Falam-me na língua deles e lembro-me do meu aspeto. Sou uma espia. Onde muitos são proscritos, o meu corpo passa, entra, atravessa, transpõe, percorre, fica, abandona. O meu aspeto é um disfarce útil, permite-me observar as alterações de rosto quando, a pouco e pouco, me revelo nos detalhes. Estou pela primeira vez rodeada de uma língua em tudo estranha, mas, ao contrário do que esperei, não me sinto agredida, envolve-me. Tem uma toada doce, familiar, como a voz em surdina que a criança adormecida escuta ao longe, constante. Falam-me amavelmente na língua deles e respondo em inglês. Um após outro, observo como os seus rostos passam da gentileza à aspereza, da curiosidade à repulsa, como o tronco, barreira maciça, se ergue, o olhar se dirige para baixo, para a terra, para o chão. Aqui está o que vi.
Um rapaz a quem peço direções na estação de comboios oferece-se para me mostrar pessoalmente o caminho. O seu olhar vago em resposta à minha pergunta, dirigido ao horizonte e não a mim, como o de um predador que procura reconhecer o terreno antes de atacar, dá-me vontade de o repelir imediatamente, mas não vou a tempo, ele toca-me no braço e empurra-me levemente na direção que quer tomar. Caminhamos lado a lado, pergunto-me se na direção certa, e procuro na sabedoria que me trouxe a idade a forma de me libertar da maneira eficaz e com segurança. Estou longe de casa, não quero ter problemas. Vendo a mala na minha mão, pergunta-me pela razão da minha viagem. Digo a verdade sem entrar em pormenores: vou visitar um museu. Quando finalmente saímos da estação ele continua a caminhar sem dizer nada e, uns passos mais à frente, paro e olho para ele. Ele aponta-me o caminho e, impositivo, oferece-se para me acompanhar. Subitamente, ato contínuo, em cima do vazio, antes sequer de esperar pela minha resposta, oferece-se para me acompanhar pelo fim-de-semana fora, na visita ao museu, mas também para me mostrar a cidade. Tem um ar alienado, há no olhar dele uma euforia voraz. Recuso secamente. Deixo-o e, através das paredes de vidro da estação de comboios, vejo-o afastar-se, o olhar no horizonte e as mãos nos bolsos, uma mochila grande. Caminha lentamente. É sempre bizarro ver alguém caminhar lentamente uma estação de comboios, com tempo para acompanhar turistas, para conversar, disponível para mudar tudo, alterar a rota e não apanhar o comboio. Há nele uma aura de tristeza vaga, uma melancolia. Fico com pena de não poder evitar o dano que vai trazer à vida de alguém.
Quando chego ao centro da cidade filmo as ruas. Filmo rua após rua enquanto olho para um mapa no telefone para me certificar que estou onde penso estar. O silêncio é inacreditável, se não filmar vão achar que caí no delírio. A verdade, todavia, é que realmente sinto que estou a alucinar. Dou voltas e voltas pelas ruas, imersa num misto de espanto, confusão e choque. Ao que percebo, os carros e autocarros circulam à volta das ilhas e não atravessam a cidade. As pessoas deslocam-se de bicicleta, de trotineta e a pé, fazem do asfalto passeio. É tudo muito diferente, mas em apenas duas horas começo a orientar-me. A Europa está toda aqui. Sinto-me a pisar ossos.
No hotel escolho uma mesa a partilhar com um casal de idosos. Escolher a proximidade dos idosos é uma regra importante que estabeleci mal comecei a viajar, não por qualquer espécie de benevolência ou cuidado, mas porque têm mais histórias, porque as suas histórias me permitem observar a História através de quem a viveu, e porque estão normalmente mais dispostos a contá-las. Gosto sobretudo daqueles que perderam ilusões importantes e, com elas, os filtros. Carregam uma certa amargura, uma indiferença, e desatam a língua, como se costuma dizer, para falar livremente com estranhos sobre o mundo e mesmo sobre os seus familiares próximos, como os filhos. O homem que está sentado à mesa vive na Lapónia numa cidade impronunciável, a mulher na Áustria, em Viena. Ela é tímida, parece falsamente gentil e diz que fala mal inglês apesar de ter uma pronúncia irrepreensível. Ele tem ar de miúdo, em minutos, desemperra a língua e começa a falar pelos cotovelos, ajudando-a a traduzir as frases que ela termina em alemão. Com duas ou três perguntas consigo descobrir a história por detrás da viagem: vieram para um encontro de família, um grande encontro de uma grande família espalhada pela Europa que começou a realizar-se há apenas um ano, por insistência de alguns familiares que vivem no Mediterrâneo. "Mas eles não têm nada a ver connosco. É um modo de vida muito diferente. Não nos compreendem." Diz-me isto e sorri na minha direção, como se se tratasse de uma evidência, mas também para me transmitir que a distinção entre eles e os outros é óbvia e é de grau. "Este encontro é uma péssima ideia, para quê? Nós não os conhecemos, o que é que vamos lá fazer?" Vão lá ficar a conhecê-los, pensei. E viver. Mas não disse. Pareceu-me uma sorte que dois irmãos com a idade deles mantivessem uma proximidade que lhes permite fazer uma viagem juntos e partilhar o mesmo entendimento sobre o resto da família. Conto um pouco das razões que me trazem ali, respondo a algumas perguntas. Eu sei que sou maluca, mas vim só para ver uma exposição. Venho de Lisboa. Depois da perplexidade inicial, riem-se comigo. Ele pergunta-me se sou uma stalker da artista que venho ver e naquele instante fico na dúvida. Rimos mais.
O segundo homem a quem pergunto direções não me responde. Com um gesto lascivo, diz que sou sexy e acrescenta qualquer coisa que não consigo ouvir porque lhe volto costas. Os idiotas estão lá sempre. Mal o penso, um pressentimento repulsivo põe-me em alerta: de que é isto sinal?
No dia seguinte, encontro o casal de irmãos à mesma hora e volto a juntar-me a eles. Sou acolhida com entusiasmo e sorrisos rasgados, querem saber como foi a exposição e despedir-se. Despacho rapidamente o relato das minhas novidades e pergunto pelo encontro de família, mas, em vez da animosa descrição de um almoço insuportável, sou confrontada com uma calma espantosa, semblantes cheios de ternura dizem-me que foi bom, que correu muito bem, olham um para o outro e depois para o prato, contemplativos. Não acrescentam mais nada. Qualquer coisa parece ter-se apaziguado e pergunto-me o que terá sido decisivo. Seria possível que esses exóticos do Mediterrâneo, esses alienígenas do Sul, fossem divertidos e amáveis?
Em três dias vejo apenas duas pessoas negras, dois homens. Um deles estava a fazer uma corrida e o outro estava a estacionar uma bicicleta à frente da estação de comboios e a falar ao mesmo tempo ao telefone. Ambos tinham tranças compridas e roupas caras. Passei também por uma família de árabes e entrei num supermercado que pertencia a árabes. Como é possível? A Suécia teve colónias na América do Norte, América Central, África e Ásia quase até 1900. Traficou escravos, inclusive em Angola, teve comércio com a Índia e com a China. A riqueza das ruas — patente sobretudo na arquitetura sumptuosa e no urbanismo imaculado, mas também no próprio silêncio e na infame ausência de turistas — é obscena, a cada vez que enterrava o pé no asfalto tinha a certeza que essa riqueza provinha da utilização de outros e não apenas do trabalho dos próprios. Como é possível haver tão pouco espaço para a emigração, tão pouca miscigenação também?
A Suécia foi o primeiro país do mundo com um centro de pesquisa de biologia racial, em Upsalla. Foi aqui que a ideia de esterilização forçada encontrou a sua primeira fonte de credibilidade científica, foi aprovada pelo Governo e continuou legal até meados dos anos 70, isto é, ontem. Mas há 20% de emigração na Suécia. Onde estão estes emigrantes? Escondidos. Nas cozinhas, nos hotéis, em qualquer lugar onde não seja exigida formação especializada e sirva para os afastar dos olhares, da rua, do convívio. Parece que nas empresas suecas se tornaram peritos em filtrar CV's de pessoas que não sejam suecas. Os negros, ciganos, árabes e outras etnias, são barrados no acesso ao emprego e também, nunca esquecer, aos serviços. As minhas conversas incluíram todas, sem nenhuma exceção, o condescendente paternalismo de uma pretensão de superioridade intelectual e económica perante os «povos do Sul» que são «demasiado diferentes». E mesmo a glorificação dos prazeres simples, algo que os enche de orgulho nacionalista, como o obrigatório fika, leva-os à autocomplacência, ao comodismo pequeno-burguês, e age como uma mordaça social. Recolhimento em comunidade, sim, mas só se forem todos brancos, de olhos azuis e, de preferência, suecos.
Por diversos motivos, fico sempre nervosa no dia em que tenho de viajar, razão pela qual me custa viajar, me custa estar deslocada, e não retiro daí o prazer que a vasta maioria dos meus contemporâneos parece retirar. Neste dia, vou com horas de antecedência para o aeroporto. Quero ir a pé, quero tomar o pequeno-almoço na rua, quero ir lentamente e quero ver se não perco o avião, como já aconteceu. Não tiro fotografias. Fico muito tempo a ver mulheres fazer pão através da montra de uma padaria à beira-rio e encosto-me à barreira de umas obras, perto de um cruzamento movimentado a seguir a uma ponte, a ver quem passa. Acho que viajo para poder ver quem passa. Longe de casa, entre desconhecidos, quase sem amarras, os modos, os gestos, os semblantes, os olhares, a roupa, os objetos que transportam, a forma como se movimentam e a forma como param para conversar com alguém, destacam-se com uma tonalidade tão intensa que quase se transforma em música. Em literatura. Sei que não vou poder manter muito mais tempo esta liberdade, que daqui a nada perderei a habilidade de me distrair de mim própria e de me relacionar com o mundo desta maneira desinteressada, silenciosa. Sei que os outros vão deixar de me atravessar como acontece agora, neste cruzamento. Casais com carrinhos de bebé, casais de cabelos brancos de mão dada, adolescentes góticos, trabalhadores cansados, mulheres sozinhas, pessoas que correm com cães. No cais, vários cartazes anunciam festas com DJ's, concertos, peças de teatro, e chama-me a atenção o Lazarus, um musical do David Bowie. Caminhei horas, atravessei a cidade de ponta a ponta. Não vi uma única pessoa a dormir na rua.
Acabo por chegar ao aeroporto em cima da hora da partida. Desorientada pelo nervosismo, dirijo-me às pessoas que aí trabalham para perguntar por direções. A última dessas pessoas é um homem com idade avançada, encurvado, muito magro, manchas na cara, que traz um cartão pendurado ao peito. Mal lhe faço a pergunta que preciso de fazer, ele ri-se e diz-me "Não se preocupe, venha comigo." Pronto, estou safa, vai levar-me ao avião. Quando chegamos ao final do corredor, hesita e volta para trás sem dizer nada. Continuo a segui-lo, certamente foi ali confirmar qualquer coisa para não se enganar e poder ajudar-me. Enquanto caminhamos, percebo que balbucia qualquer coisa entre dentes e subitamente, eis que nos encontramos diante do painel dos voos, para onde ele olha com um olhar vago. Começo a achar que quem está desorientado é ele e volto a explicar que não tenho dúvidas sobre o meu voo, mas sim sobre a direção a tomar para o terminal onde está o meu voo. "Ah, sim, claro. Mas olhe, tem muito tempo. Não quer vir comigo? Podemos ir até ao meu gabinete tomar um café."
Fui até lá com a ideia de que, pelos seus valores progressistas, Estocolmo era um paraíso da igualdade. Encontrei uma assustadora preponderância de violência machista. O significado primordial que ali atribuem à minha existência baseia-se na utilidade que posso ou não ter para um homem. Não é que para eles eu nem sequer seja um ser humano, uma mulher. Sou vista como ser humano e sou vista como mulher. Mas o ser humano que eu sou é uma mulher e uma mulher é uma coisa, como os escravos foram uma coisa, como uma mesa é uma coisa. Vai-se a ver e, apesar das medidas corretivas que todos os anos são introduzidas pelo Estado, a Suécia tem uma das maiores taxas de violência contra as mulheres da União Europeia. Os assassínios ocorrem frequentemente à luz do dia.
De regresso a Lisboa, senta-se ao meu lado no avião uma senhora vestida de branco com o pulso partido. Veste calças, tem o cabelo grosseiramente apanhado, um saco de uma marca moderna e cara de onde tira e volta a arrumar várias vezes o iPhone. Procuro tranquilizá-la quando, depois de entregar duas fotocópias de um raio-x ao hospedeiro de bordo e responder a várias perguntas sobre o tipo de material que tem no pulso, me diz que está com medo de a impedirem de viajar. "A mim e ao cão", acrescenta, "É uma surpresa para o meu marido". Pergunta-me se estou a regressar a casa e procuro conter a minha felicidade ao ouvir aquela palavra, casa, sobre Lisboa. Devolvo-lhe o interesse e ela conta-me que viveu toda a vida num barco entre o Mediterrâneo e o Sul de França. Que agora, com os filhos criados, todos já nos trinta, vive em Odemira com o marido, onde se sentem bem por ser pequeno e pela proximidade do mar. Partiu o pulso numa caminhada nas montanhas algures na Áustria, onde tinha ido visitar a filha. Depois de ver as ruas de Estocolmo escandalosamente vazias, convenço-me em definitivo que somos os eleitos do ócio e lazer, um país destinado à recreação e repouso dos povos do Norte. A vida de Lisboa tal como a conheci, e a razão pela qual me mudei para cá há trinta anos, desapareceu irrecuperavelmente para dar lugar ao tráfico humano nos indianos, ao comércio do turismo que vende como típicos produtos que nunca consumimos, e à cidade-festival, a cidade da festa total, das despedidas de solteiro, das viagens de finalistas e dos arraiais 12 meses por ano. Que casa?