10 de dezembro de 2017

FLOR AZUL, de Raul Domingues 

A origem, se bem que seja uma categoria histórica, não tem nada a ver com a génese das coisas. A origem não designa o devir do que nasceu, mas o que está a nascer no devir e no declínio. A origem é um turbilhão no fluxo do devir.

Walter Benjamin


O silêncio e a natureza revelam-nos que estamos numa aldeia. Não sabemos qual, pode ser uma aldeia qualquer. Também não sabemos quem são aquelas pessoas, mas percebemos que se trata de um ambiente familiar. Há uma relação física entre o olhar da câmara e o que esta nos dá a ver. Muita delicadeza, uma beleza comovente atingem-nos sem que possamos decidir exatamente de onde vem ou o que a motiva. Essa familiaridade transborda, como se fossemos bem-vindos a todos os lugares, incluindo aquele onde nos encontramos agora (a sala de cinema, o teatro, a nossa vida). Como dizia Nuno Lisboa numa conversa justamente a propósito do trabalho de Raul Domingues, Cinema é tudo aquilo que começa quando acaba o filme.

Foi muito curioso descobrir, alguns meses depois de ter visto FLOR AZUL, que o filme tinha sido feito para terminar um curso que o Raul estava a fazer nas Caldas. Não deve haver nada mais surpreendente do que pensar em FLOR AZUL, um filme que rompe todas as regras, como um exercício de escola. É um filme intemporal. Tudo nele é uma fulguração, cada plano, cada som, cada gesto, cada forma, nos catapulta para o presente, concreto e absoluto. Por isso, este filme não termina na sala de cinema, com a sua exibição. Sem dúvida não terminou para mim, tornando-se a cada plano um filme extremamente pessoal. Um acontecimento.

Se digo que FLOR AZUL rompe com as regras, não quero contudo com isso afirmar que haja uma rejeição direta e propositada de quaisquer regras, tal como se diz que o discípulo deverá fazer em relação ao mestre. É verdade que não vejo qualquer tentativa de influenciar o mundo mas não vejo também nenhuma necessidade de o repudiar. Não há qualquer tentativa de devassar ou destruir nada. Não há pretensões em corrigir a vida.

Nunca neste filme estamos completamente sozinhos. A companhia dos animais é uma constante desde o início (um cavalo, um burro, galinhas, galos, gatos, ovelhas, pássaros). Para além disso, há também a ideia de que «aquilo que se está a fazer há-de ser recebido por outros». Assim é, com uma vinha que se inicia, com a recolha de galhos, a preparação de uma festa e com o próprio filme. Creio que uma das coisas mais importantes deste filme é o facto de não se constituir como pura contemplação. Parece-me ser esse o principal motivo porque não se trate aqui de nostalgia mas sim de presente. Explicava a certa altura o Raul que A câmara está presente, é como eu. Assim, o seu nome ouve-se algumas vezes, há conselhos que lhe são dirigidos (o senhor com o burro aconselha-o a mudar de sítio para filmar melhor a oliveira, por exemplo), alguém lhe dedica uma música quase no final. E tudo nos inclui.

Vemos desfocado, vemos próximo, vemos o silêncio. Na grande maioria do tempo ficamos imóveis e não podemos avançar. É então apenas isto?, perguntamos. Também aqui o filme é de uma enorme genuinidade: há nele qualquer coisa da ordem do isolamento. É essa a contrapartida a pagar pela beleza. Contudo, em vez de inacessibilidade e impotência, o que temos é um universo para além da banalidade. Quando focamos as coisas ao pormenor, como Raul Domingues faz aqui, não é tanto para ver mas antes porque nos entendemos próximos daquilo que vemos. E, nessa medida, porque somos vistos por aquilo que vemos. Objetos, animais, luz, sons, pessoas, é no lugar que ocupamos que as formas se decifram. O espaço puro não existe, isso é uma abstração geométrica. Há um fragmento muito conhecido de Blaise Pascal (Pensées, 1670), que fala da sua ignorância sobre todas as coisas, desde o seu corpo, à sua alma e ao mundo. Diz ele que se vê, insignificante como uma sombra, preso a uma imensa vastidão e nela coloca-se inúmeras perguntas: porquê este lugar e não outro, porquê, de toda a eternidade, este tempo e não outro. Aqui não existe essa dúvida. Somos levados numa deriva, com o seu profundo silêncio, que estabelece a presença (do corpo no tempo) e, por isso também, através de uma treva onde toda a intimidade do mundo se aloja. É uma solidão infantil, que ao invés de experimentar a fugacidade do tempo, apenas tem nele lugar, entre todas as coisas. Há por isso a sensação de poder ver as coisas pela primeira vez, de estar aqui (a abelha que poisa na flor, seguir uma borboleta). Estamos condenados a conviver com a forma das coisas, e a retirar delas o máximo possível de sinais para a nossa própria decifração. Mas a verdade é que, por muitos truques que possam ter sido utilizados, não sinto que alguém me quer dar algo a ver. Há antes um convite a ver com. Contra a fealdade e a ignorância, FLOR AZUL revela um mundo secreto feito de pormenores inoperantes, comuns.

Há aqui também um grande investimento no silêncio, que me é particularmente caro. Pois o silêncio não é uma ausência de som é a intensificação da escuta. É através dele, enquanto é presença e apelo, que se incorpora a matéria, é ele que dá forma ao corpo pleno — que se forma entre o espetador e o filme. O estado de atenção a que o filme nos convoca — pelo movimento constante da câmara, pela exuberância das formas a que cada plano nos dá acesso e pela grande vitalidade de sons —, remove tudo o que é acessório da lógica do corpo. Recordo agora a timidez do Raul, que frequentemente, embora com uma certa doçura, o leva a afirmar não gostar muito de palavras. Recordo que o tédio faz-nos falar, o sábio não fala muito.

Não é possível distinguir entre o filme e o mundo. A visão desaparece e a verdade do mundo ordenado dá lugar a uma tensão: toda a imagem porta toda a verdade. Todo o devir quer comunicar. Para lá da sua aparente candura, há nestas imagens a grande violência da juventude, sua força, bonança, aventura, toda a doçura da luz.

Uma das aulas da Professora Maria Filomena Molder a que tive oportunidade de assistir (Universidade Nova de Lisboa, 10.12.2014), terminou com a seguinte frase: «Ser-se livre é nunca mais nos envergonharmos daquilo que somos, é esse o conteúdo inteiro de uma coisa que não está terminada». Este filme lembra-me que cada momento é irrepetível. Que da vida não há redenção. Somos radicalmente livres, e é dessa forma que temos de viver no mundo e uns com os outros.

Escrito a convite de Raul Domingues e André Dias para apresentação do filme em Leiria, no dia 31 de julho de 2015, no Teatro Miguel Franco.