22 de maio de 2020
passaram quarenta dias desde a Páscoa. noutros tempos, hoje seria o dia mais santo do ano, dia de festa sagrado em que o trabalho era completamente posto de parte, havia até quem preparasse as refeições de véspera. chamam-lhe o dia da espiga ou dia da hora, porque há uma hora — o meio-dia — em que tudo para. é a hora do sol mais inclemente, hora sem sombras. Nietzsche dizia que só devíamos poder rir ao meio-dia. chamavam-lhe simplesmente a Hora, tempo mágico em que tudo se detém e tudo se inicia, a água não corre no rio, os pássaros não bolem no ninho, o pão não leveda, o leite não coalha. quando
eu era pequena as pessoas invadiam os campos a cantar e colhiam as plantas para fazer o ramo. no meio de searas a perder de vista, campos cultivados, montado de sobreiros, azinheiras, figueiras e olival com azeitona a formar-se, a minha avó ensinou-nos como arrancar as plantas mais resistentes. por toda a parte havia papoilas, malmequeres, flores roxas, urzes, estevas, giestas. a espiga era formada por
espigas de cereais, margaridas, papoilas, galhos de oliveira e pendurada atrás da porta até ao ano seguinte. em dias de trovoada, tirava-se um pouco para queimar no fogo da lareira e afastar a tempestade. cada planta colhida tinha um significado simbólico: a espiga para o pão, o malmequer para a fortuna (amarelos para o ouro, brancos para a prata), a papoila para o amor, a oliveira para a paz, o alecrim para a saúde e a videira para a alegria. pelo caminho, as
cegonhas vigiavam nos seus ninhos empoleirados nos postes de
alta-tensão. o calor apertava, o gado e os pastores dormiam a sesta. os pássaros escondiam-se nas sombras, cucos, melros, tordos, por vezes andorinhas, passavam rasantes. o coro dos grilos e a melopeia dormente das cigarras acompanhavam-nos, havia no ar um cheiro adocicado de pólens e abelhas. finalmente, era quase verão. chegados a casa, atava-se cuidadosamente o ramo com uma guita e pendurava-se atrás da porta de entrada até à próxima Hora, para favorecer um ano de abundância, paz e felicidade.