6 de novembro de 2023

Oh não, as palavras de tristeza não matam
ninguém,
é a falta de palavras que mata.
Falando nós vivemos,
mudos morremos.

Olof Lagercrantz

29 de outubro de 2023

Na altura em que as meninas começam a perceber que não há príncipes encantados, uma amiga havia iniciado um namoro que parecia ter estagnado no arranque. A minha amiga sonhava com juntar as escovas de dentes. Já ele não se percebia muito bem. Portanto, afinal não era simples. As conversas sucediam-se há meses. Não eram exatamente discussões, ou eram, mas eram discussões filosóficas. Sobre a relação, sobre o amor, sobre sexo, sobre vontades, sobre o presente e sobre o futuro, e por aí vai. Todos os dias a minha amiga me contava sobre a última conversa. Apesar de por vezes haver uma lágrima ou outra, eu achava que havia qualquer coisa de competitivo entre eles que os fazia preferir a argumentação à resolução. E perguntava-me, se tudo era um problema, o que havia de bom para levar para uma casa? Mas a minha amiga dizia-me que gostava dele, e eu queria ajudá-la a encontrar alívio para o desespero. Um dia, tinha ido dormir a casa dela, estávamos a fazer um balanço das últimas conversas. Quando digo «estávamos» refiro-me a estar a ouvir a minha amiga pensar. Jantámos, fumámos, fumámos outra vez, e mais tarde, quando fomos para a cama, ela chegava mais uma vez às conclusões de sempre, que eram uma espécie de beco sem saída. Nesse dia, quando puxámos as mantas, disse-lhe uma coisa. Disse-lhe que no próximo encontro ela esperasse pela conversa, que era sempre ele que puxava. Disse-lhe que o deixasse falar o tempo que ele quisesse sem nunca o interromper, por muito que isso lhe custasse. Disse-lhe que se mantivesse serena, sem qualquer expressão de rosto que ele pudesse considerar provocação e, sobretudo, sem reagir ao que ele tivesse para dizer. Disse-lhe que quando ele acabasse de falar lhe dissesse esta frase, voltasse as costas e viesse embora.
 
— O Dumbo voa com as orelhas.

24 de outubro de 2023

"On dirait d'abord : être comme tout le monde. C'est ce que raconte Kierkegaard dans son histoire de « chevalier de la foi », l'homme du devenir : on a beau l'observer, on ne remarque rien, un bourgeois, rien qu'un bourgeois. C'est ce que vivait Fitzgerald : à l'issue d'une vraie rupture, on arrive... vraiment à être comme tout le monde. Et ce n'est pas facile du tout, ne pas se faire remarquer. Etre inconnu, même de sa concierge et de ses voisins. Si c'est tellement difficile, « être » comme tout le monde, c'est qu'il y a une affaire de devenir. Ce n'est pas tout le monde qui devient comme tout le monde, qui fait de tout le monde un devenir. Il y faut beaucoup d'ascèse, de sobriété, d'involution créatrice : une élégance anglaise, un tissu anglais, se confondre avec les murs, éliminer le trop-perçu, le trop-à-percevoir. « Eliminer tout ce qui est déchet, mort et superfluité », plainte et grief, désir non satisfait, défense ou plaidoyer, tout ce qui enracine chacun (tout le monde) en lui-même, dans sa molarité. Car tout le monde est l'ensemble molaire, mais devenir tout le monde est une autre affaire, qui met en jeu le cosmos avec ses composantes moléculaires. Devenir tout le monde, c'est faire monde, faire un monde. A force d'éliminer, on n'est plus qu'une ligne abstraite, ou bien une pièce de puzzle en elle-même abstraite. Et c'est en conjugant, en continuant avec d'autres lignes, d'autres pièces qu'on fait un monde, qui pourrait recouvrir le premier, comme en transparence. L'élégance animale, le poisson-camoufleur, le clandestin : il est parcouru de lignes abstraites qui ne ressemblent à rien, et qui ne suivent même pas ses divisions organiques ; mais ainsi désorganisé, désarticulé, il fait monde avec les lignes d'un rocher, du sable, et des plantes, pour devenir imperceptible."

Deleuze e Guattari, Mille Plateaux.
A recusa de não poder recusar 


Rosamunda: A minha voz. A minha voz. A minha voz. A minha voz. Não diz nada. 

Elfriede Jelinek, A Morte e a Donzela III, Rosamunda.


Com o ainda magro espaço que a pulso têm vindo a conquistar, as mulheres estão a forçar a reavaliação e a expansão dos cânones literários através da legitimação de géneros antes considerados «não-literários», de que a literatura infantil, diários, cartas, a auto-ficção, entre outros, são exemplos. A consciência inegável de que a literatura se mostra, se faz nestes textos, é ao mesmo tempo um indício sobre a literatura ela própria: a sua incompletude imanente reclama-se de uma liberdade total e implica a alienação de todos os poderes opressores. A criação é anarquista. Violenta, apocalíptica e amoral, a escrita das mulheres parece tender para um entendimento — ou uma busca — da suspensão do juízo moral. Não obstante a exposição de aspetos próprios da realidade feminina ser reiteradamente considerada de mau gosto, a legitimidade da sua arte assenta naquilo que é autêntico no seu mundo e não naquilo que é convencional, lógico ou sequer lícito, bem como na indelével força de algo que está na raiz do seu trabalho: o reconhecimento da excecionalidade de ter uma voz. Aquilo que exemplos como Rachel Cusk, Elena Ferrante e Annie Ernaux, mas também Forough Farrokhzad ou Tove Ditlevsen parecem demonstrar é que em relação ou não, pobres ou ricas, instruídas ou ignorantes, com ou sem filhos, rebeldes ou submissas, vivemos todas num mundo marcado pela dominação masculina e enfrentamos quotidianamente a necessidade de reclamar o nosso lugar. A escrita é a nossa recusa de não poder recusar. 

Sexta-feira, 27 de outubro, Universidade do Porto.

22 de outubro de 2023

10 giugno

Io sono una forza del Passato.
Solo nella tradizione è il mio amore.
Vengo dai ruderi, dalle chiese,
dalle pale d’altare, dai borghi
abbandonati sugli Appennini o le Prealpi,
dove sono vissuti i fratelli.

Giro per la Tuscolana come un pazzo,
per l’Appia come un cane senza padrone.
O guardo i crepuscoli, le mattine
su Roma, sulla Ciociaria, sul mondo,
come i primi atti della Dopostoria,
cui io assisto, per privilegio d’anagrafe,
dall’orlo estremo di qualche età
sepolta. Mostruoso è chi è nato
dalle viscere di una donna morta.

E io, feto adulto, mi aggiro
più moderno di ogni moderno
a cercare fratelli che non sono più.


Eu sou uma força do Passado.
Só na tradição reside o meu amor.
Venho das ruínas, das igrejas,
dos retábulos, das aldeias
abandonadas dos Apeninos ou dos Pré-Alpes,
onde viviam os irmãos.

Deambulo pela Tusculana como um louco,
pela Ápia como um cão vadio.
Ou contemplo os crepúsculos, as manhãs a crescer
sobre Roma, sobre a Ciociaria, sobre o mundo,
como os primeiros actos da Pós-História,
que, por privilégio de biografia, observo
a partir dos confins de uma qualquer época
sepulta. Monstruoso é quem nasce
das entranhas de uma mulher morta.

E eu, feto adulto, vagueio
mais moderno do que qualquer moderno,
em busca de irmãos que já não existem.

Pier Paolo Pasolini (1962).

21 de outubro de 2023

Ficou frio de repente. Esta manhã abri a janela e o frio enrolou-se nos pés e subiu pelo corpo, como granizo nos ramos de uma árvore desprevenida. Apetecia-me deixar a janela aberta e fugi da sala para o frio entrar à vontade. Do outro lado da casa ainda é verão. O azul passa ao longe e as gaivotas procuram peixe. Enfim, às vezes acho que do outro lado da casa ainda é a Nazaré e as gaivotas se juntaram porque os barcos acabam de ser puxados e estão a trazer as redes carregadas para a areia. Enfim é uma palavra tua que adoro dizer. Sempre que digo enfim estou perto de ti. Enfim, chegou o frio, enfim, é assim, enfim, há coisas que não se podem juntar e há coisas que não se podem separar. O frio que entre, vem aí o inverno e não tarda não temos lembrança de como era abrir as janelas.

18 de outubro de 2023

A derrota sucessiva de todos os meus espantos.

Uma Espectografia publicada em GHOST: montagens, peças visuais, pequenos ensaios ou exercícios de escrita sobre fantasmas, fantasmagorias, sombras, espectros…


17 de outubro de 2023

No início do verão, no jardim da Estrela, esvaziaram os lagos, suponho que para limpar as esculturas grafitadas com palavras em cores fluorescentes. As esculturas voltaram a ser brancas, os lagos encheram, o fundo voltou a ficar escuro, acumulando restos de rações, fezes, urina, folhas, galhos, raízes e algas que maldigo há anos. Neste dia, porém, depois de um verão inteiro a desejar mergulhar neles os pés, como fazemos nos lagos cristalinos e apetecíveis do Campo Mártires da Pátria, esse fundo imundo e esses sedimentos hediondos parecem-me indescritivelmente belos. Dificilmente o teria confessado se não tivesse a avassaladora vontade de o registar, de tal forma confrangida por sempre me ter repugnado olhar para os depósitos no fundo do lago. Enquanto saio lentamente do sítio onde passei a tarde, opostos ao que tenho a convicção de conhecer da minha identidade — que estimo em mim aquilo que outros considerariam repugnante, mas também que conservo uma pureza impenetrável numa vida que é implacavelmente sórdida —, estes sedimentos castanhos associam-se num inesperado golpe surdo ao amontoado de frases estagnadas que há anos acalento e às quais vou acrescentando um sinal, uma palavra, uma sensibilidade, procurando, temendo, enfim, desesperando, que a algazarra se desfaça, desapareça e me abandone. Saí de lá de noite esta semana e desde o final da tarde umas colunas gigantes à entrada do jardim do lado da Basílica expeliam a preparação sonora para uma festa à qual, pouco a pouco, chegavam adolescentes magros vestidos e pintados de negro. Num jardim tão pequeno, onde sequer é possível deixar de ouvir o rumor do trânsito, agora também vai sendo impossível ouvir as folhas, os pássaros, o som dos nossos próprios passos. Duas raparigas acabam de entrar, caminham à minha frente em direção à festa. Têm o cabelo platinado e o espaço em torno dos olhos negro. Não sei se são estrangeiras ou portuguesas, turistas ou residentes, não sei que idade têm. Uma delas olha para mim, mas não leio nada no olhar dela. No recinto do café, os dj's esticam os pescoços para olhar para a entrada, apavorados por estar tão pouca gente, e também passam os olhos pelos meus olhos, mas não leem nada. Sou tentada a parar à frente da festa, entrar por ali dentro a tirar fotografias às colunas — proibidas — e ir a correr para casa fazer uma denúncia. Mas não faço nada disso. Continuo a caminhar lentamente em direção à saída. Ainda não chove, não está nevoeiro, também não está frio, sinto falta de castanhas a assar.  

14 de outubro de 2023

“Nós olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória.”

Louise Glück

2 de outubro de 2023

"Ninguém deve ceder à opinião de que somos todos únicos. Todos somos como os demais; pelo menos, é nisso que acredito piamente, e acredito também que tudo já aconteceu uma vez e existiu no passado, pelo que todo o orgulho parece ser algo extremamente supérfluo e desadequado."

Robert Walser, Chuva.
"A verdade tem a estrutura de uma ficção em que outro fala."

Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio.

24 de setembro de 2023

"Ozu lui-même n'est pas le gardien des valeurs traditionnelles ou réactionnaires, il est le plus grand critique de la vie quotidienne. De l'insignifiant même il dégage l'intolérable, à condition d'étendre sur la vie quotidienne la force d'une contemplation pleine de sympathie ou de pitié."

Gilles Deleuze, L'image-temps.


Diz o A., a respeito de outro insignificante (sublinhado meu).

23 de setembro de 2023

"O essencial está sempre a ser ameaçado pelo insignificante."

René Char


É tudo.

21 de setembro de 2023

 

12 de setembro de 2023

Falam-me na língua deles e lembro-me do meu aspeto. Sou uma espia. Onde muitos são proscritos, o meu corpo passa, entra, atravessa, transpõe, percorre, fica, abandona. O meu aspeto é um disfarce útil, permite-me observar as alterações de rosto quando, a pouco e pouco, me revelo nos detalhes. Estou pela primeira vez rodeada de uma língua em tudo estranha, mas, ao contrário do que esperei, não me sinto agredida, envolve-me. Tem uma toada doce, familiar, como a voz em surdina que a criança adormecida escuta ao longe, constante. Falam-me amavelmente na língua deles e respondo em inglês. Um após outro, observo como os seus rostos passam da gentileza à aspereza, da curiosidade à repulsa, como o tronco, barreira maciça, se ergue, o olhar se dirige para baixo, para a terra, para o chão. Aqui está o que vi. 

Um rapaz a quem peço direções na estação de comboios oferece-se para me mostrar pessoalmente o caminho. O seu olhar vago em resposta à minha pergunta, dirigido ao horizonte e não a mim, como o de um predador que procura reconhecer o terreno antes de atacar, dá-me vontade de o repelir imediatamente, mas não vou a tempo, ele toca-me no braço e empurra-me levemente na direção que quer tomar. Caminhamos lado a lado, pergunto-me se na direção certa, e procuro na sabedoria que me trouxe a idade a forma de me libertar da maneira eficaz e com segurança. Estou longe de casa, não quero ter problemas. Vendo a mala na minha mão, pergunta-me pela razão da minha viagem. Digo a verdade sem entrar em pormenores: vou visitar um museu. Quando finalmente saímos da estação ele continua a caminhar sem dizer nada e, uns passos mais à frente, paro e olho para ele. Ele aponta-me o caminho e, impositivo, oferece-se para me acompanhar. Subitamente, ato contínuo, em cima do vazio, antes sequer de esperar pela minha resposta, oferece-se para me acompanhar pelo fim-de-semana fora, na visita ao museu, mas também para me mostrar a cidade. Tem um ar alienado, há no olhar dele uma euforia voraz. Recuso secamente. Deixo-o e, através das paredes de vidro da estação de comboios, vejo-o afastar-se, o olhar no horizonte e as mãos nos bolsos, uma mochila grande. Caminha lentamente. É sempre bizarro ver alguém caminhar lentamente uma estação de comboios, com tempo para acompanhar turistas, para conversar, disponível para mudar tudo, alterar a rota e não apanhar o comboio. Há nele uma aura de tristeza vaga, uma melancolia. Fico com pena de não poder evitar o dano que vai trazer à vida de alguém. 

Quando chego ao centro da cidade filmo as ruas. Filmo rua após rua enquanto olho para um mapa no telefone para me certificar que estou onde penso estar. O silêncio é inacreditável, se não filmar vão achar que caí no delírio. A verdade, todavia, é que realmente sinto que estou a alucinar. Dou voltas e voltas pelas ruas, imersa num misto de espanto, confusão e choque. Ao que percebo, os carros e autocarros circulam à volta das ilhas e não atravessam a cidade. As pessoas deslocam-se de bicicleta, de trotineta e a pé, fazem do asfalto passeio. É tudo muito diferente, mas em apenas duas horas começo a orientar-me. A Europa está toda aqui. Sinto-me a pisar ossos.

No hotel escolho uma mesa a partilhar com um casal de idosos. Escolher a proximidade dos idosos é uma regra importante que estabeleci mal comecei a viajar, não por qualquer espécie de benevolência ou cuidado, mas porque têm mais histórias, porque as suas histórias me permitem observar a História através de quem a viveu, e porque estão normalmente mais dispostos a contá-las. Gosto sobretudo daqueles que perderam ilusões importantes e, com elas, os filtros. Carregam uma certa amargura, uma indiferença, e desatam a língua, como se costuma dizer, para falar livremente com estranhos sobre o mundo e mesmo sobre os seus familiares próximos, como os filhos. O homem que está sentado à mesa vive na Lapónia numa cidade impronunciável, a mulher na Áustria, em Viena. Ela é tímida, parece falsamente gentil e diz que fala mal inglês apesar de ter uma pronúncia irrepreensível. Ele tem ar de miúdo, em minutos, desemperra a língua e começa a falar pelos cotovelos, ajudando-a a traduzir as frases que ela termina em alemão. Com duas ou três perguntas consigo descobrir a história por detrás da viagem: vieram para um encontro de família, um grande encontro de uma grande família espalhada pela Europa que começou a realizar-se há apenas um ano, por insistência de alguns familiares que vivem no Mediterrâneo. "Mas eles não têm nada a ver connosco. É um modo de vida muito diferente. Não nos compreendem." Diz-me isto e sorri na minha direção, como se se tratasse de uma evidência, mas também para me transmitir que a distinção entre eles e os outros é óbvia e é de grau. "Este encontro é uma péssima ideia, para quê? Nós não os conhecemos, o que é que vamos lá fazer?" Vão lá ficar a conhecê-los, pensei. E viver. Mas não disse. Pareceu-me uma sorte que dois irmãos com a idade deles mantivessem uma proximidade que lhes permite fazer uma viagem juntos e partilhar o mesmo entendimento sobre o resto da família. Conto um pouco das razões que me trazem ali, respondo a algumas perguntas. Eu sei que sou maluca, mas vim só para ver uma exposição. Venho de Lisboa. Depois da perplexidade inicial, riem-se comigo. Ele pergunta-me se sou uma stalker da artista que venho ver e naquele instante fico na dúvida. Rimos mais.

O segundo homem a quem pergunto direções não me responde. Com um gesto lascivo, diz que sou sexy e acrescenta qualquer coisa que não consigo ouvir porque lhe volto costas. Os idiotas estão lá sempre. Mal o penso, um pressentimento repulsivo põe-me em alerta: de que é isto sinal? 

No dia seguinte, encontro o casal de irmãos à mesma hora e volto a juntar-me a eles. Sou acolhida com entusiasmo e sorrisos rasgados, querem saber como foi a exposição e despedir-se. Despacho rapidamente o relato das minhas novidades e pergunto pelo encontro de família, mas, em vez da animosa descrição de um almoço insuportável, sou confrontada com uma calma espantosa, semblantes cheios de ternura dizem-me que foi bom, que correu muito bem, olham um para o outro e depois para o prato, contemplativos. Não acrescentam mais nada. Qualquer coisa parece ter-se apaziguado e pergunto-me o que terá sido decisivo. Seria possível que esses exóticos do Mediterrâneo, esses alienígenas do Sul, fossem divertidos e amáveis? 

Em três dias vejo apenas duas pessoas negras, dois homens. Um deles estava a fazer uma corrida e o outro estava a estacionar uma bicicleta à frente da estação de comboios e a falar ao mesmo tempo ao telefone. Ambos tinham tranças compridas e roupas caras. Passei também por uma família de árabes e entrei num supermercado que pertencia a árabes. Como é possível? A Suécia teve colónias na América do Norte, América Central, África e Ásia quase até 1900. Traficou escravos, inclusive em Angola, teve comércio com a Índia e com a China. A riqueza das ruas — patente sobretudo na arquitetura sumptuosa e no urbanismo imaculado, mas também no próprio silêncio e na infame ausência de turistas — é obscena, a cada vez que enterrava o pé no asfalto tinha a certeza que essa riqueza provinha da utilização de outros e não apenas do trabalho dos próprios. Como é possível haver tão pouco espaço para a emigração, tão pouca miscigenação também? 

A Suécia foi o primeiro país do mundo com um centro de pesquisa de biologia racial, em Upsalla. Foi aqui que a ideia de esterilização forçada encontrou a sua primeira fonte de credibilidade científica, foi aprovada pelo Governo e continuou legal até meados dos anos 70, isto é, ontem. Mas há 20% de emigração na Suécia. Onde estão estes emigrantes? Escondidos. Nas cozinhas, nos hotéis, em qualquer lugar onde não seja exigida formação especializada e sirva para os afastar dos olhares, da rua, do convívio. Parece que nas empresas suecas se tornaram peritos em filtrar CV's de pessoas que não sejam suecas. Os negros, ciganos, árabes e outras etnias, são barrados no acesso ao emprego e também, nunca esquecer, aos serviços. As minhas conversas incluíram todas, sem nenhuma exceção, o condescendente paternalismo de uma pretensão de superioridade intelectual e económica perante os «povos do Sul» que são «demasiado diferentes». E mesmo a glorificação dos prazeres simples, algo que os enche de orgulho nacionalista, como o obrigatório fika, leva-os à autocomplacência, ao comodismo pequeno-burguês, e age como uma mordaça social. Recolhimento em comunidade, sim, mas só se forem todos brancos, de olhos azuis e, de preferência, suecos. 

Por diversos motivos, fico sempre nervosa no dia em que tenho de viajar, razão pela qual me custa viajar, me custa estar deslocada, e não retiro daí o prazer que a vasta maioria dos meus contemporâneos parece retirar. Neste dia, vou com horas de antecedência para o aeroporto. Quero ir a pé, quero tomar o pequeno-almoço na rua, quero ir lentamente e quero ver se não perco o avião, como já aconteceu. Não tiro fotografias. Fico muito tempo a ver mulheres fazer pão através da montra de uma padaria à beira-rio e encosto-me à barreira de umas obras, perto de um cruzamento movimentado a seguir a uma ponte, a ver quem passa. Acho que viajo para poder ver quem passa. Longe de casa, entre desconhecidos, quase sem amarras, os modos, os gestos, os semblantes, os olhares, a roupa, os objetos que transportam, a forma como se movimentam e a forma como param para conversar com alguém, destacam-se com uma tonalidade tão intensa que quase se transforma em música. Em literatura. Sei que não vou poder manter muito mais tempo esta liberdade, que daqui a nada perderei a habilidade de me distrair de mim própria e de me relacionar com o mundo desta maneira desinteressada, silenciosa. Sei que os outros vão deixar de me atravessar como acontece agora, neste cruzamento. Casais com carrinhos de bebé, casais de cabelos brancos de mão dada, adolescentes góticos, trabalhadores cansados, mulheres sozinhas, pessoas que correm com cães. No cais, vários cartazes anunciam festas com DJ's, concertos, peças de teatro, e chama-me a atenção o Lazarus, um musical do David Bowie. Caminhei horas, atravessei a cidade de ponta a ponta. Não vi uma única pessoa a dormir na rua. 

Acabo por chegar ao aeroporto em cima da hora da partida. Desorientada pelo nervosismo, dirijo-me às pessoas que aí trabalham para perguntar por direções. A última dessas pessoas é um homem com idade avançada, encurvado, muito magro, manchas na cara, que traz um cartão pendurado ao peito. Mal lhe faço a pergunta que preciso de fazer, ele ri-se e diz-me "Não se preocupe, venha comigo." Pronto, estou safa, vai levar-me ao avião. Quando chegamos ao final do corredor, hesita e volta para trás sem dizer nada. Continuo a segui-lo, certamente foi ali confirmar qualquer coisa para não se enganar e poder ajudar-me. Enquanto caminhamos, percebo que balbucia qualquer coisa entre dentes e subitamente, eis que nos encontramos diante do painel dos voos, para onde ele olha com um olhar vago. Começo a achar que quem está desorientado é ele e volto a explicar que não tenho dúvidas sobre o meu voo, mas sim sobre a direção a tomar para o terminal onde está o meu voo. "Ah, sim, claro. Mas olhe, tem muito tempo. Não quer vir comigo? Podemos ir até ao meu gabinete tomar um café." 

Fui até lá com a ideia de que, pelos seus valores progressistas, Estocolmo era um paraíso da igualdade. Encontrei uma assustadora preponderância de violência machista. O significado primordial que ali atribuem à minha existência baseia-se na utilidade que posso ou não ter para um homem. Não é que para eles eu nem sequer seja um ser humano, uma mulher. Sou vista como ser humano e sou vista como mulher. Mas o ser humano que eu sou é uma mulher e uma mulher é uma coisa, como os escravos foram uma coisa, como uma mesa é uma coisa. Vai-se a ver e, apesar das medidas corretivas que todos os anos são introduzidas pelo Estado, a Suécia tem uma das maiores taxas de violência contra as mulheres da União Europeia. Os assassínios ocorrem frequentemente à luz do dia. 

De regresso a Lisboa, senta-se ao meu lado no avião uma senhora vestida de branco com o pulso partido. Veste calças, tem o cabelo grosseiramente apanhado, um saco de uma marca moderna e cara de onde tira e volta a arrumar várias vezes o iPhone. Procuro tranquilizá-la quando, depois de entregar duas fotocópias de um raio-x ao hospedeiro de bordo e responder a várias perguntas sobre o tipo de material que tem no pulso, me diz que está com medo de a impedirem de viajar. "A mim e ao cão", acrescenta, "É uma surpresa para o meu marido". Pergunta-me se estou a regressar a casa e procuro conter a minha felicidade ao ouvir aquela palavra, casa, sobre Lisboa. Devolvo-lhe o interesse e ela conta-me que viveu toda a vida num barco entre o Mediterrâneo e o Sul de França. Que agora, com os filhos criados, todos já nos trinta, vive em Odemira com o marido, onde se sentem bem por ser pequeno e pela proximidade do mar. Partiu o pulso numa caminhada nas montanhas algures na Áustria, onde tinha ido visitar a filha. Depois de ver as ruas de Estocolmo escandalosamente vazias, convenço-me em definitivo que somos os eleitos do ócio e lazer, um país destinado à recreação e repouso dos povos do Norte. A vida de Lisboa tal como a conheci, e a razão pela qual me mudei para cá há trinta anos, desapareceu irrecuperavelmente para dar lugar ao tráfico humano nos indianos, ao comércio do turismo que vende como típicos produtos que nunca consumimos, e à cidade-festival, a cidade da festa total, das despedidas de solteiro, das viagens de finalistas e dos arraiais 12 meses por ano. Que casa?