14 de setembro de 2015
11 de setembro de 2015
One grows up in a specific community – a family, a village, a city. I
grew up in a village of 20 families. Within the 5km radius of this
village, I knew all the places where I could find mushrooms or wild
strawberries, things like that. But once you get further out, the fields
become more and more general. I knew that in the villages 15km further,
people spoke already in slightly different accent and they could find
mushrooms there that we didn’t have in the woods of our village. I am a
regionalist, because I am formed by the region in which I grew up. My
language, and even my body, what I ate, was affected not only by my
mother, my father and my neighbours, but also by the nature around me,
the land, the weather, the water. All those things are regional. The
idea of internationalism is good, but it cannot be applied abstractly.
Jonas Mekas, publicado no Facebook às 22:00 no dia 10 de setembro de 2015.
Jonas Mekas, publicado no Facebook às 22:00 no dia 10 de setembro de 2015.
6 de setembro de 2015
Quando
a minha cabeça caiu lentamente sobre a secretária eu já não fazia parte
deste mundo. Foi numa tarde de calor em novembro de 2007. Neste dia,
saí de casa seis minutos antes da hora habitual, seis minutos que
trouxeram uma ligeira angústia aos gestos (calçar os sapatos, abrir a
porta, fechar duas vezes à chave, descer as escadas, ver o correio, sair
para a rua) até a distração me fazer esquecer
que hoje tinha mais tempo. Cheguei dez minutos adiantado à porta do
trabalho e quando dei os bons dias à rececionista pensei subitamente no
riso contagiante da minha bisavó que, quando lhe diziam aos 80 anos que
ainda era uma mulher bonita, respondia sempre que era por nunca ter
achado que a beleza estava associada à juventude.
Estava calor dentro da minha sala como se fosse um dia de verão e eu tinha saudades do inverno. Antes novembro era especial. As castanhas, as nozes, os figos, os diospiros, as romãs, o primeiro vinho, as folhas amarelas no chão (quando andava no colégio fiz um herbário em ciências e aquilo entusiasmou-me muito, com uma capa de cartolina e umas folhas de papel vegetal a separá-las), o cheiro das lareiras vindo das chaminés, os primeiros casacos do ano, a chuva miudinha no rosto, os castanhos e os vermelhos-sangue, a luz coada, a música de Bach num fim de tarde cinzento suave, o nevoeiro que nos conforta, o fumo a sair do rio, o fumo a sair das bocas, os narizes um bocado ranhosos que ainda assim apetece beijar, as mãos com luvas de lã e um cachecol a acariciar o pescoço. Parece que neste dia estavam pessoas a banhos no Algarve. É como um tempo entre parêntesis no calendário, uma folga utópica, uma espécie de eflúvio. Este ano também estive no Algarve, mas em agosto, e quando lá estive fartou-se de chover. Fui para um sítio onde nunca tinha estado, através do meu colega Armando. Para uma casa ali entre o Vau e o Alvor. Gostei muito do Vau, dos fins de tarde no Vau. Dei longos passeios por entre as rochas, quase parecia o senhor Palomar nas suas deambulações. Quando se é habitualmente o último a sair da praia, o repouso e a serenidade acabam mesmo por ser um objetivo plenamente alcançado. A certa altura já se ganhou alguma familiaridade com as rochas, cujo silêncio é apenas interrompido pelas gaivotas ou pelos namorados que passam. Gosto da imobilidade das rochas tal como gosto da mudança nas pessoas. Ser rocha é ser igual a si, ser pessoa é ser diferente de si.
Eu lá nisto das viagens sou muito humilde. Não me puxa nada para ir para Londres ou para Nova Iorque apanhar flores e folhas de árvores. Por acaso ando há muito tempo com vontade de ir dar uma volta a Espanha. Mas só porque é perto. De resto, ir a algum sítio, só se tiver alguém conhecido para poder estar lá como residente e não como turista. Quando fui dois anos seguidos à Alemanha, do que eu mais gostava era de poder ir de manhã ao pão, à noite ir até aos bares de bairro e já cumprimentar os vizinhos. Isso sim é estar num país e não se limitar a ver as montras que os departamentos de turismo colocam para atrair as moscas que vêm de fora. O que é que eu vou fazer uma semana a Londres? Ver postais ilustrados?
Tinha as mãos entre folhas de papel azul e apeteceu-me tirar uma fotografia à sombra refletida na parede. Atravessando a janela atrás de mim, a luz cria com extraordinária definição os meus contornos na parede. É como uma sombra que se movesse no interior dos meus gestos.
Na fotografia não há antes e depois, porque na fotografia não há movimento. É como uma magia que suspende a realidade e dispensa as convenções formais da racionalidade. Gosto tanto das fotografias a preto e branco como das fotografias a cores, com muita luz, com muitas sombras e também das estragadas, com as quais desenvolvi a arte da paciência. É curioso. O rolo nunca se acaba.
Estava calor dentro da minha sala como se fosse um dia de verão e eu tinha saudades do inverno. Antes novembro era especial. As castanhas, as nozes, os figos, os diospiros, as romãs, o primeiro vinho, as folhas amarelas no chão (quando andava no colégio fiz um herbário em ciências e aquilo entusiasmou-me muito, com uma capa de cartolina e umas folhas de papel vegetal a separá-las), o cheiro das lareiras vindo das chaminés, os primeiros casacos do ano, a chuva miudinha no rosto, os castanhos e os vermelhos-sangue, a luz coada, a música de Bach num fim de tarde cinzento suave, o nevoeiro que nos conforta, o fumo a sair do rio, o fumo a sair das bocas, os narizes um bocado ranhosos que ainda assim apetece beijar, as mãos com luvas de lã e um cachecol a acariciar o pescoço. Parece que neste dia estavam pessoas a banhos no Algarve. É como um tempo entre parêntesis no calendário, uma folga utópica, uma espécie de eflúvio. Este ano também estive no Algarve, mas em agosto, e quando lá estive fartou-se de chover. Fui para um sítio onde nunca tinha estado, através do meu colega Armando. Para uma casa ali entre o Vau e o Alvor. Gostei muito do Vau, dos fins de tarde no Vau. Dei longos passeios por entre as rochas, quase parecia o senhor Palomar nas suas deambulações. Quando se é habitualmente o último a sair da praia, o repouso e a serenidade acabam mesmo por ser um objetivo plenamente alcançado. A certa altura já se ganhou alguma familiaridade com as rochas, cujo silêncio é apenas interrompido pelas gaivotas ou pelos namorados que passam. Gosto da imobilidade das rochas tal como gosto da mudança nas pessoas. Ser rocha é ser igual a si, ser pessoa é ser diferente de si.
Eu lá nisto das viagens sou muito humilde. Não me puxa nada para ir para Londres ou para Nova Iorque apanhar flores e folhas de árvores. Por acaso ando há muito tempo com vontade de ir dar uma volta a Espanha. Mas só porque é perto. De resto, ir a algum sítio, só se tiver alguém conhecido para poder estar lá como residente e não como turista. Quando fui dois anos seguidos à Alemanha, do que eu mais gostava era de poder ir de manhã ao pão, à noite ir até aos bares de bairro e já cumprimentar os vizinhos. Isso sim é estar num país e não se limitar a ver as montras que os departamentos de turismo colocam para atrair as moscas que vêm de fora. O que é que eu vou fazer uma semana a Londres? Ver postais ilustrados?
Tinha as mãos entre folhas de papel azul e apeteceu-me tirar uma fotografia à sombra refletida na parede. Atravessando a janela atrás de mim, a luz cria com extraordinária definição os meus contornos na parede. É como uma sombra que se movesse no interior dos meus gestos.
Na fotografia não há antes e depois, porque na fotografia não há movimento. É como uma magia que suspende a realidade e dispensa as convenções formais da racionalidade. Gosto tanto das fotografias a preto e branco como das fotografias a cores, com muita luz, com muitas sombras e também das estragadas, com as quais desenvolvi a arte da paciência. É curioso. O rolo nunca se acaba.
Não penses. Não penses.
Os pensamentos são como a chama
que de alto a baixo tudo consome.
Perde a razão,
endoidece de embriaguez e assombro,
e de cada broto nascerá a cana-de-açúcar.
A bravura é demência, tira-a da cabeça, renuncia!
Como o leão e os homens, renega as vãs esperanças.
Os pensamentos são armadilhas,
é proibido desperdiçá-los.
Para que tanto sacrifício por migalhas?
Se não te absténs desse alimento,
é inútil querer livrar-te de tais ardis.
Se a avidez reclama, sê surdo aos seus apelos.
Jalal ud-Dim Rumi, tradução de José Jorge de Carvalho.
Os pensamentos são como a chama
que de alto a baixo tudo consome.
Perde a razão,
endoidece de embriaguez e assombro,
e de cada broto nascerá a cana-de-açúcar.
A bravura é demência, tira-a da cabeça, renuncia!
Como o leão e os homens, renega as vãs esperanças.
Os pensamentos são armadilhas,
é proibido desperdiçá-los.
Para que tanto sacrifício por migalhas?
Se não te absténs desse alimento,
é inútil querer livrar-te de tais ardis.
Se a avidez reclama, sê surdo aos seus apelos.
Jalal ud-Dim Rumi, tradução de José Jorge de Carvalho.
3 de setembro de 2015
toda a gente sabe fazer tudo e toda a gente sabe o que toda a gente vai dizer e fazer a seguir. não é preciso ler até ao fim, já se percebeu a ideia. o contexto é uma condenação, tornámo-nos pragmáticos mesmo quando fodemos. não existe porém condição comparável àquela que nos outorga a arrogância que acalentamos. não conheço outro século com tantos Leonardo da Vinci por metro quadrado. hoje observei um homem sentado a um balcão que, depois de ter passado duas horas a fazer círculos num post-it, como algumas pessoas fazem quando estão ao telefone, se obscureceu com um olhar profundamente absorto, dirigido a pessoas que trabalhavam. vi nesse olhar a invídia de quem se acha inútil, e lamentei-o, não sem um laivo de sarcasmo, pois o que as pessoas estavam a fazer não era sequer útil. ora, eis que, nesse momento, uma rapariga lhe pergunta «tu desenhas?», como se tivesse encontrado um membro da mesma seita, ao que o nosso artista responde languidamente, dirigindo-se para a saída, e portanto voltando as costas à rapariga, com a cabeça levantada e os olhos apontados para o chão, «também...», com isso pretendendo mostrar que não só desenha, e de modo exímio como sabemos por sinal, mas também faz outras coisas.
há também esta regra de vida que parece ter-se tornado universal, de que devemos resistir, temos de ser resistentes, lutar, ser fortes. sucumbir, seja lá ao que for, é uma ideia tabu, a palavra desapareceu dos discursos tanto quanto o silêncio desapareceu dos lugares. não somos senão indivíduos, nada resta para além da ilusão de saber ou ser alguma coisa. destruí-vos uns aos outros como eu vos destruí, deveria ser o epítome do ocidente. sou fraca e não sei absolutamente nada, as minhas referências não chegam sequer para distinguir o cimo do baixo. chega a ser ridículo dizê-lo, são uma ou duas pessoas que me suportam tal como sou. e daí não sei mas também não interessa. sei que procuro manter encerrada em mim uma violência de que quase ninguém suspeita e que mais cedo ou mais tarde terá de estourar, na melhor das hipóteses porque me escolherei a mim, na pior das hipóteses porque terei esperado demais e a loucura terá começado a devorar-me. por enquanto, contudo, espero. já não procuro integrar-me, e acho engraçado como queria tanto fazer parte. creio que não fui feita para fazer parte de nada. odeio a humanidade. quando saio à rua vejo-me confrontada a animais selvagens, venenosos e prestes a atacar. hoje, por exemplo, um tipo mostrou-me, entre risos, uma fotografia onde uma criança minúscula estava deitada à beira-mar com a cara voltada sobre a areia e os braços voltados para dentro e um homem, creio que com um fato de bombeiro, se dirigia para ela. a criança tinha dado à costa morta, não teria mais de três, quatro anos. era um náufrago de uma qualquer vaga de pessoas que atravessavam um qualquer mar em direção à europa. nunca se saberá porque terá caído ao mar, nunca se saberá quem era. mantendo a fotografia diante dos meus olhos, este tipo diz-me, de modo incisivo, enquanto olha para mim, «migrantes». demorei algum tempo a perceber o que estava na imagem, suponho que o meu cérebro não estivesse disposto a acreditar no que via. de tal maneira brutais, as formas perceptíveis ostentavam unicamente a sua imprevisibilidade, sem sentido, sem comunicar nada, como quando vemos um homem cair e durante uns segundos não sabemos se havemos de rir ou não. mal percebi, contudo, vomitei sem qualquer controlo, como um bebé, sujando-me a mim própria. até aí, ele sorria, segurando no telemóvel.
há também esta regra de vida que parece ter-se tornado universal, de que devemos resistir, temos de ser resistentes, lutar, ser fortes. sucumbir, seja lá ao que for, é uma ideia tabu, a palavra desapareceu dos discursos tanto quanto o silêncio desapareceu dos lugares. não somos senão indivíduos, nada resta para além da ilusão de saber ou ser alguma coisa. destruí-vos uns aos outros como eu vos destruí, deveria ser o epítome do ocidente. sou fraca e não sei absolutamente nada, as minhas referências não chegam sequer para distinguir o cimo do baixo. chega a ser ridículo dizê-lo, são uma ou duas pessoas que me suportam tal como sou. e daí não sei mas também não interessa. sei que procuro manter encerrada em mim uma violência de que quase ninguém suspeita e que mais cedo ou mais tarde terá de estourar, na melhor das hipóteses porque me escolherei a mim, na pior das hipóteses porque terei esperado demais e a loucura terá começado a devorar-me. por enquanto, contudo, espero. já não procuro integrar-me, e acho engraçado como queria tanto fazer parte. creio que não fui feita para fazer parte de nada. odeio a humanidade. quando saio à rua vejo-me confrontada a animais selvagens, venenosos e prestes a atacar. hoje, por exemplo, um tipo mostrou-me, entre risos, uma fotografia onde uma criança minúscula estava deitada à beira-mar com a cara voltada sobre a areia e os braços voltados para dentro e um homem, creio que com um fato de bombeiro, se dirigia para ela. a criança tinha dado à costa morta, não teria mais de três, quatro anos. era um náufrago de uma qualquer vaga de pessoas que atravessavam um qualquer mar em direção à europa. nunca se saberá porque terá caído ao mar, nunca se saberá quem era. mantendo a fotografia diante dos meus olhos, este tipo diz-me, de modo incisivo, enquanto olha para mim, «migrantes». demorei algum tempo a perceber o que estava na imagem, suponho que o meu cérebro não estivesse disposto a acreditar no que via. de tal maneira brutais, as formas perceptíveis ostentavam unicamente a sua imprevisibilidade, sem sentido, sem comunicar nada, como quando vemos um homem cair e durante uns segundos não sabemos se havemos de rir ou não. mal percebi, contudo, vomitei sem qualquer controlo, como um bebé, sujando-me a mim própria. até aí, ele sorria, segurando no telemóvel.
31 de agosto de 2015
o sol acabava de desaparecer deixando no céu um azul assombroso, também ele prestes a ofuscar-se. prostrada sobre a terra, a rapariga pensava que desde pequena todos apontavam a sua inteligência e o seu bom coração. era portanto lógico que nada tivesse tido tanto sentido até aí como encontrar-se entre os animais, à superfície da terra. a pessoa justa despreza a insensatez da violência, envergonha-se da fortuna desonesta, é insensata e ingénua no seu profundo desprezo pela humanidade. é apenas uma imbecil, que não conhece nada. mas quando viu que, debaixo das amoreiras, também a terra a desprezava, levantou-se lentamente, sacudiu o vestido, e prosseguiu silenciosamente pela estrada, ao longo do canavial. nisso era experiente. gritos de alegria ecoavam atrás dos muros da cidade, uma grande fogueira ardia longínqua na planície. Z. encobriu o rosto, desencorajada. a fadiga privava-a de perigo e de remorsos.
21 de agosto de 2015
Eu sempre gostei de ir aos cemitérios, isto tinha eu da minha avó materna, que era uma apaixonada visitante de cemitérios e sobretudo de capelas mortuárias e câmaras-ardentes, e ainda quando eu era muito pequeno ela me levava muitas vezes aos cemitérios, para me mostrar os mortos, quaisquer que eles fossem, sem ter com eles nenhum parentesco, mas sempre mortos que estavam amortalhados nos cemitérios, ela sempre se sentira fascinada pelos mortos, pelos mortos colocados no caixão, e procurou sempre transmitir-me essa sua fascinação enquanto paixão, mas ela, ao levantar-me para eu ver os mortos no caixão, só o que conseguira fora sempre encher-me de medo, eu ainda hoje vejo muitas vezes como ela me levanta para eu ver os mortos no caixão e me segura assim todo o tempo que ela consegue aguentar, repetindo o seu estás a ver, estás a ver, estás a ver e assim me segurando até eu começar a chorar, depois punha-me no chão e ficava ela própria ainda bastante tempo a olhar o morto, até sairmos por fim da capela mortuária.
Thomas Bernhard, A Causa in Autobiografia.
Thomas Bernhard, A Causa in Autobiografia.
Subscrever:
Mensagens (Atom)