3 de setembro de 2015

toda a gente sabe fazer tudo e toda a gente sabe o que toda a gente vai dizer e fazer a seguir. não é preciso ler até ao fim, já se percebeu a ideia. o contexto é uma condenação, tornámo-nos pragmáticos mesmo quando fodemos. não existe porém condição comparável àquela que nos outorga a arrogância que acalentamos. não conheço outro século com tantos Leonardo da Vinci por metro quadrado. hoje observei um homem sentado a um balcão que, depois de ter passado duas horas a fazer círculos num post-it, como algumas pessoas fazem quando estão ao telefone, se obscureceu com um olhar profundamente absorto, dirigido a pessoas que trabalhavam. vi nesse olhar a invídia de quem se acha inútil, e lamentei-o, não sem um laivo de sarcasmo, pois o que as pessoas estavam a fazer não era sequer útil. ora, eis que, nesse momento, uma rapariga lhe pergunta «tu desenhas?», como se tivesse encontrado um membro da mesma seita, ao que o nosso artista responde languidamente, dirigindo-se para a saída, e portanto voltando as costas à rapariga, com a cabeça levantada e os olhos apontados para o chão, «também...», com isso pretendendo mostrar que não só desenha, e de modo exímio como sabemos por sinal, mas também faz outras coisas.
há também esta regra de vida que parece ter-se tornado universal, de que devemos resistir, temos de ser resistentes, lutar, ser fortes. sucumbir, seja lá ao que for, é uma ideia tabu, a palavra desapareceu dos discursos tanto quanto o silêncio desapareceu dos lugares. não somos senão indivíduos, nada resta para além da ilusão de saber ou ser alguma coisa. destruí-vos uns aos outros como eu vos destruí, deveria ser o epítome do ocidente. sou fraca e não sei absolutamente nada, as minhas referências não chegam sequer para distinguir o cimo do baixo. chega a ser ridículo dizê-lo, são uma ou duas pessoas que me suportam tal como sou. e daí não sei mas também não interessa. sei que procuro manter encerrada em mim uma violência de que quase ninguém suspeita e que mais cedo ou mais tarde terá de estourar, na melhor das hipóteses porque me escolherei a mim, na pior das hipóteses porque terei esperado demais e a loucura terá começado a devorar-me. por enquanto, contudo, espero. já não procuro integrar-me, e acho engraçado como queria tanto fazer parte. creio que não fui feita para fazer parte de nada. odeio a humanidade. quando saio à rua vejo-me confrontada a animais selvagens, venenosos e prestes a atacar. hoje, por exemplo, um tipo mostrou-me, entre risos, uma fotografia onde uma criança minúscula estava deitada à beira-mar com a cara voltada sobre a areia e os braços voltados para dentro e um homem, creio que com um fato de bombeiro, se dirigia para ela. a criança tinha dado à costa morta, não teria mais de três, quatro anos. era um náufrago de uma qualquer vaga de pessoas que atravessavam um qualquer mar em direção à europa. nunca se saberá porque terá caído ao mar, nunca se saberá quem era. mantendo a fotografia diante dos meus olhos, este tipo diz-me, de modo incisivo, enquanto olha para mim, «migrantes». demorei algum tempo a perceber o que estava na imagem, suponho que o meu cérebro não estivesse disposto a acreditar no que via. de tal maneira brutais, as formas perceptíveis ostentavam unicamente a sua imprevisibilidade, sem sentido, sem comunicar nada, como quando vemos um homem cair e durante uns segundos não sabemos se havemos de rir ou não. mal percebi, contudo, vomitei sem qualquer controlo, como um bebé, sujando-me a mim própria. até aí, ele sorria, segurando no telemóvel.