4 de maio de 2023

Eu tenho 47 anos e nunca ganhei €1.000,00 nem nunca recebi um subsídio de férias inteiro, respondi. A audiência devolveu um silêncio pesado e embaraçado ao meu rosto impassível. Era a resposta à lamentação de um dos amigos com quem conversava sobre um aumento no salário de pouco mais de €230,00 nos últimos 5 anos. Mas tens casa própria, não é? e Mas tens uma casa tua, não é?, perguntaram ao mesmo tempo. A minha amiga, que acaba de comprar uma casa e se prepara para concluir um doutoramento, foi a primeira a arrancar com a frase de forma peremptória, atirando os ombros para trás e as mãos para os lados do corpo, como se estivesse a dizer também «Para tudo», embora, provavelmente sem que ela soubesse, o terror nos olhos se sobrepusesse ao leve sorriso que acompanhava o gesto engraçado. O meu rosto impassível voltou a responder e as cores abandonaram os deles. Felizmente as soluções começaram logo a aparecer. Mas tu podes fazer um doutoramento e ter uma bolsa. São quatro anos. Não queres?, era novamente a minha amiga a falar. Pois!, disse o meu amigo, que parecia achar a ideia inequivocamente adequada. Vocês trabalham 8 horas?, perguntei. 8 horas de trabalho, 8 horas de lazer e 8 horas de sono, essa grande conquista de 100 anos!, respondeu o meu amigo, que é evangelista do PCP. Sim, respondi. Mas vocês trabalham 8 horas? A minha amiga levantou o pé e pousou-o no banco ao nosso lado, apoiando os braços sobre a perna. Olhou para o lado, para fora da conversa, e respondeu que tinha estado a trabalhar no fim-de-semana. O meu amigo anuiu rapidamente que, de facto, trabalha muito mais do que 8 horas, muito, muito mais. Um pouco a medo, pois não saberia o que dizer se me respondessem que era a única pessoa no mundo nessa situação, prossegui: Eu sento-me à secretária às 9H00 e termino pelas 20H00 com uma pausa de 20 minutos para almoçar. A seguir vais estudar ou escrever? Os meus amigos olharam de soslaio um para o outro, discretamente para o chão, e decidiram atenuar o seu desalento. Então és pobre!, disse o meu amigo e, seguido pela minha amiga, abraçou-me com pancadinhas afáveis nas costas rindo alto e elogiando a minha gargalhada única e a beleza física que mantinha aos 47 anos. Como seria possível de outra maneira? Devolvi-lhes um sorriso nipónico e acompanhei-os ao mudarem de assunto. Ao voltar para casa, revia na minha memória esta conversa e estes gestos quando me lembrei de outra amiga que, um dia, encontrando-me a trabalhar atrás do balcão de uma loja após ter passado por um momento de exposição pública por ter estado, havia pouco tempo, ligada a um importante projeto artístico, me disse, igualmente estarrecida, ao transferir dinheiro da carteira dela para a minha mão para pagar o que lá tinha ido comprar, que depois de ter feito certos trabalhos, já não podia fazer trabalhos destes. Não percebi logo o que ela queria dizer, fiquei perplexa e senti-me ofendida, perguntei porquê. É desprestigiante, respondeu. A custo disfarcei uma gargalhada monumental no momento, mas não parei de pensar naquilo nos dias a seguir, creio que cheguei mesmo a escrever sobre isso na altura num caderno qualquer. O que é preciso para que alguém possa dizer-nos uma coisa destas, um sentimento de profunda amizade ou o opróbrio ignaro e pateta do privilégio? E porque me tinha sentido ofendida, com quê? Porque, perante o que confere prestígio, o esforço gigantesco que cada uma das coisas que faço exige é invisível e, por isso, insignificante. O insignificante e o essencial estavam ao contrário, como diz o poeta, o primeiro sempre a ameaçar o segundo. Construí por esses dias intermináveis e dilacerantes discursos sobre a vida das pessoas como eu, que tinham contas para pagar, famílias sem recursos, histórias de abuso e violência, doenças incapacitantes pelo meio e solidão, ao contrário da minha amiga ao lado de quem caminhava nas manifestações e que, aos 20 e poucos anos, vendia a primeira casa, oferecida pelos pais, para ir viajar. Enquanto esta história antiga se misturava com a conversa de hoje e com pensamentos sobre a relação entre o prazer e a partilha genuína de intimidade, lembrei-me do amigo que talvez me entendesse e da sua frase categórica cuja limpidez me aturdiu: Preferia não me comover comigo próprio. O que importa é depararmo-nos com a beleza e saber vê-la, não é?


 
Forough Farrokhzad, A Casa é Negra (1963).

2 de maio de 2023

“Nous vivons dans un monde plutôt désagréable, où non seulement les gens, mais les pouvoirs établis ont intérêt à nous communiquer des affects tristes. La tristesse, les affects tristes sont tous ceux qui diminuent notre puissance d’agir. Les pouvoirs établis ont besoin de nos tristesses pour faire de nous des esclaves. Le tyran, le prêtre, les preneurs d’âmes, ont besoin de nous persuader que la vie est dure et lourde. Les pouvoirs ont moins besoin de nous réprimer que de nous angoisser, ou, comme dit Virilio, d’administrer et d’organiser nos petites terreurs intimes. La longue plainte universelle qu’est la vie… On a beau dire « dansons », on est pas bien gai. On a beau dire « quel malheur la mort », il aurait fallu vivre pour avoir quelque chose à perdre. Les malades, de l’âme autant que du corps, ne nous lâcheront pas, vampires, tant qu’ils ne nous auront pas communiqué leur névrose et leur angoisse, leur castration bien-aimée, le ressentiment contre la vie, l’immonde contagion. Tout est affaire de sang. Ce n’est pas facile d’être un homme libre : fuir la peste, organiser les rencontres, augmenter la puissance d’agir, s’affecter de joie, multiplier les affects qui expriment un maximum d’affirmation. Faire du corps une puissance qui ne se réduit pas à l’organisme, faire de la pensée une puissance qui ne se réduit pas à la conscience.”

Gilles Deleuze, Dialogues, com Claire Parnet.

8 de abril de 2023

12 de março de 2023

O primeiro rosto, mostras ao mundo.
O segundo rosto, mostras aos amigos íntimos e à família.
O terceiro rosto, nunca mostras a ninguém.
 
Provérbio japonês
Em Fraggle Rock as pessoas que tinham um problema iam consultar um sábio monte de lixo. Para lá chegar, tinham de atravessar um assustador túnel escuro e ultrapassar um gigante mau. Depois o lixo levantava-se como uma montanha. Era aterrador e ao mesmo tempo extraordinário. O monte de lixo começava a mexer-se lentamente, primeiro como lava a borbulhar e finalmente erguia-se, imponente. Era tão insólito que eu não conseguia tirar os olhos do ecrã e estava sempre ansiosa para voltar a ver. “Outra vez!” O monte de lixo resolvia sempre os problemas e era muito sábio. "The trashy is all!", não sei como é que traduziam isto, mas era isso que eu percebia: tudo era lixo. O lixo era uma forma suprema de vida porque recebia toda a vida, era a vida a transformar-se, em decomposição, a devir. Já era adulta quando percebi que o monte de lixo era uma senhora, quando eu via o Fraggle Rock não era nem um senhor nem uma senhora, era lixo. Mas mal ouvia as perguntas das personagens porque tinha uma ânsia visceral de lhe fazer eu própria as minhas perguntas. Um comboio de perguntas a entrar uma após a outra na minha cabeça, mal uma se formulava, já outras duas estavam a meio de se definir. Entre elas, enquanto via o monte de lixo demonstrar a sua sapiência, interrogava-me se teria coragem de atravessar aquele túnel tão comprido e tão escuro. Interrogava-me se, uma vez lá, o monte de lixo a levantar-se, de que eu tinha muito medo, não seria intimidante ao ponto de me emudecer. Não conseguir perguntar nada. De que tinha eu medo se também tinha tanta vontade de falar com ele? Tinha medo de uma coisa que passa de invisível a visível diante dos meus olhos. Tinha medo de estar a olhar para uma coisa e não ver o que lá estava. Tinha medo de estar a olhar e não ver as coisas maravilhosas que estavam à frente do meu nariz.  


3 de março de 2023

todos sabem 
que o fogo
recebe tudo
e
não devolve nada

Inês Francisco Jacob, Sair de cena

22 de fevereiro de 2023

Uma mulher escreveu-me o seguinte depois de ler o texto Uma mão de homem:
 
"Eu tenho mãos de agricultora e já com artroses e, às vezes, quando estou nas caixas do supermercado, olho deliciada para as unhas das moças que atendem e imagino que, se o mundo acabar à unhaca, eu também aí vou estar, do lado dos perdedores."

21 de fevereiro de 2023

As pessoas aqui
já se tornaram 
nas pessoas
que fingem ser. 

Sam Shepard 

20 de fevereiro de 2023

Em A Trilogia de Copenhaga, o lixo percorre todas as fases da vida de Tove, todos os estados, todos os lugares. A casa onde Tove cresce fica perto dos caixotes do lixo. Os encontros para brincar com os primeiros amigos são junto aos caixotes do lixo. Os primeiros ensaios de liberdade, bem como o sentimento de uma liberdade inalcançável nos primeiros dias de trabalho, acontecem perto do lixo. O desejo, o sexo, a maternidade, a descoberta do corpo é feita no lixo. A perceção, com alívio, de que o destino dela não é o das amigas, mas a escrita, é feita perante o lixo. O lixo é uma pontuação que tanto permite entrever o seu universo como os lugares onde vive. O lixo é a sua gramática.

18 de fevereiro de 2023

A Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, exibiu hoje numa sessão quatro curtas metragens iranianas que eram, cada uma delas, uma obra-prima. Ressalva sobre isso feita para a última delas, no final deste pequeno texto. MOBAREZEH BA ATASH DAR AHVAZ [“Combate ao Incêndio em Ahvaz”], de Abolghasem Rezai (1958), YEK ATASH [“Um Fogo”], de Ebrahim Golestan (1961), COURTSHIP ["Segmento do Irão"], de Ebrahim Golestan com Forough Farrokhzad (1961) e KHANEH SIAH AST [“A Casa é Negra”], de Forough Farrokhzad (1962).
Dois filmes sobre um combate a um incêndio que ardeu ao longo de 70 dias num furo de petróleo em 1958, transformam-se numa alegoria sobre a relação do homem com a terra e com os seus elementos, sobre a nossa burlesca, absurda e insensata espoliação do que está acima, e mais acima, e do que está abaixo, do que está mais abaixo ainda e mais longe e mais abaixo ainda, e, ao mesmo tempo, sobre a nossa adaptabilidade, a nossa capacidade de superação, a firmeza, e certamente também a loucura, em enfrentar as catástrofes. No primeiro filme a preto e branco, uma descrição do acontecimento, rapidamente se percebe (logo nas primeiras imagens, na verdade) que o que estamos a ver excede a mera enumeração. No segundo filme, a cores, que tem a colaboração de Forough Farrokhzad, e a que chamaram simplesmente YEK ATASH, Um fogo, a matéria que vemos troca de lugar com o corpo que vê. Para além da cor, uma cor que ela própria ferve, é um filme com mais silêncios do que o primeiro. São silêncios com a sua própria monstruosidade, que lançam as chamas e o seu odor sobre a plateia e enchem pesadamente a sala, mas que também têm qualquer coisa de abrupto e desajeitado, como uma fala que guardámos demasiado tempo e que finalmente explode quando menos nos preparávamos para a pronunciar.
“Haverá sempre muitos silêncios”, diz-se em COURTSHIP. Neste filme, vejo a Forough pela primeira vez no écrã. É um filme de uma asfixia irracional. Uma encenação dos procedimentos de corte daquela época que começa — é sempre tudo muito curioso na verdade quando ela deflagra diante dos nossos olhos — com algo que não tem nada a ver com um casamento ou um namoro: a descrição da cidade de Teerão, nos planos dos grandes edifícios filmados a partir da rua, por um lado, e na voz off do casal que a descreve como uma cidade «moderna», «europeia», «cosmopolita», por outro, para logo a voz do homem proclamar “Já não deve haver haréns, pelo menos na cidade, mas o lugar da mulher é em casa!”. 
Por fim, vimos A CASA É NEGRA. Vi este filme hoje pela primeira vez no cinema numa cópia maravilhosa e estou infinitamente agradecida à Cinemateca e ao amigo que há umas semanas me avisou que o filme passava hoje. No caminho para casa, mergulhada numa espécie de nirvana negro e luminoso ao mesmo tempo, escrevo-lhe esta mensagem: "Por muitas vezes que veja este filme, sinto sempre que é a primeira vez. Hoje talvez especialmente. Acho que este filme diz tudo o que penso sobre a vida." Por este motivo, não consigo enquadrar este filme em nada. Nem mesmo na definição «uma obra-prima». Uma frase brilhou particularmente hoje, não sei se já tinha reparado nela antes. 
 
 





 
Forough Farrokhzad, The House is Black (1962).

12 de fevereiro de 2023

A verdade não liberta
 
Um amigo diz-me que amo de maneira volátil. Que para mim, todos os livros que acabo de ler são o melhor livro de sempre. Embora preferisse não concordar com ele, não encontro argumentos para o contestar. Desde que comecei a aprender a falar que procuro uma forma de expressar os desníveis, desvios, alterações e contrastes, subtis ou graves, da intensidade que tudo nivela à superfície e que parece ser a face mais clara do que vive em mim. "De manhã, havia esperança. Pousava como um reflexo fugidio no cabelo preto e lustroso da minha mãe, no qual nunca me atrevi a mexer." São estas as duas primeiras frases da Trilogia de Copenhaga, livro de Tove Ditlevsen, um dos expoentes da literatura dinamarquesa de que nunca tinha ouvido falar, que acaba de ser publicado em português. Primeiro sem conseguir distinguir uma razão para o abalo que me atravessa o corpo, aos poucos distinguindo que acabo de entrar na vida de uma pessoa num só golpe, de uma forma quase selvagem que me deixa numa espécie de torpor e sou incapaz de compreender inteiramente. Sinto-me confusa, era uma autobiografia e afinal será poesia? Comove-me o extremo acerto da universalidade: a infância é insuperável. Leio as duas frases e não consigo continuar. Com desconfiança e estranheza, reconheço em mim um sentimento de deferência, a intuição prematura de que estou perante uma obra-prima, um tesouro que quero manusear com cuidado. Se calhar o meu amigo tem razão. Também me sinto imediatamente próxima dela. Porquê, se a minha mãe era exatamente o oposto de uma mãe em quem não nos atrevemos a tocar? Se as palavras me tocam é porque, entre uma e outra, qualquer coisa se mantém, qualquer coisa permanece. Entre a sua infância e a minha interpõem-se mais de 50 anos. O que as une? Como qualquer infância, ambas são cheias de inocência, de credulidade, expetativa, candura, assim como de injustificável, inaceitável violência. Apesar de todas as diferenças, o distanciamento entre mim e o mundo dos adultos era o mesmo, precisamente este, um distanciamento sustentado pelo temor e, tal como o dela, o meu íntimo era ocupado por uma certeza, pelo sentimento que leva a essa decisão, de um certo arrojo, de nos protegermos deles. Enquanto prossigo, avoluma-se a amarga evidência de que hoje, tal como na época em que Tove viveu, a sociedade continua a anular as meninas e continua a anular as mulheres. "Porque moramos com tanta dor nas nossas ficções? Porque sofremos assim à custa de coisas da nossa própria invenção? Tu percebes porquê, Jeffers? Toda a vida quis ser livre, mas ainda não consegui libertar nem um dedo mindinho. Acredito que Tony seja livre, e a liberdade dele não parece grande coisa." Isto é Rachel Cusk, no livro Segunda Casa. Ditlevsen escreve para se libertar. Da pobreza, do corpo, da intimidade, dos maus tratos da mãe, do desconforto social, de uma série de casamentos malogrados, da solidão, da maternidade, do frio. Com uma agudeza seca e sombria, num estilo construído com uma honestidade despótica, descreve as circunstâncias em que viveu e como aos 10 anos decidiu escrever poemas, muito cedo determinada perante a boçalidade com que a família os acolheu: não os mostrar a ninguém. Com uma vontade férrea, opõe a íntima convicção de que um dia se tornaria uma «mulher poeta» à crença dominante, fervorosamente defendida pela mãe manipuladora, de que as raparigas precisavam do casamento para escapar à pobreza e à vergonha, bem como à convicção do pai de que uma mulher jamais poderia ser uma escritora. Tove nunca será uma heroína em nada, nem na sua história. Mas como foi possível que não a conhecêssemos até agora? Os seus livros foram incluídos nos currículos das escolas dinamarquesas, venderam muito, Ditlevsen foi uma das autoras mais populares da Dinamarca. Porém, até 2014, a sua obra foi consistentemente ignorada pelo cânone literário dinamarquês, principalmente composto por autores masculinos, tendo sido qualificada como uma escritora antiquada por usar a rima, numa altura em que os autores e críticos modernistas privilegiavam a poesia experimental. Para resumir tudo em duas palavras, era ficção feminina. Quando, em 2021, um tradutor de dinamarquês encontra o terceiro livro da trilogia num aeroporto, e obstinadamente o traduz, apenas inicialmente com apoio financeiro, tudo muda. Com a tradução inglesa das memórias em três volumes, The Copenhagen Trilogy, publicada pela Farrar, Straus & Giroux, em 2021, Tove Ditlevsen é postumamente catapultada para a fama, sendo traduzida em mais de trinta países. O New York Times nomeou-o um dos dez melhores livros de 2021, pela sua «espantosa clareza, humor e candura». Há alguns poemas traduzidos em antologias internacionais e em revistas literárias e a primeira tradução para inglês dos seus poemas (The Adults) está para breve. Segundo percebo através de alguns artigos, a sua linguagem, aparentemente tão simples, torna-se complexa nas imagens que descreve, tornando a tradução difícil. É também aí, a meu ver, que está a sua força. A concisão extraordinária com que escrupulosamente expõe a sua vulnerabilidade é de uma lucidez avassaladora, e transmite uma energia comovente. "Vós que entrais, abandonai toda a esperança." Sentimo-nos próximos (próximas?) da sua sinceridade, da sua sensibilidade apurada. Os internamentos, o mundo dominado pelos homens, o aborto, o abuso, as relações complicadas com a família, mas também, e talvez principalmente, a relação complicada com si mesma, aparecem neste livro de forma direta. A vagueza da vida é descrita de forma direta. Opaca, volúvel, ambígua, risível, Ditlevsen passa por ela com crescente indiferença, aceitando e mesmo desejando os papéis que socialmente lhe outorgam, ao ponto de se tornar totalmente indiferente a tudo menos a duas coisas: a escrita e o líquido transparente. A primeira liberta-a, a segunda torna-a totalmente dependente. Mas a primeira não a protege da segunda. É na droga que a escritora descobre a felicidade pela primeira vez, uma felicidade «pura», «indescritível», «infinda», «doce», «desconhecida», «extasiante», como tantas vezes é referida no livro, e é ela que a eleva "ao único nível onde queria existir". Eis o êxtase, a fuga total. Gift, o título que Tove dá ao terceiro volume da trilogia, tem em dinamarquês o duplo significado de casado e veneno. Aqui a escrita condensa-se, torna-se compulsiva, agoniza. "E se eu lhe contasse a verdade? Se lhe contasse que estava na realidade apaixonada por uma seringa com um líquido translúcido e não pelo homem que tinha acesso à referida seringa? No entanto não lho disse. Nunca o confessei a ninguém." Em 1973, três anos antes da sua morte autoinflingida, na peça que intitulou O meu obituário, Ditlevsen escreveu: "Antes da sua morte prematura, Tove Ditlevsen conseguiu escrever mais de uma dezena de livros, dos quais os mais importantes são as suas memórias. Com implacável honestidade, escreveu sobre os homens com quem, pela bondade do seu coração pródigo, partilhou mesa e cama. Infelizmente os seus contemporâneos não apreciaram a sua honestidade, o que acabou por levar a que nenhum homem se atrevesse a conversar com ela na rua por medo de aparecer no seu próximo volume." No ano seguinte, começou a escrever também sobre o seu desejo de morte: "Nós, que temos frequentemente mais medo da vida do que da morte, temos como que mais uma dimensão, um sentido de liberdade ao pensar que podemos retirar-nos a qualquer momento com um pedido de desculpas cortês, como quando se deixa uma empresa prematuramente". Aprendi (muito inesperadamente, pois não é no cinema que se aprende a viver?) duas coisas neste livro: que todos, sem exceção, queremos alguma coisa uns dos outros. E que a escrita implica uma certa falta de empatia, um alheamento. Não se pode ser direto sem ser severo? De onde vem esta beleza?
 

5 de fevereiro de 2023

26 de janeiro de 2023

Ensinamento

Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.

Adélia Prado

22 de janeiro de 2023

Uma semana na cidade onde nasci. Caminho em ruas conhecidas que desembocam em ruas que as obras, as construções e as demolições desfiguraram e me devolvem com dureza a imagem de acontecimentos importantes cujo lugar desapareceu totalmente. Há muitas casas em ruínas, algumas semi-demolidas para precaver desabamentos no passeio. Há ruas onde me custa passar porque me apetece ficar, ruas onde passo vagarosamente para observar e outras onde passo a correr, suspendendo a respiração para não ser contaminada por nenhuma memória. De porta em porta, a infeliz constatação de que o comércio no centro histórico continua a fechar é partilhada com a surpreendente sobrevivência de lojas que permanecem iguais há 30 anos e mais. As lojas abandonadas, cujas montras estão tapadas com jornais desbotados do início do século, não foram substituídas, nada surgiu no lugar delas, nem outros negócios nem casas. O rio vai cheio. Quase a transbordar depois das chuvas deste inverno, a água é verde e branca, como se as mulheres ainda viessem lavar. Aceno com carinho ao meu cunhado quando os nossos olhares inesperadamente se encontram através de uma janela, eu na rua e sem destino, ele no seu escritório a trabalhar desde cedo. O sentimento consolador de poder ver a minha família todos os dias e a qualquer hora é tão raro que me parece que a cidade nos pertence. Tenho prazer em percorrer a cidade a pé, mas não quero cruzar-me com ninguém. As conversas apressadas e aborrecidas (abomino o afã que leva ao lugar comum) com pessoas com quem não convivo há 27 anos, limitam-se quase todas aos tradicionais votos de fim de ano ou aos tradicionais inquéritos que exibem a consternadora hesitação entre serem dirigidos a uma fulgurante adolescente e também a uma mulher com cabelos brancos, solteira e sem filhos. Um amigo de quem me afastei há muito, chora com a frieza da minha resposta à incompreensível exigência Porque é que nunca apareces? Não me comovo e já não fico assustada por não me comover. Enquanto me afasto, gozo o conforto de talvez ter conseguido resolver a coisa pela raiz. Arranco a alegria a um corpo arrebatado pela deriva. Quem fui eu? Aquela que quis partir. Resta alguma coisa dela? Uma semana, uma missa de sétimo dia, um funeral e a notícia de outro a que não cheguei a tempo. Enquanto abraço antigas colegas de escola, percebo despreocupada que o inconformismo que me separava dos outros desapareceu. No cemitério, a minha irmã leva-me à campa dos meus avós e nas suas fotografias, os rostos familiares e vivos confundem-me como sempre, não restando à repulsa inexprimível mais do que vomitar umas quantas lágrimas grossas que já não sei o que significam. Outros mortos — que fui eu que matei bem matados, ao longo de muito tempo e com as minhas próprias mãos —, a contingência me força a encontrar sempre que venho. Aqui, não há escolhas. No Instagram, onde publico fotografias dos meus passeios, recebo mensagens que elogiam a beleza da paisagem. Onde estava esta beleza quando cá vivi? Por muito que me esforce, o que assome é a inundação da biblioteca e o posterior encerramento por mais de uma dezena de anos, o incêndio no jardim-infantil, o fecho do Cine-Teatro Virgínia cujas ruínas me contemplaram até à partida, o fogo estival na serra, o salão de jogos com a máquina de Tetris e as mesas de Snooker de onde saía carcomida pela solidão, o Trampolim, um café onde dançava e hoje não sou capaz de entrar, e opressão, opressão, opressão que me esperou ao raiar desde que me lembro e de que me despedia diante de uma estrela que brilhava mais forte diante da janela do meu quarto, à qual todos os dias prometi sair dali mal conseguisse. Enquanto revisito mais um lugar, lembro-me que é sobre isto que escrevo. Sobre tudo isto, sobre este lugar. A derrota sucessiva de todos os meus espantos trouxe-me aqui, a um apagamento que não tenho qualquer intenção de repor.

21 de janeiro de 2023

Devo ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Devo ser o último degrau na escada de Jacob
E o último sonho nele
Devo ser a última dor no quadril.
Devo ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Devo ser a véspera.
Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir.
 
Daniel Faria