12 de fevereiro de 2023

A verdade não liberta
 
Um amigo diz-me que amo de maneira volátil. Que para mim, todos os livros que acabo de ler são o melhor livro de sempre. Embora preferisse não concordar com ele, não encontro argumentos para o contestar. Desde que comecei a aprender a falar que procuro uma forma de expressar os desníveis, desvios, alterações e contrastes, subtis ou graves, da intensidade que tudo nivela à superfície e que parece ser a face mais clara do que vive em mim. "De manhã, havia esperança. Pousava como um reflexo fugidio no cabelo preto e lustroso da minha mãe, no qual nunca me atrevi a mexer." São estas as duas primeiras frases da Trilogia de Copenhaga, livro de Tove Ditlevsen, um dos expoentes da literatura dinamarquesa de que nunca tinha ouvido falar, que acaba de ser publicado em português. Primeiro sem conseguir distinguir uma razão para o abalo que me atravessa o corpo, aos poucos distinguindo que acabo de entrar na vida de uma pessoa num só golpe, de uma forma quase selvagem que me deixa numa espécie de torpor e sou incapaz de compreender inteiramente. Sinto-me confusa, era uma autobiografia e afinal será poesia? Comove-me o extremo acerto da universalidade: a infância é insuperável. Leio as duas frases e não consigo continuar. Com desconfiança e estranheza, reconheço em mim um sentimento de deferência, a intuição prematura de que estou perante uma obra-prima, um tesouro que quero manusear com cuidado. Se calhar o meu amigo tem razão. Também me sinto imediatamente próxima dela. Porquê, se a minha mãe era exatamente o oposto de uma mãe em quem não nos atrevemos a tocar? Se as palavras me tocam é porque, entre uma e outra, qualquer coisa se mantém, qualquer coisa permanece. Entre a sua infância e a minha interpõem-se mais de 50 anos. O que as une? Como qualquer infância, ambas são cheias de inocência, de credulidade, expetativa, candura, assim como de injustificável, inaceitável violência. Apesar de todas as diferenças, o distanciamento entre mim e o mundo dos adultos era o mesmo, precisamente este, um distanciamento sustentado pelo temor e, tal como o dela, o meu íntimo era ocupado por uma certeza, pelo sentimento que leva a essa decisão, de um certo arrojo, de nos protegermos deles. Enquanto prossigo, avoluma-se a amarga evidência de que hoje, tal como na época em que Tove viveu, a sociedade continua a anular as meninas e continua a anular as mulheres. "Porque moramos com tanta dor nas nossas ficções? Porque sofremos assim à custa de coisas da nossa própria invenção? Tu percebes porquê, Jeffers? Toda a vida quis ser livre, mas ainda não consegui libertar nem um dedo mindinho. Acredito que Tony seja livre, e a liberdade dele não parece grande coisa." Isto é Rachel Cusk, no livro Segunda Casa. Ditlevsen escreve para se libertar. Da pobreza, do corpo, da intimidade, dos maus tratos da mãe, do desconforto social, de uma série de casamentos malogrados, da solidão, da maternidade, do frio. Com uma agudeza seca e sombria, num estilo construído com uma honestidade despótica, descreve as circunstâncias em que viveu e como aos 10 anos decidiu escrever poemas, muito cedo determinada perante a boçalidade com que a família os acolheu: não os mostrar a ninguém. Com uma vontade férrea, opõe a íntima convicção de que um dia se tornaria uma «mulher poeta» à crença dominante, fervorosamente defendida pela mãe manipuladora, de que as raparigas precisavam do casamento para escapar à pobreza e à vergonha, bem como à convicção do pai de que uma mulher jamais poderia ser uma escritora. Tove nunca será uma heroína em nada, nem na sua história. Mas como foi possível que não a conhecêssemos até agora? Os seus livros foram incluídos nos currículos das escolas dinamarquesas, venderam muito, Ditlevsen foi uma das autoras mais populares da Dinamarca. Porém, até 2014, a sua obra foi consistentemente ignorada pelo cânone literário dinamarquês, principalmente composto por autores masculinos, tendo sido qualificada como uma escritora antiquada por usar a rima, numa altura em que os autores e críticos modernistas privilegiavam a poesia experimental. Para resumir tudo em duas palavras, era ficção feminina. Quando, em 2021, um tradutor de dinamarquês encontra o terceiro livro da trilogia num aeroporto, e obstinadamente o traduz, apenas inicialmente com apoio financeiro, tudo muda. Com a tradução inglesa das memórias em três volumes, The Copenhagen Trilogy, publicada pela Farrar, Straus & Giroux, em 2021, Tove Ditlevsen é postumamente catapultada para a fama, sendo traduzida em mais de trinta países. O New York Times nomeou-o um dos dez melhores livros de 2021, pela sua «espantosa clareza, humor e candura». Há alguns poemas traduzidos em antologias internacionais e em revistas literárias e a primeira tradução para inglês dos seus poemas (The Adults) está para breve. Segundo percebo através de alguns artigos, a sua linguagem, aparentemente tão simples, torna-se complexa nas imagens que descreve, tornando a tradução difícil. É também aí, a meu ver, que está a sua força. A concisão extraordinária com que escrupulosamente expõe a sua vulnerabilidade é de uma lucidez avassaladora, e transmite uma energia comovente. "Vós que entrais, abandonai toda a esperança." Sentimo-nos próximos (próximas?) da sua sinceridade, da sua sensibilidade apurada. Os internamentos, o mundo dominado pelos homens, o aborto, o abuso, as relações complicadas com a família, mas também, e talvez principalmente, a relação complicada com si mesma, aparecem neste livro de forma direta. A vagueza da vida é descrita de forma direta. Opaca, volúvel, ambígua, risível, Ditlevsen passa por ela com crescente indiferença, aceitando e mesmo desejando os papéis que socialmente lhe outorgam, ao ponto de se tornar totalmente indiferente a tudo menos a duas coisas: a escrita e o líquido transparente. A primeira liberta-a, a segunda torna-a totalmente dependente. Mas a primeira não a protege da segunda. É na droga que a escritora descobre a felicidade pela primeira vez, uma felicidade «pura», «indescritível», «infinda», «doce», «desconhecida», «extasiante», como tantas vezes é referida no livro, e é ela que a eleva "ao único nível onde queria existir". Eis o êxtase, a fuga total. Gift, o título que Tove dá ao terceiro volume da trilogia, tem em dinamarquês o duplo significado de casado e veneno. Aqui a escrita condensa-se, torna-se compulsiva, agoniza. "E se eu lhe contasse a verdade? Se lhe contasse que estava na realidade apaixonada por uma seringa com um líquido translúcido e não pelo homem que tinha acesso à referida seringa? No entanto não lho disse. Nunca o confessei a ninguém." Em 1973, três anos antes da sua morte autoinflingida, na peça que intitulou O meu obituário, Ditlevsen escreveu: "Antes da sua morte prematura, Tove Ditlevsen conseguiu escrever mais de uma dezena de livros, dos quais os mais importantes são as suas memórias. Com implacável honestidade, escreveu sobre os homens com quem, pela bondade do seu coração pródigo, partilhou mesa e cama. Infelizmente os seus contemporâneos não apreciaram a sua honestidade, o que acabou por levar a que nenhum homem se atrevesse a conversar com ela na rua por medo de aparecer no seu próximo volume." No ano seguinte, começou a escrever também sobre o seu desejo de morte: "Nós, que temos frequentemente mais medo da vida do que da morte, temos como que mais uma dimensão, um sentido de liberdade ao pensar que podemos retirar-nos a qualquer momento com um pedido de desculpas cortês, como quando se deixa uma empresa prematuramente". Aprendi (muito inesperadamente, pois não é no cinema que se aprende a viver?) duas coisas neste livro: que todos, sem exceção, queremos alguma coisa uns dos outros. E que a escrita implica uma certa falta de empatia, um alheamento. Não se pode ser direto sem ser severo? De onde vem esta beleza?
 

5 de fevereiro de 2023

26 de janeiro de 2023

Ensinamento

Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.

Adélia Prado

22 de janeiro de 2023

Uma semana na cidade onde nasci. Caminho em ruas conhecidas que desembocam em ruas que as obras, as construções e as demolições desfiguraram e me devolvem com dureza a imagem de acontecimentos importantes cujo lugar desapareceu totalmente. Há muitas casas em ruínas, algumas semi-demolidas para precaver desabamentos no passeio. Há ruas onde me custa passar porque me apetece ficar, ruas onde passo vagarosamente para observar e outras onde passo a correr, suspendendo a respiração para não ser contaminada por nenhuma memória. De porta em porta, a infeliz constatação de que o comércio no centro histórico continua a fechar é partilhada com a surpreendente sobrevivência de lojas que permanecem iguais há 30 anos e mais. As lojas abandonadas, cujas montras estão tapadas com jornais desbotados do início do século, não foram substituídas, nada surgiu no lugar delas, nem outros negócios nem casas. O rio vai cheio. Quase a transbordar depois das chuvas deste inverno, a água é verde e branca, como se as mulheres ainda viessem lavar. Aceno com carinho ao meu cunhado quando os nossos olhares inesperadamente se encontram através de uma janela, eu na rua e sem destino, ele no seu escritório a trabalhar desde cedo. O sentimento consolador de poder ver a minha família todos os dias e a qualquer hora é tão raro que me parece que a cidade nos pertence. Tenho prazer em percorrer a cidade a pé, mas não quero cruzar-me com ninguém. As conversas apressadas e aborrecidas (abomino o afã que leva ao lugar comum) com pessoas com quem não convivo há 27 anos, limitam-se quase todas aos tradicionais votos de fim de ano ou aos tradicionais inquéritos que exibem a consternadora hesitação entre serem dirigidos a uma fulgurante adolescente e também a uma mulher com cabelos brancos, solteira e sem filhos. Um amigo de quem me afastei há muito, chora com a frieza da minha resposta à incompreensível exigência Porque é que nunca apareces? Não me comovo e já não fico assustada por não me comover. Enquanto me afasto, gozo o conforto de talvez ter conseguido resolver a coisa pela raiz. Arranco a alegria a um corpo arrebatado pela deriva. Quem fui eu? Aquela que quis partir. Resta alguma coisa dela? Uma semana, uma missa de sétimo dia, um funeral e a notícia de outro a que não cheguei a tempo. Enquanto abraço antigas colegas de escola, percebo despreocupada que o inconformismo que me separava dos outros desapareceu. No cemitério, a minha irmã leva-me à campa dos meus avós e nas suas fotografias, os rostos familiares e vivos confundem-me como sempre, não restando à repulsa inexprimível mais do que vomitar umas quantas lágrimas grossas que já não sei o que significam. Outros mortos — que fui eu que matei bem matados, ao longo de muito tempo e com as minhas próprias mãos —, a contingência me força a encontrar sempre que venho. Aqui, não há escolhas. No Instagram, onde publico fotografias dos meus passeios, recebo mensagens que elogiam a beleza da paisagem. Onde estava esta beleza quando cá vivi? Por muito que me esforce, o que assome é a inundação da biblioteca e o posterior encerramento por mais de uma dezena de anos, o incêndio no jardim-infantil, o fecho do Cine-Teatro Virgínia cujas ruínas me contemplaram até à partida, o fogo estival na serra, o salão de jogos com a máquina de Tetris e as mesas de Snooker de onde saía carcomida pela solidão, o Trampolim, um café onde dançava e hoje não sou capaz de entrar, e opressão, opressão, opressão que me esperou ao raiar desde que me lembro e de que me despedia diante de uma estrela que brilhava mais forte diante da janela do meu quarto, à qual todos os dias prometi sair dali mal conseguisse. Enquanto revisito mais um lugar, lembro-me que é sobre isto que escrevo. Sobre tudo isto, sobre este lugar. A derrota sucessiva de todos os meus espantos trouxe-me aqui, a um apagamento que não tenho qualquer intenção de repor.

21 de janeiro de 2023

Devo ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Devo ser o último degrau na escada de Jacob
E o último sonho nele
Devo ser a última dor no quadril.
Devo ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Devo ser a véspera.
Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir.
 
Daniel Faria

11 de dezembro de 2022

é um processo negativo

Procuro adaptar o meu olhar àquilo que vejo e que identifico de imediato, todavia, hesitando em reconhecer: as imagens que a Margarida me envia por email são impressões de panos de cozinha dobrados, redobrados, calcados e retorcidos. Provêm de uma obscuridade quase total, uma sombra cuja integridade parece conferir alguma eternidade àquilo que vemos — pois só a sombra é eterna.

Estão guardados há muito? Serão antigos? Ou terão sido retirados de uma gaveta na cozinha onde se acumulavam aos poucos, alguns usados e outros novos, comprados para se substituírem pouco a pouco? Os panos de cozinha remetem-me para um ritual antigo, uma dinâmica da casa que, faço subitamente a associação, talvez um pouco disparatada, é também a do artista. Abrem-se e fecham-se arcas, gavetas, armários, nelas se guardam e delas se retiram os panos, ativando o ato mágico de revelar uma força, uma imagem, uma linha, um signo. Invade-se as cozinhas para roubar água, plantas e panos que se levam para o atelier, mas o que aí se cozinha não tem receita. "... [A]rt itself is a sort of thinking thing, it's not spontaneous and it's also not conceptual", diz a Margarida no lúcido Artist Statement que escreveu.

A cabra-cega [blind man's buff] é um jogo recreativo em que um dos participantes é vendado e fica encarregue de procurar agarrar os outros, que, livres à sua volta, o incitam a apanhá-los (a palavra buff é aqui utilizada na sua aceção antiga de um 'pequeno empurrão'). Para isso, visto que não os pode ver, terá de descobrir onde estão. Por sua vez, aquele que for agarrado, passará a ficar com os olhos vendados. Permanecendo como uma constelação à sua volta, os jogadores fogem da pessoa vendada e ao mesmo tempo tocam-lhe ininterruptamente, colocando-se em perigo de perder para a desafiar.

Que massa embrulham estes panos?

"As dobras dão-nos acesso ao possível na obra.", diz Georges Didi-Huberman. A dobra, é o próprio movimento da vida, aquilo que se acha a viver. Estes desenhos, onde um volume vivo emerge do branco primitivo do papel, convertem-se em escultura aos nossos olhos. Não é já a pintura, que trabalha com traços numa superfície, é sobre desafiar o papel e dar-lhe, senão uma profundidade, um volume que nasce. A dobra dá profundidade, mas sobretudo acentua o movimento e o tom do movimento, sereno ou vulcânico. Talvez por isso, nada é mais difícil de representar do que as dobras e as suas formas estruturadas, por vezes, de acordo com uma lógica geométrica difícil de identificar. A dobra — e apenas a dobra — tem o potencial de desfigurar uma representação quando quer ser fiel à realidade. Um pano usado para conter alguma coisa. Um pano usado para esconder alguma coisa. Um pano usado para formar camadas sobre si próprio. Uma marca causada por uma dobra. Rugas, ondulações, envelopes, formas, quedas. Panos engelhados, diz-se, amarrotados, enrugados, encarquilhados, secos, retesados. A dobra esconde e revela, mostra e oculta. Apresenta-se e declara uma ausência, formula aparências, revela desaparecimentos. Converte-se em sinónimo tanto do que nos rodeia como do que encerramos. Leio algures e levada pelo entusiasmo esqueço-me de anotar onde: a dobra é a forma do fundo.

Mas é a dobra que fascina, não o fundo.

Tenho tendência para ver sempre uma intensidade em cada dobra, em cada massa que, inerte, parece contorcer-se ou para se subtrair à sombra ou para nela cair continuamente. Não sabemos. No processo negativo da monotipia, em que todos os elementos colocados na matriz de vidro (base) sairão impressos ao contrário, a Margarida destaca aquilo que se opõe ao desenho, que se forma quando acrescentamos tinta a uma superfície: «é um processo negativo, de retirar a tinta, para depois imprimir os restos que ficam na chapa.» Uma vez que os panos pousam na chapa da prensa de gravura onde estas imagens foram impressas, o processo passa a estar oculto e o desenho desaparece para apenas ser visto quando o pano é retirado. «Só quando saía da prensa», diz-me a Margarida, «é que via como tinha ficado». Como num jogo de cabra-cega, algo espicaça como vento no mar. Talvez nem hoje, nem aqui, o barco tenha estacionado. Há que confiar nos ventos. Sem eles não haveria viagem.

"I look at it [o desenho] and it tells me what I wanted to find, not knowing it yet; at the same time, it keeps its idea mysteriously closed in itself, never fully exhausting or losing it."

Margarida Garcia, Artist Statement.

 

 


Texto para folha de sala de Blind Man’s Buff, de Margarida Garcia, patente na Appleton Square, em Lisboa, até dia 22 de dezembro de 2022.

18 de novembro de 2022

Vinha a descer a rua da Voz do Operário. Ainda conhecia mal a zona, nunca tinha lá vivido e os meus percursos eram sobretudo no Norte da cidade, perto da faculdade e, ocasionalmente, também no centro, onde atravessava rapidamente o Rossio e a Rua Augusta para chegar à beira-rio. Neste dia vinha, por isso, a descer uma rua praticamente desconhecida, um prazer a que me dediquei tanto quanto pude. Vinha a descer a rua deserta, vi o rio ao fundo, o passeio apertado pelos carros estacionados, a estação que mudava quase impercetivelmente no ar. A mochila nas costas carregava tudo o que podia precisar. Um pensamento muito simples percorreu o meu corpo num leve frémito: «Sou livre». Mal o pensei, vi esta parede do outro lado da rua. Uma frondosa trepadeira preenchia-a inteiramente. Não tinha nada de especial aquela parede, igual a tantas que tinha conhecido numa infância vivida numa pequena Vila no interior. Continuei a desviar-me dos carros para descer, deitando-lhe um olhar de soslaio. A parede era muito alta e os ramos chegavam até ao chão. Subitamente, uma rajada forte de vento intromete-se entre a planta e a parede e levanta os longos ramos num sopro. Do outro lado da estrada, parei. Decidi encostar-me à parede e ficar a ver. Tinha tempo, ninguém me esperava. Ainda havia sol. Ajeitei mansamente o corpo contra a parede para que ficasse a bater-me na cara, mas o frio de um fim de tarde de outono, altivo e hostil, transpunha perverso o limiar da minha manga. Aconcheguei a roupa, ajustei o casaco e a gola. Não pretendia ir-me embora. O vento voltou a tocar na trepadeira, por vezes levemente, outras vezes com um vigor a lembrar tempestades em alto mar. Como a densa juba de uma mulher, os ramos da trepadeira subiam e desciam lentamente, mais alto ou mais baixo conforme a investida. Fiquei até o frio ser insuportável e a luz estar cheia de sombra. A primeira vez que comecei a descer a rua para regressar a casa, fiquei com pena de não ter ficado com um registo da trepadeira. Voltei atrás, tirei a máquina fotográfica da mochila e comecei a filmar, a tremer de frio. Foi apenas nesse momento — e através da máquina — que reparei nas folhas da trepadeira. As cores eram inumeráveis. Verdes, amarelas, rosa, castanhas, vermelhas, escuras, claras, secas, novas. Filmei durante muito tempo e depois, receando que a minha falta de destreza tivesse conseguido um mau registo de um momento genial, tirei esta fotografia que, como se pode constatar, é tão má como a filmagem, entretanto perdida. Mas assim lembro-me. Os ramos da trepadeira subiam e desciam e perguntei-me se poderia ser a única pessoa no mundo a testemunhar aquela beleza. Perguntei-me, para ser exata, se essa beleza poderia ter sido feita apenas para mim, embora tivesse gostado de a partilhar, se aquela golfada de vento que parecia falar-me seria uma entidade com uma existência tão irremediável quanto a minha e me visse. Sabia, contudo, já nessa altura, que não vale a pena fazer alarde da beleza. A beleza é sempre incomensurável e nós, sobretudo quando somos jovens, estamos sempre sozinhos em alto mar. 

26 de setembro de 2022

Em minha defesa, os meus seios esquecidos. Em minha defesa, o cabelo
que ninguém me apartou da cara. Em minha defesa, as minhas ancas.

Meses antes, lembro-me de pensar que o sexo era um barco desaparecendo
no horizonte. Nada conseguia fazer senão enterrar os meus pés na areia.

Senti falta de todas as coisas que a solidão me ensinou: olhos que te seguem
quando atravessas uma sala, mãos que acham casa em ti. Ser notada. Até.

Em minha defesa, as suas mãos. Em minha defesa, os seus braços. Em minha defesa,
o modo como sentados ficávamos somente a ouvir a respiração um do outro, ele disse, isto chega.

O meu corpo era uma casa que eu fechara para o inverno. Não devia ter sido assim
tão difícil, vazia que ela estava. Ainda assim, olhei longamente antes de apagar as luzes. 

O meu corpo era um espectro que me assombrava, que aparecia quando me despia
na casa de banho, quando me enfiava em camas vazias, quando chovia. 

O meu corpo era construção abandonada, andaimes de restauração
que se tornaram permanentes. O meu corpo inacabado tornou-se o meu corpo acabado.

Pelo que, em minha defesa, quando ele me tocou as luzes do meu corpo acenderam.
Em minha defesa, as janelas abriram de par em par. Em minha defesa, primavera. 

Cristin O’Keefe Aptowicz
[Tradução de Valério Romão].

10 de julho de 2022

No terceiro filme que vejo de Mikio Naruse, uma mulher implora a um homem que parte que a leve consigo. Ele fez-lhe promessas que não cumpriu, amou outras mulheres, foi rude, foi indiferente. Recusa levá-la e ela — que já roubou, já pediu e já se deu para sobreviver — suplica-lhe, apenas dois meses, apenas um mês, depois deixo-te em paz para sempre, suplica-lhe uma e outra vez. 
Estou a imaginar esta mulher com os amigos, a família, o vizinho, o psicólogo, todos lhe dizem para o deixar, para o esquecer, para não se humilhar, todos eles, quem sabe certos, convencidos de que ele não é o que ela precisa, sequer o que ela quer, persuadidos de estarem em posse da medida justa, de certos axiomas de vida. 
Ele próprio lhe diz isso.
No plano a seguir o homem e a mulher estão juntos num comboio, adormecida, a cabeça dela pousa no ombro dele, que vigia. Ela conhece um limite que está para lá da competência, da clareza castradora, da moderação do equilíbrio e do controlo, um limite insuportável: sabe o que é necessário. De que é que ela precisa? Água, pão, saúde, ar. Por cada uma dessas coisas, ela sabe em que altura vale a pena suplicar.

Ukigumo [Floating Clouds], Mikio Naruse (1955).

23 de junho de 2022

Cientificamente me pergunto
como foi criado o meu cérebro,
que faço eu com este engano.
Finjo ter alma e pensamentos
para melhor circular entre os outros,
por vezes parece-me mesmo amar
rostos e palavras de pessoas, raras;
sendo tocada gostaria de poder tocar,
mas descubro sempre que todas as minhas emoções
dependem de um temporal que se avizinha.
 
Patrizia Cavalli

20 de junho de 2022

O A. diz-me, mal termino de o ver, que se trata de um filme do pós-guerra e é como se a explicação justificasse o meu abalo. Explodiu uma bomba, estou no meio dos destroços silenciosos e, como a mulher a quem perguntam se ainda não engravidou, estou despedaçada. Sou intrépida como a amante que decide ser mãe solteira, não tenho medo de nada. Vejo o meu corpo asilado no trauma daquela que decide abortar. O que desejamos é incomunicável.
 
 
Yama no Oto [Sound of the Mountain], Mikio Naruse, 1954.

14 de junho de 2022

No jardim, no outono, uma mulher equipada com um colete refletor varre vagarosamente folhas do chão. As folhas caem por todo o jardim e a mulher varre, folha a folha. Folha a folha, tenta fazer um monte que o vento volta a dispersar. Ela pára um minuto, fuma um cigarro enquanto conversa com os colegas apoiando-se na vassoura de plástico. Depois, com gestos muito lentos e um sorriso circunspecto, volta a varrer e a refazer o monte, recolhe folha a folha, uma folha a seguir à outra, por vezes a mesma folha várias vezes. Aplicadamente, uma mulher recolhe folhas no meio do outono, enquanto as folhas continuam a cair.

10 de junho de 2022

Nova Iorque e regresso

estava desorientada
tive medo
andei longe
namorei perigos
voltei determinada
podia contar
torres altas
ravinas escuras
ganhei coragem
namorei perigos
andei longe
tive medo
desorientada como sempre

Elfriede Gerstl

6 de abril de 2022

For all these reasons, the story doesn’t work as it should. Why, then, if it proves nothing, is this a story I persist in telling? The answer: because I don’t understand it. I don’t understand it, and I feel that the thing I don’t understand about it — indeed the mere fact of not understanding — is significant.

Rachel Cusk, On rudeness.

30 de janeiro de 2022

A minha mão de homem

 

E todos gritaremos
Viva a mão delicada
Da menina bem-criada
Que pratica a virtude.

Natalia Ginzburg, Léxico Familiar.



1.

Na abertura do terceiro episódio das Norton Lectures da Laurie Anderson, a cabeça e as mãos da artista emergem de um fundo negro. Logo depois, um outro par de mãos surge em transparência, ocupando quase todo o ecrã. Estão banhadas em sangue e, subitamente, são substituídas por uns cascos de animal.

Não me lembro do que ouvi, mas pensei que era a única pessoa no mundo capaz de compreender inteiramente o que estava a ver. Por associação, veio-me à cabeça a Primavera, uma litografia de Chagall onde um bode com uma mão direita e um casco esquerdo tenta segurar um violino ao mesmo tempo que tem uma pequena mulher sentada no ombro esquerdo. Com a boca entreaberta e o joelho esquerdo ligeiramente levantado, não se percebe se o bode está a tentar tocar o instrumento, se está apenas a segurá-lo no colo ou se acaba de o deixar cair, mas a assimetria entre a mão e o casco sugere que a transfiguração está a acontecer no preciso momento em que olhamos para ele.
Quando comecei a escrever, escrevia-se à mão. Durante mais de metade da minha vida, escrevi e desenhei através da força da mão. Não sei se por predisposição natural, se por fazer bastante força a escrever, formei calos na mão da direita muito pronunciados em dois dedos, dois dos três dedos que tocavam no lápis. A minha mão direita começou a desenvolver um músculo, como um atleta na ginástica. Já o crescimento da mão esquerda nunca foi perturbado.
Ao longo da minha infância observei, curiosa, como a minha mão direita crescia de forma desproporcional, mas achei que aquilo havia de parar. Que no futuro os meus dedos seriam longos, finos, graciosos, que seria temporário. Ao ver que o tempo passava e nada se alterava, comecei a sentir urgência em esconder as minhas mãos. Passei a enrolar os dedos agarrando com força o polegar. Ainda assim, o pulso, as costas e os nós dos dedos mantinham-se visíveis. Nunca deixava ver as pontas dos dedos onde os calos e as peles se formavam e, enroladas sobre si mesmas, as minhas mãos pareciam os cascos de um animal.
Quando usava manga comprida, escondia as mãos dentro das mangas segurando as pontas e os meus braços desembocavam numa bola. Se usava roupa com bolsos, punha as mãos nos bolsos. Também inventei uma maneira de cruzar os braços que me permitia esconder os dedos. Ao mesmo tempo, deixei de me ocupar com as mãos e passei a observar a formação de cutículas em torno das unhas, que deixava crescer demasiado, produzindo feridas que demoravam a sarar e cuja remoção era dolorosa. Não roas as peles dos dedos!, dizia a minha avó todos os dias, ao ver os meus dedos sangrar.
Constatei — muitas vezes, com desespero —, que é um desafio esconder as mãos. É quase impossível, a não ser que andemos sempre de luvas. À medida que multiplicava os estratagemas para esconder as minhas mãos, descobria que, na realidade, esconder as mãos atrai demasiado os olhares, acabando por resultar no oposto do objetivo.
Não sei quando é que a preocupação com as minhas mãos se tornou excessiva. Houve momentos em que não queria sair de casa para que ninguém as visse. Repetido de forma metódica, o hábito de enrolar os dedos tornou-se automático e uniformizou-se, diluindo-se no quotidiano.
Mas ainda que procurasse esquecê-las, a cada instante eu carregava o segredo das minhas mãos: tenho uma mão de homem e uma mão de mulher. A esquerda tem dedos finos e delicados, pele macia, leve, é bonita. A direita tem dedos grossos e tortuosidades, é crespa, pesada, compacta, como a mão de um agricultor.



2.

É um dos sonhos que recordo com mais vivacidade: as minhas mãos estão a cobrir-se de uma rede de pele morta e seca, que me transmite uma sensação de profundo conforto. Ao longo de várias noites, a meio de qualquer sonho, olho para as minhas mãos e vejo uma película fina de pele a formar-se. Como uma larva, as minhas mãos desaparecem pouco a pouco dentro de um casulo e, quando estão praticamente cobertas de branco, alguém ao meu lado repara no que está a acontecer e avisa-me. Não fico surpreendida. Sei o que está a acontecer, apesar de não saber porquê, mas não quero ser obrigada a esconder as mãos e a sua cápsula. Acho o casulo extraordinário. Forço a pessoa a olhar para o que estamos a fazer nesse momento tocando-lhe no braço mais próximo e dizendo Sim, já vi, não te preocupes e, mais tarde (É hora, penso), escondo-as cuidadosamente nos bolsos do casaco quando entro numa rua cheia de gente. Sou invadida por sentimentos contraditórios. Entre eles, surge uma sensação de bem-estar e segurança por ser capaz de proteger uma coisa tão delicada de cuja beleza todos duvidam. Pressinto que pode destruir-me, mas estou apaixonada. Sinto um prazer enorme por fazer parte do meu corpo e quero ver o que vai ser.
Noutro sonho frequente, acontece o que não podia acontecer, o que era proibido, tabu: verem as minhas mãos. Caminho na rua a pensar que não devia ter saído de casa sem arranjar as mãos. Preciso de cortar as unhas, cortar pequenas peles, cortar todas essas coisas que continuamente crescem e se desdobram a partir delas, excrescências descontroladas. Penso nisto e, de vez em quando, olho para as mãos com repulsa e vergonha, até que, subitamente, a pessoa que caminha a meu lado, também as vê. Assim que as vê, olha-me nos olhos e diz tens de arranjar as mãos. Não consigo sequer chegar a responder. Acordo.
Outro sonho surge várias vezes em diferentes momentos da vida: doem-me as mãos. Vejo que tenho umas mãos de gigante, olho para elas com nojo, mas ao mesmo tempo, gosto delas. Sinto que posso fazer tudo com elas. Só que não consigo dobrar os dedos. Custa-me mexer sobretudo o dedo médio da mão direita — o dedo onde tenho o calo maior. Custa-me segurar na faca para comer, custa-me abrir a porta, custa-me apertar os atacadores. Tenho vontade de chorar. Tenho medo. Acordo sempre como se tivesse de me salvar, de dar braçadas contra a corrente até à vigília, e sinto um enorme alívio quando acordo, por me ver devolvida ao meu corpo e às minhas pequenas mãos.
No dia seguinte a um desses sonhos, em 2014, fui ao Museu Nacional de Arte Contemporânea ver a exposição Exercício de estilo, de Sara & André, e entre as peças estava um vídeo chamado mãos, cabelos. Primeiro vi os cabelos: o topo de duas cabeças moviam-se lentamente diante de um fundo negro, os cabelos, negros e louros, tenuemente iluminados. Condicionada pelo título, imaginei as mãos ainda antes de aparecerem: dois pares de mãos erguidas, mostrando claramente os dedos, rodando sobre si para mostrar a palma e as costas. Mal pensei nesta imagem, dois pares de mãos aparecem no ecrã e, para meu choque, tocam-se. Tocam-se como se não pudessem existir separadamente e eu nem sequer tinha concebido a possibilidade de se tocarem. As imagens do sonho que tinha tido na noite anterior, entretanto esquecido, regressaram nesse momento, como memórias de um acontecimento ainda a fazer-se: um dia de sol em que procuro esconder as mãos nos bolsos do casaco a todo o custo.
Porque nem sequer me tinha ocorrido que as mãos se pudessem tocar? Porque é que na minha imaginação as separei como se não pudessem tocar-se, porventura até como se não pudessem tocar em nada? Umas mãos não são feitas para tocar, agarrar, pegar, amassar, apalpar? As mãos agem, sabem, falam. São um órgão de conhecimento que assimila o mundo através do tato e um órgão de comunicação que transmite emoções para além das palavras, incluindo o desejo sexual. As mãos pensam sobre aquilo que os olhos não veem.
Abandonei o museu com uma pergunta: o que é que não podia ser tocado?



3.

Um dia vi uma amiga roer as unhas na escola. Deslumbrada com a descoberta, comecei a roer as minhas nesse mesmo dia. Também deixei de usar qualquer instrumento de manicura, tesouras, corta-unhas, limas ou alicates, cujo contacto abominava.
A minha mãe não gostou, disse-me que ia ficar com as mãos feias. Não fiz caso. De resto, não fazer aquilo que a minha mãe achava que eu devia fazer, era exatamente aquilo que eu achava que devia fazer.
Os anos passaram. Comecei a namorar. O desejo de abandonar a cidade onde nasci motivava-me. Queria romper com o isolamento daquela pequena cidade de interior. De uma criança afável e cativante, evoluí para uma adolescente rancorosa, hostil e muda. Ganhei uma aversão a agradar e interesse em desafiar. Irritava-me facilmente, sobretudo quando me impunham deveres. Era provocadora. Troquei os vestidos pelas calças de ganga rasgadas e pelas camisas de fazenda. A biblioteca, reduto da infância, sofreu uma inundação e fechou. Não havia cinema, teatro, não podia sair da cidade. Podia ler, desenhar e ir à escola, que via como a minha tábua de salvação dali para fora, e tinha o ritual de escrever ao final do dia em cadernos A4 pretos com a ambição de relatar tudo o que via e acontecia.
A família do meu namorado era bastante religiosa e eu, que tinha frequentado um colégio de freiras durante onze anos, mas tinha, entretanto, chegado à conclusão que era ateia, queria a todo o custo transgredir esse contexto. Um dia, passeando no jardim com o meu belo namorado de cabelo comprido, encontrámos o pai dele. Era um homem que tinha frequentado o seminário e que, mesmo depois do casamento, se manteve ligado a vários projetos religiosos. Usava fato de fazenda completo e gravata, era dirigente de um partido de direita e professor de filosofia do tipo que eu não queria ter. Tinha asco a esse homem de ar bafiento e certinho, mas, se quisesse sair à noite, tinha de demonstrar bom comportamento e ser amável. Depois de o cumprimentar, deixei que falassem entre eles, percebendo que ele, como sempre que nos encontrávamos, me avaliava, examinando dissimuladamente a minha postura, as minhas roupas, as palavras que escolhia. Era um dia de sol, estávamos de férias, despreocupados e preguiçosos. Indolente, encostei-me ao meu namorado e, desejando que a conversa durasse pouco tempo e fôssemos libertados, mantive-me praticamente em silêncio. Ele também quase não falou comigo. Ao despedir-se, antes de voltar costas, olhou fixamente para as minhas mãos, depois para os meus olhos e disse: Tens de arranjar as mãos, Marta.
Escrever esta frase ainda me mortifica.



4.

À noite, por vezes, escondia a cabeça debaixo dos lençóis para observar as minhas mãos. Eram pequenas, os dedos curtos, e em cada uma das palmas havia um M perfeito desenhado. Depois eram montes e fissuras, vales e acidentes. Pensava no que existia debaixo da pele, quantos nervos, ligamentos, ossos, veias e artérias. Pensava que havia quem lesse as mãos e interrogava-me sobre que enigma detinham as minhas.
Observava a minha mão de homem e, com enorme curiosidade, interrogava-me sobre se iria continuar a crescer e a deformar-se. Achava-a hedionda. Os dedos grossos e curtos, o calo no dedo médio muito saliente e duro, o do indicador já bastante nodoso. A minha mão de mulher era pequena, tinha uma graça natural. Não fazia quase nada com a mão esquerda e ela mantinha uma espécie de inocência, de lentidão. Já a direita, carregava, escrevia, empurrava, tocava, pressionava, apertava, manipulava. Era hábil, tinha destreza, desenvoltura, avidez. A mão que eu mais queria esconder era a mão que mais usava. Por esse motivo, treinei várias vezes para ser canhota. Cheia de determinação, começava por tentar fazer as coisas mais simples com a mão esquerda, como pegar em objetos, abrir portas, lavar os dentes. No momento em que tentava escrever, desistia.



5.

Quando entrei na faculdade, já raramente pensava nas minhas mãos. O hábito de enrolar os dedos tinha-se imiscuído entre os gestos mais vulgares e já não pensava em escondê-las, escondia-as. Mesmo assim, ao longo de um dia tinha-as muitas vezes expostas aos olhares. Uma dessas situações era quando reunia com colegas para fazer trabalhos de grupo. Escrever à frente dos outros implicava não só mostrar as mãos, como assumir os calos nos dedos, nesta altura bastante pronunciados, duas protuberâncias nos dedos que seguravam a caneta, como os bolbos de algumas plantas.
Trabalhava bastante com duas raparigas da minha turma. Reuníamos em casa de alguma de nós, às vezes ao longo de vários dias para preparar uma apresentação. Eram duas mulheres fascinantes e eu estava encantada com elas. Contavam-me coisas sobre a nossa História que eu nunca tinha ouvido, falavam de poetas, reis e visionários cujos livros eu ia procurar no dia seguinte. Uma delas fazia teatro, era caótica e sugava cigarros. Eu seguia atenta os seus gestos largos, as expressões de rosto muito abertas, o raciocínio franco e meticuloso. Tinha o carro sempre desarrumado e sujo e, para mim, que tinha a mania da ordem e da limpeza, isso era admirável. Eu queria ser igualmente inteligente, bonita e desarrumada. A outra tinha uma elegância atípica. Silenciosa e aparentemente frágil, era muito magra, cruzava as pernas de uma forma que eu passei a imitar e pousava as mãos no colo, deixando os ombros descair. Por vezes segurava a cabeça com a mão, apoiando o braço na cadeira como se não estivesse sob a tensão de um prazo, mas sim entregue a um momento de lazer. Guardo num álbum uma fotografia que fiz das mãos dela.
Num desses dias de trabalho, a meio de um desvio em que falámos de corpos e beleza feminina, a minha colega do teatro para de falar entre duas passas, olha espantada para as minhas mãos, arranjadas na noite anterior, e diz-me que as devia arranjar mais vezes. Tive a tentação de esconder as mãos, como se nem a sua perfeição pudesse ser vista, mas fiz um esforço para sorrir e agradecer. Pelas janelas entrava uma intensa luz de início de verão. A sala estava agradavelmente abafada. Sem perceberem o meu desconforto, começaram a falar das suas mãos, levantando-as, exibindo-as, mostrando-as, apontando os seus pequenos defeitos e nomeando o familiar de quem tinham herdado uma ou outra característica. Falámos sobre mãos e mitologia até ser noite. Mais tarde, ao regressar a casa, percebi que, no meio do meu cansaço, havia uma ponta de tristeza. Ninguém senão eu via a minha mão de homem.



6.

Pouco tempo depois da visita à exposição de Sara & André, no final de uma tarde de inverno quase amena, debaixo de um céu negro como chumbo, ao caminhar numa rua deserta fui arrebatada nos meus devaneios por imagens do nascimento de um bebé. Vi a pele transparente e enrugada, os berros, os líquidos, o cordão e os dedos das mãos que se estendem para logo voltarem a cerrar-se. Imediatamente, a forma das suas mãos aderiu à forma das minhas, que eu fechava como um recém-nascido: enrolando os dedos em volta do polegar. Assaltou-me a sensação de ser intocada como um bebé em gestação. Nesse momento, como uma máquina que dá um salto e deixa de funcionar, uma espécie de convulsão atravessou-me o corpo.
Era estranho como, debaixo de um céu tão negro, nenhuma brisa se levantava, a temperatura era quase tépida. A alegria inicial dissipou-se e o meu corpo assumiu gradualmente uma postura mais descontraída: na realidade, a força com que estava sempre a fechar as mãos tinha desaparecido. Pensei no poder das formas que geram outras formas, a partir das quais se instauram relações que oferecem caminho à reconstrução da consciência. Nesse dia, a forma das minhas mãos começou a parecer-me mais do que uma deformidade, um enigma para ser decifrado através da linguagem.



7.

Tudo aquilo que eu escrevia era como a minha mão direita: tinha de ser escondido. Era incompreensível, por vezes cruel. Onde eu via verdade, parecia existir uma qualidade hostil.
Ninguém falava daquilo que eu sentia necessidade de escrever, ou melhor, eu escrevia sobre aquilo que ninguém à minha volta tinha vontade de falar. Mas a escrita era também imprevisível. Funcionava como um prolongamento de mim mesma. Também na escrita continuamente lidava com excrescências: entre o dito e o não dito, entre o exposto e o oculto, o claro e o obscuro, o falso e o sincero, o visível e o invisível. A escrita era como uma pele que tinha de descascar, retirar uma pele após a outra até fazer ferida. Não sabia porque escrevia. Mas tinha um profundo terror de perder essa liberdade.
A causa direta do crescimento dos meus calos era uma coisa comum a que se chamava «calos de escrita». Praticamente toda a gente tinha calos de escrita. Contudo, eu desejava ser como a minha mão esquerda — leve, graciosa, doce, sem imperfeições — e rejeitava aquilo que a minha mão direita — contorcida, disforme, sem candura — poderia revelar de mim: uma criatura onde tudo parecia ser obscuro e estar retorcido.
Como se cede ao sono e ao prazer, acabei por ir cedendo a mim própria. Hoje escrevo no computador e um dos calos da minha mão direita praticamente desapareceu. O outro suavizou-se. Na verdade, neste momento apenas eu sei que ele lá está. Quem eu sou foi deixando de estar distorcido pela culpa ou por divisões artificiais entre o interior e o exterior, o bom e o mau, o feminino e o masculino.
Cresci em conflito com tudo o que à minha volta me dizia que a vida seria mais fácil se fosse um homem. Na altura teria sido incapaz de o admitir, mas reprimir uma característica com conotação masculina, era uma forma de não participar dessa opressão.
Lentamente, assumi o orgulho que não aceitava ter na minha mão de homem, no tempo em que receava que a minha feminilidade estivesse aquém daquilo que eu achava que uma mulher devia ser: livre.



8.

Passei a contrariar o automatismo, obrigando-me a não fechar as mãos e comecei amiúde a arranjar as unhas. Ainda me apanho com frequência com os dedos a agarrar o polegar, a tentar esconder as mãos, à procura de qualquer coisa no supermercado, no cinema, ou numa caminhada solitária na cidade. Mas desapareceu a necessidade.
A minha mão esquerda continua a ser uma mão sem imperfeições, graciosa, onde às vezes uso anéis. A direita tem frequentemente arranhões e pequenos golpes, fruto do seu incessante labor.
Num impulso, há algum tempo contei a um amigo o meu segredo. Levantando as mãos abertas à altura do meu rosto, assumindo um tom de voz despreocupado para disfarçar a importância que o assunto tinha para mim, disse: "Tenho uma mão de homem e uma mão de mulher. A esquerda tem dedos finos, é leve, bonita. A direita tem dedos grossos, é compacta, como a mão de um agricultor". Ele não viu a diferença. Mas era justo pensar que a minha mão direita se parecia com a mão de um agricultor: uma mão que escava de sol a sol aquilo que não pode ser dito a falar.

 


©Isabel Cordovil, 2021.


Texto originalmente publicado na Revista Pessoa.