No início do verão, no jardim da Estrela, esvaziaram os lagos, suponho que para limpar as esculturas grafitadas com palavras em cores fluorescentes. As esculturas voltaram a ser brancas, os lagos encheram, o fundo voltou a ficar escuro, acumulando restos de rações, fezes, urina, folhas, galhos, raízes e algas que maldigo há anos. Neste dia, porém, depois de um verão inteiro a desejar mergulhar neles os pés, como fazemos nos lagos cristalinos e apetecíveis do Campo Mártires da Pátria, esse fundo imundo e esses sedimentos hediondos parecem-me indescritivelmente belos. Dificilmente o teria confessado se não tivesse a avassaladora vontade de o registar, de tal forma confrangida por sempre me ter repugnado olhar para os depósitos no fundo do lago. Enquanto saio lentamente do sítio onde passei a tarde, opostos ao que tenho a convicção de conhecer da minha identidade — que estimo em mim aquilo que outros considerariam repugnante, mas também que conservo uma pureza impenetrável numa vida que é implacavelmente sórdida —, estes sedimentos castanhos associam-se num inesperado golpe surdo ao amontoado de frases estagnadas que há anos acalento e às quais vou acrescentando um sinal, uma palavra, uma sensibilidade, procurando, temendo, enfim, desesperando, que a algazarra se desfaça, desapareça e me abandone. Saí de lá de noite esta semana e desde o final da tarde umas colunas gigantes à entrada do jardim do lado da Basílica expeliam a preparação sonora para uma festa à qual, pouco a pouco, chegavam adolescentes magros vestidos e pintados de negro. Num jardim tão pequeno, onde sequer é possível deixar de ouvir o rumor do trânsito, agora também vai sendo impossível ouvir as folhas, os pássaros, o som dos nossos próprios passos. Duas raparigas acabam de entrar, caminham à minha frente em direção à festa. Têm o cabelo platinado e o espaço em torno dos olhos negro. Não sei se são estrangeiras ou portuguesas, turistas ou residentes, não sei que idade têm. Uma delas olha para mim, mas não leio nada no olhar dela. No recinto do café, os dj's esticam os pescoços para olhar para a entrada, apavorados por estar tão pouca gente, e também passam os olhos pelos meus olhos, mas não leem nada. Sou tentada a parar à frente da festa, entrar por ali dentro a tirar fotografias às colunas — proibidas — e ir a correr para casa fazer uma denúncia. Mas não faço nada disso. Continuo a caminhar lentamente em direção à saída. Ainda não chove, não está nevoeiro, também não está frio, sinto falta de castanhas a assar.