26 de maio de 2020
25 de maio de 2020
depois de todos recolherem, chegara a hora de limpar os destroços e organizar o dia que começaria dali a umas horas. cozinha e café arrumados, fui sentar-me a seguir debaixo do alpendre a fumar e a contemplar um céu de verão forrado de estrelas, a serra eminente e negra ao fundo, de onde por vezes chegavam vozes de animais, lobos e raposas sobretudo. era cedo, não tinha sono, mas já não tinha nada que fazer. decidi ir para o quarto ler. era a primeira vez que iria partilhar o quarto. nesse dia tinha chegado um grupo de franceses e americanos, espeleólogos e arqueólogos, para realizar uma investigação importante pela qual eu, apesar da parafernália de mapas, ferramentas e computadores distribuídos pela sala, não tinha sentido qualquer interesse. como não havia mais quartos vagos, a americana, uma mulher cheia de sardas vestida de punk, tinha ficado no meu, onde havia uma cama e um armário livres. a ideia não me agradava. nunca gostei de partilhar o meu espaço, que preservo o mais possível da presença dos outros. foi por isso com relutância que caminhei pelas salas imersas na escuridão em direção ao refúgio que já não era o meu. para minha surpresa, ao abrir a porta vi que a luz estava acesa, o que me obrigaria a confraternizar, tudo o que àquela hora me deveria recusar terminantemente a fazer. contrafeita, mas resignada, percorri o pequeno corredor que me levava ao interior do quarto e deparei-me com ela.
ela era uma jovem mulher de tez muito branca e cabelos ruivos caídos como uma cascata pela beira da cama, de onde pendia também um braço onde não restava espaço para mais uma cicatriz. tinha-se ferido tantas vezes que era impossível distinguir a pele dos cortes. dormia serenamente, embora quase a cair da cama e de luz acesa. imprudente, sentei-me na cama ao lado a observar a sua respiração lenta e grave, a extrema alvura da sua pele como um rio de leite ao lado de um céu de fogo. sentada à beira da cama, fui incapaz de pegar no livro e deixei-me ficar em adoração, como se fosse uma santa.
ela era uma jovem mulher de tez muito branca e cabelos ruivos caídos como uma cascata pela beira da cama, de onde pendia também um braço onde não restava espaço para mais uma cicatriz. tinha-se ferido tantas vezes que era impossível distinguir a pele dos cortes. dormia serenamente, embora quase a cair da cama e de luz acesa. imprudente, sentei-me na cama ao lado a observar a sua respiração lenta e grave, a extrema alvura da sua pele como um rio de leite ao lado de um céu de fogo. sentada à beira da cama, fui incapaz de pegar no livro e deixei-me ficar em adoração, como se fosse uma santa.
O
mais grave era não ter opiniões. Via os objetos à sua volta e percebia
tudo o que a rodeava, mas não era capaz de formar qualquer opinião e
não sabia do que falar. Ora, é horrível não se ter opinião! Vemos, por
exemplo, uma garrafa, ou está a chover, ou passa um mujique na carroça,
mas por que está aqui a garrafa, ou a chuva, ou o mujique, qual o seu
sentido — isso não somos capazes de dizer, nem que nos paguem mil
rublos.
Anton Tchekov, O meu anjinho.
Anton Tchekov, O meu anjinho.
22 de maio de 2020
passaram quarenta dias desde a Páscoa. noutros tempos, hoje seria o dia mais santo do ano, dia de festa sagrado em que o trabalho era completamente posto de parte, havia até quem preparasse as refeições de véspera. chamam-lhe o dia da espiga ou dia da hora, porque há uma hora — o meio-dia — em que tudo para. é a hora do sol mais inclemente, hora sem sombras. Nietzsche dizia que só devíamos poder rir ao meio-dia. chamavam-lhe simplesmente a Hora, tempo mágico em que tudo se detém e tudo se inicia, a água não corre no rio, os pássaros não bolem no ninho, o pão não leveda, o leite não coalha. quando
eu era pequena as pessoas invadiam os campos a cantar e colhiam as plantas para fazer o ramo. no meio de searas a perder de vista, campos cultivados, montado de sobreiros, azinheiras, figueiras e olival com azeitona a formar-se, a minha avó ensinou-nos como arrancar as plantas mais resistentes. por toda a parte havia papoilas, malmequeres, flores roxas, urzes, estevas, giestas. a espiga era formada por
espigas de cereais, margaridas, papoilas, galhos de oliveira e pendurada atrás da porta até ao ano seguinte. em dias de trovoada, tirava-se um pouco para queimar no fogo da lareira e afastar a tempestade. cada planta colhida tinha um significado simbólico: a espiga para o pão, o malmequer para a fortuna (amarelos para o ouro, brancos para a prata), a papoila para o amor, a oliveira para a paz, o alecrim para a saúde e a videira para a alegria. pelo caminho, as
cegonhas vigiavam nos seus ninhos empoleirados nos postes de
alta-tensão. o calor apertava, o gado e os pastores dormiam a sesta. os pássaros escondiam-se nas sombras, cucos, melros, tordos, por vezes andorinhas, passavam rasantes. o coro dos grilos e a melopeia dormente das cigarras acompanhavam-nos, havia no ar um cheiro adocicado de pólens e abelhas. finalmente, era quase verão. chegados a casa, atava-se cuidadosamente o ramo com uma guita e pendurava-se atrás da porta de entrada até à próxima Hora, para favorecer um ano de abundância, paz e felicidade.
20 de maio de 2020
19 de maio de 2020
A
arte de viver é a capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa
com aquilo que nos escapa. (...). Enquanto, todavia, os homens refletem
há séculos sobre como devem conservar, melhorar e tornar mais seguros os
seus conhecimentos, faltam-nos até mesmo os princípios elementares de
uma arte da ignorância.
Giorgio Agamben
Giorgio Agamben
16 de maio de 2020
Coisas sobre a morte da minha avó Miquelina:
O Sr. Martins subir até à mortuária num passo muito lento e chorar agarrado a mim. Não por não se lembrar de mim (não se lembrava), mas porque também a sua vida está a chegar ao fim. Algo de amargura nos seus olhos, uns olhos de criança.
Nunca consegui suportar o toque das mãos frias dos mortos. Mas não foi assim com as mãos da minha avó. Talvez porque apesar de inertes, lembrava o seu calor.
Não querer que ninguém me desse os sentimentos.
O Sr. Martins subir até à mortuária num passo muito lento e chorar agarrado a mim. Não por não se lembrar de mim (não se lembrava), mas porque também a sua vida está a chegar ao fim. Algo de amargura nos seus olhos, uns olhos de criança.
Nunca consegui suportar o toque das mãos frias dos mortos. Mas não foi assim com as mãos da minha avó. Talvez porque apesar de inertes, lembrava o seu calor.
Não querer que ninguém me desse os sentimentos.
repetir uma canção para observar melhor um terreno feito para acidentes.
I want to hold the hand inside you
I want to take the breath that's true
I look to you and I see nothing
I look to you to see the truth
I want to take the breath that's true
I look to you and I see nothing
I look to you to see the truth
You live your life, you go in shadows
You'll come apart and you'll go black
Some kind of night into your darkness
Colours your eyes with what's not there
You'll come apart and you'll go black
Some kind of night into your darkness
Colours your eyes with what's not there
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
A stranger's light comes on slowly
A stranger's heart without a home
You put your hands into your head
And then smiles cover your heart
A stranger's heart without a home
You put your hands into your head
And then smiles cover your heart
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
Fade into you
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
Strange you never knew
Fade into you
I think it's strange you never knew
I think it's strange you never knew
13 de maio de 2020
11 de maio de 2020
Não conto os dias do meu confinamento. Naquele dia, estava eu
sozinha no escritório, decidi ir para casa e dizer às minhas colegas
para trabalharmos a partir de casa. Nada de novo para mim, que já o fiz
tantas vezes. Foi como se a humanidade tivesse subitamente sido obrigada
a viver de acordo com os introvertidos, quando antes éramos nós que
tínhamos de fazer constantemente o esforço de adaptação. É difícil viver
num mundo onde não quero fazer aquilo que a maioria quer fazer. Sair
sim, mas só às vezes, estar com pessoas sim, mas de preferência que
possa observá-las e ouvi-las bem, ter silêncio, ter tempo. Não sou
tímida, mas vivo num mundo introspetivo e tenho tendência a desejar mais
a solidão total ou a companhia de apenas uma pessoa. Gosto mais de
escrever do que de falar, odeio conversa fiada e gosto mais de dar
passeios num jardim pequeno e vazio do que num grande e apinhado de
gente. A solidão permite-me ampliar a minha imaginação, sentir que tudo é
possível, e penso que a maioria dos encontros, sobretudo os de
trabalho, exigem um gasto supérfluo de energia. A minha casa é na
verdade o centro da minha vida. Um amigo disse-me com certa admiração,
quando entrou nela pela primeira vez, como tinha construído a casa onde
vivo para a escrita.
*
Esta semana li uma entrevista à Adília Lopes onde se vê uma fotografia de uma casa, supostamente a dela, com as paredes escritas. Essa coincidência fez-me sorrir. Nunca pensei ter alguma coisa em comum com a Adília Lopes, escritora de uma enorme assertividade e sintetismo, mas também eu, desde que vivo sozinha, escrevo nas paredes. Não faço tatuagens, mas as paredes de minha casa são como a minha pele tatuada. Nem tudo o que aí escrevo tem, contudo, um poder performativo. Por vezes faço listas, de música por exemplo, a última. Listas de receitas para ter à mão (detesto ir ao supermercado). Listas de livros que quero ler. Escrevo e eventualmente apago, quando já não me serve. Todavia, três linhas acompanham-me há já muitas casas. Em maiúsculas, um dia, depois de um sonho transformador, escrevi numa parede branca
NEM DEVER
NEM CULPA
NEM NECESSIDADE
Nunca revelei a ninguém o seu sentido, coisa que quero fazer hoje: é, para mim, o segredo do amor.
7 de maio de 2020
Tenho uma enorme dificuldade em descrever um rosto. A cada tentativa saio frustrada, tendo escrito pouco ou nada. Mesmo esse pouco, arrancado com sorte e a ferros, nada revela sobre aquele rosto em particular, nem sobre as suas milimétricas manifestações. Não estou bem de outra maneira senão a escrever e, no entanto, não sou prolixa, eis a grande contradição da minha vida. Pelo contrário, em A Contraluz, Rachel Cusk tem descrições de rostos admiráveis, com adjetivos e metáforas de toda a espécie:
"Há qualquer coisa de personagem de desenho animado na cara de Paniotis: tudo nela é exagerado, as maçãs do rosto são muito magras, a testa muito alta, as sobrancelhas projetando-se como pontos de exclamação, o cabelo voando em todas as direções, e por isso, quando olhamos para ele, temos a sensação curiosa de estarmos a olhar para uma ilustração do Paniotis e não para o próprio Paniotis. Mesmo quando está descontraído, ostenta a expressão de alguém a quem acabaram de contar alguma coisa extraordinária, ou de alguém que abriu uma porta e ficou muito surpreendido com aquilo que viu à sua frente. Os olhos, emoldurados pelo ricto desta expressão, são irrequietos e voláteis e muitas vezes ficam dramaticamente protuberantes, como se algum dia pudessem voar, abandonando de vez o seu rosto, perplexos com aquilo que testemunharam."
Há nestas descrições a frieza de quem os imagina, de quem os trabalha, de quem tem a capacidade de criar um mundo. Eu, que tenho a insignificante ambição de descrever este mundo, debato-me com a falta de memória e com os afetos que perturbam a emissão de sinal. A regra, porém, é a mesma: trabalhar, trabalhar, trabalhar. A realidade também é imaginada.
"Há qualquer coisa de personagem de desenho animado na cara de Paniotis: tudo nela é exagerado, as maçãs do rosto são muito magras, a testa muito alta, as sobrancelhas projetando-se como pontos de exclamação, o cabelo voando em todas as direções, e por isso, quando olhamos para ele, temos a sensação curiosa de estarmos a olhar para uma ilustração do Paniotis e não para o próprio Paniotis. Mesmo quando está descontraído, ostenta a expressão de alguém a quem acabaram de contar alguma coisa extraordinária, ou de alguém que abriu uma porta e ficou muito surpreendido com aquilo que viu à sua frente. Os olhos, emoldurados pelo ricto desta expressão, são irrequietos e voláteis e muitas vezes ficam dramaticamente protuberantes, como se algum dia pudessem voar, abandonando de vez o seu rosto, perplexos com aquilo que testemunharam."
Há nestas descrições a frieza de quem os imagina, de quem os trabalha, de quem tem a capacidade de criar um mundo. Eu, que tenho a insignificante ambição de descrever este mundo, debato-me com a falta de memória e com os afetos que perturbam a emissão de sinal. A regra, porém, é a mesma: trabalhar, trabalhar, trabalhar. A realidade também é imaginada.
3 de maio de 2020
A maioria das minhas amigas é casada e tem filhos. Durante a quarentena, todas se queixaram de ter
demasiadas coisas para fazer e não estar a conseguir dar conta. Cuidar
da casa (limpar, arrumar, organizar), dos filhos (tratar da roupa, da escola,
imaginar atividades de recreio e exercício), cozinhar (pensar em
receitas, ir às compras, preparar a comida) e, enfim, estar em
teletrabalho. Ingénua sobre esta realidade do que é estar em casal,
pergunto «E ele?», mas invariavelmente a resposta é incompreensível:
«Ele está a trabalhar». Nunca me armei em defensora,
porque nenhuma delas precisa de defesa. São todas mulheres altamente
instruídas, competentes, inteligentes, criativas e empáticas. Porque não
agem? Como chegámos até aqui? Em relação ou não, pobres ou
ricas, instruídas ou ignorantes, com ou sem filhos, rebeldes ou
submissas, vivemos todas num mundo marcado pela dominação masculina e enfrentamos quotidianamente a necessidade de reclamar o nosso lugar. O que
temos de mudar? Como vamos mudar? Não sei responder.
No primeiro ano do meu casamento, o meu marido, um ativista francês, foi deixando aos poucos de lavar a loiça, aspirar a casa e cozinhar. Também queria ser sempre ele a conduzir e, muito embora eu já fosse estudante quando casámos, passou a achar mal que eu estivesse a estudar. Ao longo de algumas semanas observei-o com curiosidade, para ver até onde iria. Depois, um dia, também deixei de fazer tudo. Durante meses a fio, com a casa num caos, passámos cada um a lavar a sua roupa e a jantar fora, altura em que ele procurava convencer-me que, por razões de trabalho, não tinha tempo para se ocupar daquelas coisas e que, portanto, como estava mais tempo em casa, eu tinha de o fazer. Foram conversas extraordinárias, em que eu não cedi uma única vez. Então, eventualmente, e de forma muito discreta, ele quebrou. De costas para mim, disse que ia passar uma camisa e perguntou-me se eu queria que ele passasse alguma coisa minha. Nesse momento, ainda pensei se havia de ceder ou vingar-me de séculos de sujeição. Um pouco contrafeita, agradeci e eventualmente tive de voltar a lavar a loiça. Ficou-me todavia esta memória, de que me sirvo muitas vezes, embora não sirva de nada às minhas amigas que têm de salvar tanta coisa do naufrágio e também de ensinar a nadar. No trabalho e em casa, temos muito confronto a fazer, vivemos de acordo com códigos que não nos pertencem e cumprimos papéis moldados para a felicidade dos homens. Como diria Elena Ferrante, escritora e feminista que admiro, a segurança da paz e do silêncio sufoca-nos.
No primeiro ano do meu casamento, o meu marido, um ativista francês, foi deixando aos poucos de lavar a loiça, aspirar a casa e cozinhar. Também queria ser sempre ele a conduzir e, muito embora eu já fosse estudante quando casámos, passou a achar mal que eu estivesse a estudar. Ao longo de algumas semanas observei-o com curiosidade, para ver até onde iria. Depois, um dia, também deixei de fazer tudo. Durante meses a fio, com a casa num caos, passámos cada um a lavar a sua roupa e a jantar fora, altura em que ele procurava convencer-me que, por razões de trabalho, não tinha tempo para se ocupar daquelas coisas e que, portanto, como estava mais tempo em casa, eu tinha de o fazer. Foram conversas extraordinárias, em que eu não cedi uma única vez. Então, eventualmente, e de forma muito discreta, ele quebrou. De costas para mim, disse que ia passar uma camisa e perguntou-me se eu queria que ele passasse alguma coisa minha. Nesse momento, ainda pensei se havia de ceder ou vingar-me de séculos de sujeição. Um pouco contrafeita, agradeci e eventualmente tive de voltar a lavar a loiça. Ficou-me todavia esta memória, de que me sirvo muitas vezes, embora não sirva de nada às minhas amigas que têm de salvar tanta coisa do naufrágio e também de ensinar a nadar. No trabalho e em casa, temos muito confronto a fazer, vivemos de acordo com códigos que não nos pertencem e cumprimos papéis moldados para a felicidade dos homens. Como diria Elena Ferrante, escritora e feminista que admiro, a segurança da paz e do silêncio sufoca-nos.
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