estar com os outros. o otimismo parece ter invadido até mesmo a preocupação com a morte. não estar só deixou de ser apenas uma questão de sobrevivência: é uma forma de passar o tempo. o tédio da solidão dá medo. estar inseparavelmente face ao nosso mundo interno, com as suas personagens interiores, nada dever e nada esperar de ninguém, não ficar ferido pelo vazio das palavras ou dos gestos que desejámos e não apareceram, nada disso é socialmente edificador. a nossa sociedade, onde o que importa é o sucesso e a realização, é gerida pela pressão de conseguir e por uma positividade sufocante. mas é difícil manter o otimismo e o empenhamento quando a nossa capacidade de esperança rapidamente na vida troça da nossa desilusão e da nossa impotência. o que significa estar com os outros senão transpor permanentemente o atrito, as resistências e as oposições que as relações humanas acarretam? não é a solidão ela própria que dá medo, mas o abandono, a rejeição, o isolamento e a morte. o que significa o falhanço? quando nos tornamos um falhanço? falar da solidão como uma aventura que se escolheu, fecunda e desejada, tornou-se enigmático, extravagante, intraduzível. prezar os pequenos acontecimentos como o acordar, o deitar, o comer, o orgulho de conseguir resolver sozinho as mil e uma preocupações diárias, manter-se calmo, longe das tensões, dos gritos, dos trejeitos, não ter de lidar com a inconsequência, o egocentrismo e as presenças-ausência de que apenas com a dose certa de cinismo e sarcasmo se pode tentar escapar, nada disto é prezado como essencial. pergunto-me se não será possível, contudo, encontrar alegria estando face ao seu próprio vazio, uma alegria capaz de gerar certa bonomia que, no fim, seja suficiente.
5 de dezembro de 2017
4 de dezembro de 2017
Durante muito tempo fui para a cama tarde. Ficava entretida na sericultura. Chegar tarde à escrita parece ser grave, chegar tarde à vida não é nomeado. O inominável. Equivaler escrita e vida é o nó do enforcamento. Não é metonímia. Não há figuras de estilo para o atraso. Só relógios, calendários, admoestações.
Rosa Oliveira, Tardio.
28 de novembro de 2017
Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e de lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo.
Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mille Plateaux.
27 de novembro de 2017
26 de novembro de 2017
a verdade, embora improvável, é a verdade deste momento e — tenho mesmo de o escrever — inocente, fala silenciosamente. o mundo tal como ele é, é lúdico, inapagável, um tanto ameaçador. o melhor seria mesmo inventar um alfabeto, ainda que destinado a perder-se em todo o seu mistério, que celebrasse por momentos todas as contradições. como um transe, através de todas as metamorfoses, ambíguas e arbitrárias, a embriaguez seria ainda maior e mais pungente, o único bem da vida, enquanto à superfície a vida normal, não pensada e prosaica, como uma angústia diligente e firme, se organizaria como um teatro.
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