26 de maio de 2023

“Oh overrunning river driven by the force of love. Flow to us flow to us!”

Forough Farrokhzad

22 de maio de 2023

O filme começa e penso:
 
quando morrer, vou ter tantas saudades de estar viva.

20 de maio de 2023

Ontem, numa festa, alguém falou de alguém e a seguir disse a palavra Kyiv. Os meus amigos eram músicos, uma delas contava a história de um músico com quem tocou recentemente na Alemanha que, de forma totalmente arbitrária e por uma questão de sorte, havia conseguido não ser deportado para a Ucrânia e tinha entrado no corredor dos pedidos de proteção nacional para residência e asilo. A sorte de ser um refugiado neste momento ao invés de integrar à força o exército ucraniano e a enorme estranheza de ouvir essa palavra hoje, fazendo eco de épocas terríveis que mantêm sobre nós a sinistra ameaça de voltarem a acontecer. «Mas é difícil», a minha amiga baixou a voz como se a angústia a asfixiasse. «Como é que voltas?» E, de maneira estranha, todos percebíamos como o regresso daquela pessoa ao seu país seria, senão impossível, sem dúvida complicado. Que sustentava a família inteira através da música a partir da Alemanha, continuou, mas que não podia vê-los. Que ele também percebia como alguém que está a ser atacado há tantos anos pode querer defender o seu país. Que os russos na Alemanha iam aos concertos dele e lhe declaravam a sua solidariedade. «Esses também vivem escondidos», repliquei, e a minha amiga corroborou vividamente a ideia sublinhando a sua existência. «Ele falou disso tudo», e o murmúrio da guerra na sua voz chegava aos meus ouvidos numa festa com música tecno em Lisboa onde as guerras que nos dividem são contra as hordas de turistas e a falta de habitação, onde, longe do terror da preservação da vida, assistimos ao naufrágio da cidade que todos procuram e a outros exílios. «Este sítio vai desaparecer», ouvi dizer várias vezes durante a noite a pessoas diferentes sobre o local onde nos encontrávamos, uma coletividade com um salão de festas, um palco, um bar, onde havíamos entrado atalhando caminho através de um restaurante de comida indiana com três funcionários, mas apenas uma mesa e música alta que, descubro também, está aberto há menos de um mês. No caminho até casa, pouco tempo depois, misturava-me com as filas de franceses que regressavam aos hotéis com os rostos acabados, com asiáticos da Índia com medo de olhar para mim e asiáticos da China indiferentes à minha passagem, grupos de nórdicos, ingleses e americanos bêbedos abraçados a gritar e a cantar, intermináveis filas de carros a apitar uns aos outros parados na Baixa e no Bairro Alto embora fosse pouco antes da uma da manhã, mulheres cuja puberdade me inquietou de salto alto e vestidos curtos brilhantes a saltar por cima dos buracos das obras, polícias a pares ou em batalhões. No elétrico mais luzes, mais turistas, turistas que tiram fotografias de dentro, turistas que tiram fotografias de fora. Ninguém a manifestar a sua solidariedade.

13 de maio de 2023

Só se consegue perceber como é que uma pessoa consegue passar uma vida num palco a cantar a mesma canção ao longo de 20, 30, 40 anos e ainda se divertir ou emocionar — ter tesão, como com acerto dizem os brasileiros —, quando nós próprios cantamos. Uma voz é uma relação com o infinito através do que em nós é transitório, um corpo, subitamente transformado num animal que seduz o cosmos.

7 de maio de 2023

“Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.”

Marguerite Yourcenar

4 de maio de 2023

Eu tenho 47 anos e nunca ganhei €1.000,00 nem nunca recebi um subsídio de férias inteiro, respondi. A audiência devolveu um silêncio pesado e embaraçado ao meu rosto impassível. Era a resposta à lamentação de um dos amigos com quem conversava sobre um aumento no salário de pouco mais de €230,00 nos últimos 5 anos. Mas tens casa própria, não é? e Mas tens uma casa tua, não é?, perguntaram ao mesmo tempo. A minha amiga, que acaba de comprar uma casa e se prepara para concluir um doutoramento, foi a primeira a arrancar com a frase de forma peremptória, atirando os ombros para trás e as mãos para os lados do corpo, como se estivesse a dizer também «Para tudo», embora, provavelmente sem que ela soubesse, o terror nos olhos se sobrepusesse ao leve sorriso que acompanhava o gesto engraçado. O meu rosto impassível voltou a responder e as cores abandonaram os deles. Felizmente as soluções começaram logo a aparecer. Mas tu podes fazer um doutoramento e ter uma bolsa. São quatro anos. Não queres?, era novamente a minha amiga a falar. Pois!, disse o meu amigo, que parecia achar a ideia inequivocamente adequada. Vocês trabalham 8 horas?, perguntei. 8 horas de trabalho, 8 horas de lazer e 8 horas de sono, essa grande conquista de 100 anos!, respondeu o meu amigo, que é evangelista do PCP. Sim, respondi. Mas vocês trabalham 8 horas? A minha amiga levantou o pé e pousou-o no banco ao nosso lado, apoiando os braços sobre a perna. Olhou para o lado, para fora da conversa, e respondeu que tinha estado a trabalhar no fim-de-semana. O meu amigo anuiu rapidamente que, de facto, trabalha muito mais do que 8 horas, muito, muito mais. Um pouco a medo, pois não saberia o que dizer se me respondessem que era a única pessoa no mundo nessa situação, prossegui: Eu sento-me à secretária às 9H00 e termino pelas 20H00 com uma pausa de 20 minutos para almoçar. A seguir vais estudar ou escrever? Os meus amigos olharam de soslaio um para o outro, discretamente para o chão, e decidiram atenuar o seu desalento. Então és pobre!, disse o meu amigo e, seguido pela minha amiga, abraçou-me com pancadinhas afáveis nas costas rindo alto e elogiando a minha gargalhada única e a beleza física que mantinha aos 47 anos. Como seria possível de outra maneira? Devolvi-lhes um sorriso nipónico e acompanhei-os ao mudarem de assunto. Ao voltar para casa, revia na minha memória esta conversa e estes gestos quando me lembrei de outra amiga que, um dia, encontrando-me a trabalhar atrás do balcão de uma loja após ter passado por um momento de exposição pública por ter estado, havia pouco tempo, ligada a um importante projeto artístico, me disse, igualmente estarrecida, ao transferir dinheiro da carteira dela para a minha mão para pagar o que lá tinha ido comprar, que depois de ter feito certos trabalhos, já não podia fazer trabalhos destes. Não percebi logo o que ela queria dizer, fiquei perplexa e senti-me ofendida, perguntei porquê. É desprestigiante, respondeu. A custo disfarcei uma gargalhada monumental no momento, mas não parei de pensar naquilo nos dias a seguir, creio que cheguei mesmo a escrever sobre isso na altura num caderno qualquer. O que é preciso para que alguém possa dizer-nos uma coisa destas, um sentimento de profunda amizade ou o opróbrio ignaro e pateta do privilégio? E porque me tinha sentido ofendida, com quê? Porque, perante o que confere prestígio, o esforço gigantesco que cada uma das coisas que faço exige é invisível e, por isso, insignificante. O insignificante e o essencial estavam ao contrário, como diz o poeta, o primeiro sempre a ameaçar o segundo. Construí por esses dias intermináveis e dilacerantes discursos sobre a vida das pessoas como eu, que tinham contas para pagar, famílias sem recursos, histórias de abuso e violência, doenças incapacitantes pelo meio e solidão, ao contrário da minha amiga ao lado de quem caminhava nas manifestações e que, aos 20 e poucos anos, vendia a primeira casa, oferecida pelos pais, para ir viajar. Enquanto esta história antiga se misturava com a conversa de hoje e com pensamentos sobre a relação entre o prazer e a partilha genuína de intimidade, lembrei-me do amigo que talvez me entendesse e da sua frase categórica cuja limpidez me aturdiu: Preferia não me comover comigo próprio. O que importa é depararmo-nos com a beleza e saber vê-la, não é?


 
Forough Farrokhzad, A Casa é Negra (1963).

2 de maio de 2023

“Nous vivons dans un monde plutôt désagréable, où non seulement les gens, mais les pouvoirs établis ont intérêt à nous communiquer des affects tristes. La tristesse, les affects tristes sont tous ceux qui diminuent notre puissance d’agir. Les pouvoirs établis ont besoin de nos tristesses pour faire de nous des esclaves. Le tyran, le prêtre, les preneurs d’âmes, ont besoin de nous persuader que la vie est dure et lourde. Les pouvoirs ont moins besoin de nous réprimer que de nous angoisser, ou, comme dit Virilio, d’administrer et d’organiser nos petites terreurs intimes. La longue plainte universelle qu’est la vie… On a beau dire « dansons », on est pas bien gai. On a beau dire « quel malheur la mort », il aurait fallu vivre pour avoir quelque chose à perdre. Les malades, de l’âme autant que du corps, ne nous lâcheront pas, vampires, tant qu’ils ne nous auront pas communiqué leur névrose et leur angoisse, leur castration bien-aimée, le ressentiment contre la vie, l’immonde contagion. Tout est affaire de sang. Ce n’est pas facile d’être un homme libre : fuir la peste, organiser les rencontres, augmenter la puissance d’agir, s’affecter de joie, multiplier les affects qui expriment un maximum d’affirmation. Faire du corps une puissance qui ne se réduit pas à l’organisme, faire de la pensée une puissance qui ne se réduit pas à la conscience.”

Gilles Deleuze, Dialogues, com Claire Parnet.

8 de abril de 2023

12 de março de 2023

O primeiro rosto, mostras ao mundo.
O segundo rosto, mostras aos amigos íntimos e à família.
O terceiro rosto, nunca mostras a ninguém.
 
Provérbio japonês
Em Fraggle Rock as pessoas que tinham um problema iam consultar um sábio monte de lixo. Para lá chegar, tinham de atravessar um assustador túnel escuro e ultrapassar um gigante mau. Depois o lixo levantava-se como uma montanha. Era aterrador e ao mesmo tempo extraordinário. O monte de lixo começava a mexer-se lentamente, primeiro como lava a borbulhar e finalmente erguia-se, imponente. Era tão insólito que eu não conseguia tirar os olhos do ecrã e estava sempre ansiosa para voltar a ver. “Outra vez!” O monte de lixo resolvia sempre os problemas e era muito sábio. "The trashy is all!", não sei como é que traduziam isto, mas era isso que eu percebia: tudo era lixo. O lixo era uma forma suprema de vida porque recebia toda a vida, era a vida a transformar-se, em decomposição, a devir. Já era adulta quando percebi que o monte de lixo era uma senhora, quando eu via o Fraggle Rock não era nem um senhor nem uma senhora, era lixo. Mas mal ouvia as perguntas das personagens porque tinha uma ânsia visceral de lhe fazer eu própria as minhas perguntas. Um comboio de perguntas a entrar uma após a outra na minha cabeça, mal uma se formulava, já outras duas estavam a meio de se definir. Entre elas, enquanto via o monte de lixo demonstrar a sua sapiência, interrogava-me se teria coragem de atravessar aquele túnel tão comprido e tão escuro. Interrogava-me se, uma vez lá, o monte de lixo a levantar-se, de que eu tinha muito medo, não seria intimidante ao ponto de me emudecer. Não conseguir perguntar nada. De que tinha eu medo se também tinha tanta vontade de falar com ele? Tinha medo de uma coisa que passa de invisível a visível diante dos meus olhos. Tinha medo de estar a olhar para uma coisa e não ver o que lá estava. Tinha medo de estar a olhar e não ver as coisas maravilhosas que estavam à frente do meu nariz.  


3 de março de 2023

todos sabem 
que o fogo
recebe tudo
e
não devolve nada

Inês Francisco Jacob, Sair de cena

22 de fevereiro de 2023

Uma mulher escreveu-me o seguinte depois de ler o texto Uma mão de homem:
 
"Eu tenho mãos de agricultora e já com artroses e, às vezes, quando estou nas caixas do supermercado, olho deliciada para as unhas das moças que atendem e imagino que, se o mundo acabar à unhaca, eu também aí vou estar, do lado dos perdedores."

21 de fevereiro de 2023

As pessoas aqui
já se tornaram 
nas pessoas
que fingem ser. 

Sam Shepard 

20 de fevereiro de 2023

Em A Trilogia de Copenhaga, o lixo percorre todas as fases da vida de Tove, todos os estados, todos os lugares. A casa onde Tove cresce fica perto dos caixotes do lixo. Os encontros para brincar com os primeiros amigos são junto aos caixotes do lixo. Os primeiros ensaios de liberdade, bem como o sentimento de uma liberdade inalcançável nos primeiros dias de trabalho, acontecem perto do lixo. O desejo, o sexo, a maternidade, a descoberta do corpo é feita no lixo. A perceção, com alívio, de que o destino dela não é o das amigas, mas a escrita, é feita perante o lixo. O lixo é uma pontuação que tanto permite entrever o seu universo como os lugares onde vive. O lixo é a sua gramática.

18 de fevereiro de 2023

A Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, exibiu hoje numa sessão quatro curtas metragens iranianas que eram, cada uma delas, uma obra-prima. Ressalva sobre isso feita para a última delas, no final deste pequeno texto. MOBAREZEH BA ATASH DAR AHVAZ [“Combate ao Incêndio em Ahvaz”], de Abolghasem Rezai (1958), YEK ATASH [“Um Fogo”], de Ebrahim Golestan (1961), COURTSHIP ["Segmento do Irão"], de Ebrahim Golestan com Forough Farrokhzad (1961) e KHANEH SIAH AST [“A Casa é Negra”], de Forough Farrokhzad (1962).
Dois filmes sobre um combate a um incêndio que ardeu ao longo de 70 dias num furo de petróleo em 1958, transformam-se numa alegoria sobre a relação do homem com a terra e com os seus elementos, sobre a nossa burlesca, absurda e insensata espoliação do que está acima, e mais acima, e do que está abaixo, do que está mais abaixo ainda e mais longe e mais abaixo ainda, e, ao mesmo tempo, sobre a nossa adaptabilidade, a nossa capacidade de superação, a firmeza, e certamente também a loucura, em enfrentar as catástrofes. No primeiro filme a preto e branco, uma descrição do acontecimento, rapidamente se percebe (logo nas primeiras imagens, na verdade) que o que estamos a ver excede a mera enumeração. No segundo filme, a cores, que tem a colaboração de Forough Farrokhzad, e a que chamaram simplesmente YEK ATASH, Um fogo, a matéria que vemos troca de lugar com o corpo que vê. Para além da cor, uma cor que ela própria ferve, é um filme com mais silêncios do que o primeiro. São silêncios com a sua própria monstruosidade, que lançam as chamas e o seu odor sobre a plateia e enchem pesadamente a sala, mas que também têm qualquer coisa de abrupto e desajeitado, como uma fala que guardámos demasiado tempo e que finalmente explode quando menos nos preparávamos para a pronunciar.
“Haverá sempre muitos silêncios”, diz-se em COURTSHIP. Neste filme, vejo a Forough pela primeira vez no écrã. É um filme de uma asfixia irracional. Uma encenação dos procedimentos de corte daquela época que começa — é sempre tudo muito curioso na verdade quando ela deflagra diante dos nossos olhos — com algo que não tem nada a ver com um casamento ou um namoro: a descrição da cidade de Teerão, nos planos dos grandes edifícios filmados a partir da rua, por um lado, e na voz off do casal que a descreve como uma cidade «moderna», «europeia», «cosmopolita», por outro, para logo a voz do homem proclamar “Já não deve haver haréns, pelo menos na cidade, mas o lugar da mulher é em casa!”. 
Por fim, vimos A CASA É NEGRA. Vi este filme hoje pela primeira vez no cinema numa cópia maravilhosa e estou infinitamente agradecida à Cinemateca e ao amigo que há umas semanas me avisou que o filme passava hoje. No caminho para casa, mergulhada numa espécie de nirvana negro e luminoso ao mesmo tempo, escrevo-lhe esta mensagem: "Por muitas vezes que veja este filme, sinto sempre que é a primeira vez. Hoje talvez especialmente. Acho que este filme diz tudo o que penso sobre a vida." Por este motivo, não consigo enquadrar este filme em nada. Nem mesmo na definição «uma obra-prima». Uma frase brilhou particularmente hoje, não sei se já tinha reparado nela antes. 
 
 





 
Forough Farrokhzad, The House is Black (1962).