6 de setembro de 2015

Quando a minha cabeça caiu lentamente sobre a secretária eu já não fazia parte deste mundo. Foi numa tarde de calor em novembro de 2007. Neste dia, saí de casa seis minutos antes da hora habitual, seis minutos que trouxeram uma ligeira angústia aos gestos (calçar os sapatos, abrir a porta, fechar duas vezes à chave, descer as escadas, ver o correio, sair para a rua) até a distração me fazer esquecer que hoje tinha mais tempo. Cheguei dez minutos adiantado à porta do trabalho e quando dei os bons dias à rececionista pensei subitamente no riso contagiante da minha bisavó que, quando lhe diziam aos 80 anos que ainda era uma mulher bonita, respondia sempre que era por nunca ter achado que a beleza estava associada à juventude.
Estava calor dentro da minha sala como se fosse um dia de verão e eu tinha saudades do inverno. Antes novembro era especial. As castanhas, as nozes, os figos, os diospiros, as romãs, o primeiro vinho, as folhas amarelas no chão (quando andava no colégio fiz um herbário em ciências e aquilo entusiasmou-me muito, com uma capa de cartolina e umas folhas de papel vegetal a separá-las), o cheiro das lareiras vindo das chaminés, os primeiros casacos do ano, a chuva miudinha no rosto, os castanhos e os vermelhos-sangue, a luz coada, a música de Bach num fim de tarde cinzento suave, o nevoeiro que nos conforta, o fumo a sair do rio, o fumo a sair das bocas, os narizes um bocado ranhosos que ainda assim apetece beijar, as mãos com luvas de lã e um cachecol a acariciar o pescoço. Parece que neste dia estavam pessoas a banhos no Algarve. É como um tempo entre parêntesis no calendário, uma folga utópica, uma espécie de eflúvio. Este ano também estive no Algarve, mas em agosto, e quando lá estive fartou-se de chover. Fui para um sítio onde nunca tinha estado, através do meu colega Armando. Para uma casa ali entre o Vau e o Alvor. Gostei muito do Vau, dos fins de tarde no Vau. Dei longos passeios por entre as rochas, quase parecia o senhor Palomar nas suas deambulações. Quando se é habitualmente o último a sair da praia, o repouso e a serenidade acabam mesmo por ser um objetivo plenamente alcançado. A certa altura já se ganhou alguma familiaridade com as rochas, cujo silêncio é apenas interrompido pelas gaivotas ou pelos namorados que passam. Gosto da imobilidade das rochas tal como gosto da mudança nas pessoas. Ser rocha é ser igual a si, ser pessoa é ser diferente de si.
Eu lá nisto das viagens sou muito humilde. Não me puxa nada para ir para Londres ou para Nova Iorque apanhar flores e folhas de árvores. Por acaso ando há muito tempo com vontade de ir dar uma volta a Espanha. Mas só porque é perto. De resto, ir a algum sítio, só se tiver alguém conhecido para poder estar lá como residente e não como turista. Quando fui dois anos seguidos à Alemanha, do que eu mais gostava era de poder ir de manhã ao pão, à noite ir até aos bares de bairro e já cumprimentar os vizinhos. Isso sim é estar num país e não se limitar a ver as montras que os departamentos de turismo colocam para atrair as moscas que vêm de fora. O que é que eu vou fazer uma semana a Londres? Ver postais ilustrados?
Tinha as mãos entre folhas de papel azul e apeteceu-me tirar uma fotografia à sombra refletida na parede. Atravessando a janela atrás de mim, a luz cria com extraordinária definição os meus contornos na parede. É como uma sombra que se movesse no interior dos meus gestos.
Na fotografia não há antes e depois, porque na fotografia não há movimento. É como uma magia que suspende a realidade e dispensa as convenções formais da racionalidade. Gosto tanto das fotografias a preto e branco como das fotografias a cores, com muita luz, com muitas sombras e também das estragadas, com as quais desenvolvi a arte da paciência. É curioso. O rolo nunca se acaba.