24 de outubro de 2023

A recusa de não poder recusar 


Rosamunda: A minha voz. A minha voz. A minha voz. A minha voz. Não diz nada. 

Elfriede Jelinek, A Morte e a Donzela III, Rosamunda.


Com o ainda magro espaço que a pulso têm vindo a conquistar, as mulheres estão a forçar a reavaliação e a expansão dos cânones literários através da legitimação de géneros antes considerados «não-literários», de que a literatura infantil, diários, cartas, a auto-ficção, entre outros, são exemplos. A consciência inegável de que a literatura se mostra, se faz nestes textos, é ao mesmo tempo um indício sobre a literatura ela própria: a sua incompletude imanente reclama-se de uma liberdade total e implica a alienação de todos os poderes opressores. A criação é anarquista. Violenta, apocalíptica e amoral, a escrita das mulheres parece tender para um entendimento — ou uma busca — da suspensão do juízo moral. Não obstante a exposição de aspetos próprios da realidade feminina ser reiteradamente considerada de mau gosto, a legitimidade da sua arte assenta naquilo que é autêntico no seu mundo e não naquilo que é convencional, lógico ou sequer lícito, bem como na indelével força de algo que está na raiz do seu trabalho: o reconhecimento da excecionalidade de ter uma voz. Aquilo que exemplos como Rachel Cusk, Elena Ferrante e Annie Ernaux, mas também Forough Farrokhzad ou Tove Ditlevsen parecem demonstrar é que em relação ou não, pobres ou ricas, instruídas ou ignorantes, com ou sem filhos, rebeldes ou submissas, vivemos todas num mundo marcado pela dominação masculina e enfrentamos quotidianamente a necessidade de reclamar o nosso lugar. A escrita é a nossa recusa de não poder recusar. 

Sexta-feira, 27 de outubro, Universidade do Porto.