11 de dezembro de 2017
no meu livro de horas um gato atravessa uma ponte sob a qual passa um rio tumultuoso e cinzento, que se enrola em pequenas ondas com espuma. não se vê nada do leito lamacento, pensa-se que poderá haver peixes, girinos, plantas, mas na realidade, quanto a isso, não se passa da incredulidade. quando o gato alcança a outra margem, caminhou durante anos e tem fome. estamos um perante o outro e já prestes a separar-nos, pois preparo-me para iniciar a minha própria travessia. iniciamos com o nosso encontro um inóspito trabalho de memória que a água lá em baixo se encarrega de desfazer. antes de partir repousamos, sem sono nem exaltação, e nos nossos sonhos outros animais aparecem: um urso, um tigre, um galo, um homem que procuramos decifrar. contudo, cada palavra que usamos o apaga um pouco mais, e assim, esquivo e sem finalidade, observamo-lo entrar na floresta pela manhã e estilhaçar-se. sem me despedir do gato, entro na ponte e vigio as suas margens. o rio não cessa de bradar e eu penso nos peixes que nunca vi. não vou ainda a meio quando, cansada do meu silêncio, encontro um espírito que se aloja em cheio no meu centro. perturbada e comovida, não paro de caminhar quando me começa a falar da imensidão de branco que vê. debruço-me sobre um dos muros da ponte procurando preenchê-lo com o desenho do rio tormentoso, de folhas caídas, troncos que leve, rochas a descoberto, mas nada disso é meu. faltam poucos anos para chegar ao fim da minha travessia quando se cala. a sua última palavra tinha a densidade do segredo, de qualquer coisa que sulcou as águas inavegáveis e fez cair a minha máscara.