crianças pintam ovos
uma migração de pássaros
alegria para os olhos
10 de abril de 2020
Das Mädchen:
Vorüber! Ach, vorüber!
Vorüber! Ach, vorüber!
Geh, wilder Knochenmann!
Ich bin noch jung! Geh, lieber,
Und rühre mich nicht an.
Und rühre mich nicht an.
Der Tod:
Gib deine Hand, du schön und zart Gebild!
Bin Freund, und komme nicht, zu strafen.
Sei gutes Muts! ich bin nicht wild,
Sollst sanft in meinen Armen schlafen!
A Donzela:
Vá embora! Ah, vá embora!
Vá, feroz homem de ossos!
Eu ainda sou jovem! Vá, de preferência,
E não me toque.
E não me toque.
A Morte:
Dê-me a sua mão, bela e delicada forma!
Sou amigo, e não venho para punir.
Tenha bom ânimo! Eu não sou feroz,
Tranquilamente dormirás em meus braços!
Franz Schubert, Der Tod und das Mädchen [A Morte e a Donzela], Opus 7, Nº 3
(fevereiro de 1817, publicada em Viena em novembro de 1821), texto do
poeta alemão Matthias Claudius.
A vida é como um manto em que se arrastam todas as fúrias e ternuras
do mundo, e que deixa ficar por toda a parte alguma coisa do seu calor e
do seu peso. O manto estende-se e envolve-se, descobre e oculta,
agasalha e expõe ao frio; o manto é de farrapos imensos onde se embalou a
morte. Desdobra-se, e parece mesquinha urdidura; chega-se aos olhos e a
sua cor apaga-se, atira-se no vento e ele cobre os astros inteiramente.
Todos transportam o manto nos seus ombros e o levantam à altura do
coração, e deixam que ele caia no pó e o perdem nos caminhos onde acaba a
história do homem. (...). Não se lê nem se escreve o manto; não se pensa
nem se move sequer. Mas todos os descontentamentos ele protege, todas
as ignorâncias ele vence, todas as solidões ele inspira e transfigura.
Agustina Bessa-Luís, O Manto (inédito).
Agustina Bessa-Luís, O Manto (inédito).
um ruído consolador chocou contra ele, radioso como um risco que se aceita sem pensar muito. observou distraidamente o delírio da morte nos escaparates dos jornais. o ruído demorava a desaparecer. pensou, não se sabe porquê, que naquele instante dez anos tinham passado. contou-os um a um, como segundos a cair e enquanto isso tudo mudou. que disparate, pensou. e ainda assim, quase em simultâneo, pensou também que imperfeição divina estaria guardada nos circuitos do cérebro humano que tornasse possível aquele acontecimento. um sentimento invasor e oscilante, pesado, apoderou-se dele e a custo conseguiu reprimi-lo. em seu lugar, viu-se obrigado a reconstruir a vida.
O coração dos homens
I
Quando pequena, fui o espelho numa encenação de Branca de Neve e os sete anões.
A peça era toda falada em inglês.
E o público, crianças monoglotas da pré-escola.
Tínhamos dez anos e mal falávamos inglês.
Aliás, mal falávamos português.
Havia um colega que dizia “largatixa” em vez de “lagartixa”.
Ele nunca adoçava o suco de uva com açúcar mascavo.
Ouvia “mascado”
e tinha nojo.
Este meu colega também sofria de incontinência urinária
e não tinha os mamilos:
em seu abdômen, só havia o umbigo.
Para nos assustar, ele levantava a camiseta
e corria atrás de nós mostrando o branco dos olhos.
Tínhamos muito medo dele.
Não lembro qual foi seu papel na peça.
Lembro quem foi o Príncipe
e lembro quem foi a Branca de Neve.
A Branca de Neve tinha alergia a lã.
Só usava roupa de tecido sintético,
especialmente um casaco azul e amarelo de náilon.
Em seus aniversários, se os colegas não levavam presentes,
ela não tinha pudores: impedia-os de entrar na festinha
e anotava os nomes dos relapsos numa caderneta cor-de-rosa.
O Príncipe era filho da professora da primeira série.
Ele se tinha em altíssima conta
e todas as meninas queriam namorar com ele.
(Menos eu.
Eu era apaixonada por outro colega:
um menino moreno, brincalhão, que morreu de leucemia aos onze anos.)
Mas não lembro mesmo o papel do meu colega sem mamilos.
Talvez tenha sido um dos sete anões,
embora eu não lembre também quem foram os outros seis.
Eu era o espelho.
Minha melhor amiga era a madrasta.
Quando a madrasta se transformava em bruxa, aí já era outra pessoa.
Também não lembro quem fazia a madrasta quando esta se transformava em bruxa.
Mas lembro que ela dizia:
“This is the poisoned apple”.
Depois, ela devia gargalhar,
muito e alto,
como bruxa de desenho animado.
Mas a menina que fazia o papel não sabia rir,
menos ainda gargalhar.
Foi outra colega que lhe ensinou.
O aprendizado se deu no banheiro, transformado em camarim.
Do lado de fora, só se ouviam as gargalhadas das duas meninas.
Ninguém mais escutava o que se dizia no palco.
A professora de inglês se irritou com a barulheira.
Interrompeu a encenação
e entrou no banheiro de vassoura em punho.
Ela queria bater nas meninas,
mas o diretor da escola a impediu.
E ela, de raiva, mordeu o lábio até sangrar.
Lembro que todos passaram dias envolvidos com a confecção do figurino
e com a elaboração da maquiagem
e com a escolha dos adereços que comporiam seus personagens.
Mas eu não,
porque eu era o espelho,
e o espelho seria um espelho de verdade.
Eu ficaria atrás do espelho.
Um espelho grande, de pé, antigo,
com moldura de madeira.
Pouco importava a roupa que usaria,
quase nada de mim apareceria na peça.
Subiria ao palco com o uniforme cinza e vermelho da escola.
Lembro que a madrasta e a bruxa usavam o mesmo vestido.
Na hora da transformação, o zíper do vestido trancou,
e a bruxa demorou quinze minutos para entrar em cena.
Sem saber o que fazer, a Branca de Neve deu uma de Gata Borralheira:
varreu e tirou o pó de todos os cantos da casa dos anões.
E as crianças, que já não estavam entendendo nada, entenderam menos ainda.
Lembro também que a madrasta perguntava ao espelho logo no início da peça:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.
E o espelho respondia:
“Her lips are like blood, her hair is like night,
her skin is like snow, her name’s Snow White”.
Algum tempo depois, inconformada, a madrasta procurava novamente o espelho:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.
E o espelho entregava o paradeiro da Branca de Neve:
“She is with the seven dwarfs. She will spend the night.
She is the fairest, and her name’s Snow White”.
Essas eram minhas duas falas.
Todos tinham que recitar pelo menos uma frase.
A idéia era que a turma inteira exibisse seu inglês capenga.
O problema era que não havia papel para todo mundo.
A entourage da Branca de Neve não era tão grande assim,
e nós éramos trinta e cinco na turma.
A solução: povoar a floresta.
Tinha de tudo entre a casa da madrasta e a casa dos anões.
De coruja a mendigo.
Teve até gente que foi árvore,
gente que foi banquinho de madeira.
(E a professora cogitou aumentar o número de anões.)
E todos falavam.
Falavam mal.
Mas falavam.
Na falta do que falar, delatavam a Branca de Neve.
Apontavam a casa dos anões e sussurravam à bruxa:
“She is there”.
Em geral, nosso inglês era incompreensível.
A Branca de Neve, por exemplo, nunca achava nada,
ela sempre afundava.
Ao colocar os anões para dormir, ela os cobria com merda,
em vez de lençóis.
E, ao fim da peça, o Príncipe convidava todos para a festa de suas vinte orelhas.
Os monoglotas da pré-escola não perceberam os erros de inglês.
(Afinal, eram monoglotas.)
Logo se entediaram.
Alguns bocejavam.
Outros cabeceavam.
Os mais debochados riam e cochichavam nos ouvidos uns dos outros.
Não demorou muito para começarem a jogar coisas na gente.
Primeiro, foram chicletes e bolas de papel.
Depois, lápis e gizes de cera.
A situação se tornou mais crítica quando passaram a cuspir.
Corriam como boçais para a beira do palco improvisado
e soltavam catarrões verdes e grudentos naqueles que se achavam ao alcance.
A Branca de Neve levou um catarrão na testa e ameaçou chorar.
Os anões riram às pampas.
E a bruxa arremessou sua cesta de maçãs nos monoglotas.
Alguns foram atingidos.
Outros, não.
E os debochados nos mostraram a língua.
As professoras da pré-escola se enfureceram:
queriam acabar com a peça
e mandar a bruxa para o castigo.
A professora de inglês não se abalou.
Virou-se para nós e disse com um exagerado acento britânico:
“The show must go on”.
Foi aí que menstruei.
Era minha primeira vez.
Ninguém notou.
Eu ficava atrás do espelho.
Ninguém me via.
Só me ouviam (e olhe lá).
Eu também não via ninguém.
Meu horizonte era o verso do espelho:
uma grande moldura de madeira mofada.
Nos ensaios, a idéia era que meu rosto fosse visto acima do espelho.
Mas a professora não gostou do resultado
e tirou minha cabeça de cena.
Na apresentação final, apenas oito dos meus dedos apareciam na peça.
Mesmo assim, só as pontinhas.
Os dedões, como o resto de mim, ficavam escondidos.
Todos viam o espelho,
e o espelho refletia todos −
menos a mim.
Por isso, ninguém percebeu quando menstruei.
Nem eu mesma.
Achava que tinha me mijado.
Comecei a exalar um cheiro diferente.
Um cheiro desconhecido.
Um cheiro que me lembrava podridão.
O mijo tem cheiro forte.
O sangue tem cheiro forte.
Mas o cheiro do sangue não é como o cheiro do mijo.
O sangue tem um cheiro adocicado.
Um cheiro persistente.
Um cheiro de morte.
O mijo tem um cheiro ácido.
Um cheiro passageiro.
Um cheiro de rodoviária.
Senti minhas calcinhas se ensoparem.
Não podia ser mijo.
Não cheirava como mijo.
Também não era tão líquido como o mijo.
Era mais visguento.
E eu não sentira vontade de ir ao banheiro.
Fiquei agoniada.
A peça não terminava nunca,
e as minhas calcinhas estavam cada vez mais molhadas.
Embora ninguém me visse, senti vergonha.
Eu devia estar vermelha,
como sangue.
Desde então, quando menstruo, o sangue desce feito cascata.
Se não troco seguidas vezes o absorvente, escorre pelas pernas
e forma poças dentro das minhas sapatilhas brancas de plástico.
(Uma amiga da minha mãe menstruou em pleno carnaval
e não percebeu:
suas pernas se tingiram de vermelho.)
Imagino que a menstruação excessiva se deva à ovulação igualmente excessiva.
Ou não.
Não sei.
(Minha melhor amiga um dia me disse:
“Eu ovulo muito.
Se gozarem nas minhas coxas, engravido”.)
As meninas do colégio me apelidaram de A Sanguinária.
Por causa da menstruação.
Mas não só.
Um dia, os meninos me pediram um absorvente usado.
Eu lhes dei,
e eles o colocaram na maçaneta da sala de aula.
A professora apertou aquele camundongo morto
e ficou com a mão suja de sangue.
Era a mesma professora de inglês.
Quando menstruei pela segunda vez, estava em outra apresentação.
Também na escola.
Mas agora sem o espelho.
A imigração era o tema.
Com comidas típicas,
roupas típicas,
músicas típicas,
danças típicas
e suco de uva.
A turma havia sido dividida em duas:
italianos de um lado,
alemães de outro.
Os morenos eram italianos.
Os loiros, alemães.
E a professora de história não sabia o que fazer com nossa única colega negra.
(Ela acabou do lado dos alemães.
Não por ironia.
Mas porque havia mais morenos do que loiros na turma.)
Eu fiquei do lado alemão,
porque, além de loira, tenho olhos azuis.
Mas queria ter ficado do lado italiano.
Não gosto de chucrute,
detesto cuca
e salsicha não é meu prato preferido.
Queria comer massa,
polenta
e galeto.
Todos tinham que levar um prato típico.
Um prato que a professora de história considerasse típico.
Porque nem todos os pratos eram de fato típicos.
Eu não sabia o que levar.
Minha mãe também não.
Ela nunca gostou de cozinhar.
Uma vez, ela trocou o creme de leite por leite condensado no estrogonofe.
Meu pai lavou tira por tira de filé mignon numa tentativa inútil de salvar o prato.
Acabaram dando tudo à cocker, que latia, na sacada, desgostosa com a comida.
Quando tinha festa na escola, minha mãe fazia sanduíches de presunto e queijo.
Ninguém gostava,
e eu comia todos para que ela não desconfiasse.
Daquela vez, ela teve a idéia de pedir a meu avô para preparar uma polenta.
Meu avô era filho de italiano
e fora criado por sua avó, italiana de Vicenza.
Ele fez uma de suas maravilhosas polentas rústicas,
toda recoberta com molho de tomate cozido durante horas
e enfeitada com lascas de parmesão e folhas de manjericão fresco.
Só tinha um senão: não era nada alemã.
Para minha mãe, não havia problema.
Ninguém iria notar.
Mas a professora de história notou
e teve um chilique.
Falou em jogar tudo fora e me suspender da atividade.
Comecei a chorar.
Torrencialmente.
Não sei de onde vinham tantas lágrimas.
Soluçava alto.
Dizia que me arrependia amargamente
de ter levado a polenta rústica.
Caí de joelhos no chão
e perguntava, repetidas vezes,
com os braços erguidos:
“Por que não fizeram salsicha bock para eu trazer?
Por que não lingüiça?
Por que não chucrute?”
A professora de história pedia que eu me acalmasse.
Nada aconteceria comigo.
Ela me prometia.
E buscava conter sua impaciência
batendo com força sua plataforma de cortiça
no assoalho de madeira do hall do colégio.
Sequei as lágrimas com as costas das mãos,
lambi o ranho que escorria do nariz
e funguei.
Se não havia castigo,
estava tudo bem.
E perdoei mais uma vez em segredo a total falta de noção da minha mãe.
Chegara a hora das danças.
Toda a turma estava dividida em pares.
Em geral, meninos com meninas.
No entanto, nunca sobravam meninos para fazer par comigo.
Sempre fui uma das mais altas da turma.
E os meninos, nesta idade, continuavam tampinhas.
Acabava sendo obrigada a dançar com uma menina −
invariavelmente, uma varapau como eu
(naquela época, também me chamavam Poste).
Na apresentação organizada pela professora de história,
os italianos dançavam tarantela,
os alemães se vestiam de tiroleses (que, descobri depois, nem alemães eram).
Mas nem a tarantela nem as vestes tirolesas
eram típicas dos imigrantes que foram para o Sul.
A professora de história tinha uma versão muito particular da história.
Eu vestia camisa branca sob uma jardineira verde, curta e rodada.
Duas grossas tranças circundavam minha cabeça,
e meias brancas subiam até meu joelho.
Os meninos alemães estavam de bermudão verde com suspensório.
Por baixo, usavam uma camisa branca,
e meias brancas também subiam até seus joelhos.
Os meninos italianos vestiam um bermudão preto com uma faixa vermelha na cintura.
A camisa era branca, mas parcialmente escondida por um colete preto.
Nos pés, as indefectíveis meias brancas até os joelhos.
As meninas italianas trajavam saias vermelhas, compridas e rodadas.
Suas camisas também eram brancas,
e as horrendas meias brancas até os joelhos eram tapadas pelas longas saias.
Os italianos agitavam pandeiros com fitas coloridas.
Os alemães, nada.
No máximo, acarinhavam seus suspensórios.
Queria muito estar do outro lado.
A comida era melhor
e parecia ser mais divertido.
A tarantela era alegre e agitada.
A dança que inventaram para nós lembrava um minueto fúnebre.
Aliás, nunca soube de nenhuma dança parecida no folclore germânico.
Saltinho para cá,
saltinho para lá,
menstruei.
O sangue desceu como uma avalanche.
Não demorou para chegar aos joelhos.
Quando o vi se aproximar das malditas meias brancas, não titubeei:
corri até a mesa das comidas,
saltei e sentei na polenta rústica do meu avô.
O vermelho do molho se misturou ao vermelho do sangue.
Ninguém, de novo, percebeu que eu menstruara.
Mas fui suspensa por uma semana.
Desde então, peguei horror a ser mulher.
Na vigésima vez que menstruei, era Semana da Inversão:
professores se tornavam alunos,
alunos se tornavam professores.
Eu e minha melhor amiga escolhemos dar aula de religião.
Queríamos ver todo mundo se ajoelhando e rezando.
Estávamos nos divertindo com a idéia.
Levamos a turma em procissão até a sala que escolhemos para as rezas.
Eu carregava nos braços, junto ao peito, a Santa da minha mãe.
(Ela nem desconfiava que a seqüestráramos.)
Todos tinham que se ajoelhar no chão duro e gelado
e entoar cinco pai-nossos, quatro ave-marias e dois credos.
E, depois, deviam ler, em uníssono, este trecho da Bíblia:
“Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue
e que seja fluxo de sangue do seu corpo,
permanecerá durante sete dias na impureza das suas regras.
Quem a tocar ficará impuro até a tarde.
Toda cama sobre a qual se deitar com o seu fluxo ficará impura,
todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro.
Todo aquele que tocar seu leito deverá lavar suas vestes,
banhar-se em água
e ficará impuro até a tarde.
Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.
Se algum objeto se encontrar sobre o leito
ou sobre o móvel no qual ela está assentada,
aquele que o tocar ficará impuro até a tarde.
Se um homem coabitar com ela, a impureza das suas regras o atingirá.
Ficará impuro durante sete dias.
Todo leito sobre o qual ele se deitar ficará impuro.
Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue de diversos dias,
fora do tempo das suas regras, ou se as suas regras se prolongarem,
estará no mesmo estado de impureza em que esteve durante o tempo das suas regras.
Assim será para todo leito sobre o qual ela se deitar,
durante todo o tempo de seu fluxo,
como o foi para o leito em que se deitou quando das suas regras.
Todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro, como quando das suas regras.
Quem os tocar ficará impuro, deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.
Quando estiver curada de seu fluxo,
contará sete dias,
e então estará pura.”
“No oitavo dia –”
“Basta!”, interrompeu o professor de religião.
“Vocês estão pensando o quê?”
Sem esperar resposta, ele nos pegou pelo braço
e nos arrastou até a sala do diretor.
(Isso que nem havíamos lido a parte da gonorréia.)
No caminho, menstruei.
O professor e o diretor falavam falavam falavam
e eu nem prestava atenção.
Ao levantar da cadeira, percebi que havia se formado uma pequena poça.
Uma poça vermelha.
Uma poça de sangue.
Olhei, cabisbaixa, para os dois.
Eles olharam para a cadeira e, em seguida, para mim.
E eu disse:
“Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.”
II
Uma vez, a mancha de sangue no absorvente parecia ter o formato do meu rosto.
Isso aconteceu no dia em que completei quinze anos.
Desde então, passei a ter um sonho recorrente.
Sonhava que tinha me acordado.
Precisava ir urgentemente ao banheiro,
mas não o encontrava.
Procurava-o por todo o apartamento.
Abria todas as portas com as quais deparava.
Mas nenhuma era o banheiro.
A vontade de mijar só crescia.
Pensava em me aliviar ali mesmo no corredor.
Até que notava a latrina ao meu lado.
Arregaçava a camisola,
sentava-me
e soltava um jato de urina que parecia não ter mais fim.
Ao me levantar, percebia que o fundo do vaso era puro sangue:
a cerâmica branca ficara completamente vermelha
e as paredes em volta, também brancas, tinham manchas encarnadas.
Eu me aproximava da latrina.
Espiava seu interior agora rubro:
sobre as águas sanguíneas, navegava um barquinho de papel.
O barquinho era alvo.
Dentro dele, estavam a Branca de Neve e o Príncipe −
não sei se mortos ou trepando.
III
A Santa chegou hoje aqui em casa.
Vai embora amanhã.
A vizinha da frente virá pegá-la assim que o sol nascer.
Nunca sei o que fazer com a Santa.
Desta vez, coloquei-a em cima da mesa da sala
do lado do porco de cerâmica.
Fiquei olhando para a Santa
e ela olhando para mim.
Não tínhamos nada para falar.
Foi quando percebi uns papéizinhos saindo de trás dela.
Peguei-a no colo.
Virei-a de bruços.
A Santa era oca
e tinha uma portinhola nas suas costas.
Dentro, muitos papéizinhos.
Abri um deles.
O mais amarelado e amassado.
Parecia ter sido esquecido ali.
Era um bilhete
escrito à mão
numa caligrafia de volteios:
“Minha mãezinha do céu,
eu te imploro,
me protege.”
Verônica Stigger
I
Quando pequena, fui o espelho numa encenação de Branca de Neve e os sete anões.
A peça era toda falada em inglês.
E o público, crianças monoglotas da pré-escola.
Tínhamos dez anos e mal falávamos inglês.
Aliás, mal falávamos português.
Havia um colega que dizia “largatixa” em vez de “lagartixa”.
Ele nunca adoçava o suco de uva com açúcar mascavo.
Ouvia “mascado”
e tinha nojo.
Este meu colega também sofria de incontinência urinária
e não tinha os mamilos:
em seu abdômen, só havia o umbigo.
Para nos assustar, ele levantava a camiseta
e corria atrás de nós mostrando o branco dos olhos.
Tínhamos muito medo dele.
Não lembro qual foi seu papel na peça.
Lembro quem foi o Príncipe
e lembro quem foi a Branca de Neve.
A Branca de Neve tinha alergia a lã.
Só usava roupa de tecido sintético,
especialmente um casaco azul e amarelo de náilon.
Em seus aniversários, se os colegas não levavam presentes,
ela não tinha pudores: impedia-os de entrar na festinha
e anotava os nomes dos relapsos numa caderneta cor-de-rosa.
O Príncipe era filho da professora da primeira série.
Ele se tinha em altíssima conta
e todas as meninas queriam namorar com ele.
(Menos eu.
Eu era apaixonada por outro colega:
um menino moreno, brincalhão, que morreu de leucemia aos onze anos.)
Mas não lembro mesmo o papel do meu colega sem mamilos.
Talvez tenha sido um dos sete anões,
embora eu não lembre também quem foram os outros seis.
Eu era o espelho.
Minha melhor amiga era a madrasta.
Quando a madrasta se transformava em bruxa, aí já era outra pessoa.
Também não lembro quem fazia a madrasta quando esta se transformava em bruxa.
Mas lembro que ela dizia:
“This is the poisoned apple”.
Depois, ela devia gargalhar,
muito e alto,
como bruxa de desenho animado.
Mas a menina que fazia o papel não sabia rir,
menos ainda gargalhar.
Foi outra colega que lhe ensinou.
O aprendizado se deu no banheiro, transformado em camarim.
Do lado de fora, só se ouviam as gargalhadas das duas meninas.
Ninguém mais escutava o que se dizia no palco.
A professora de inglês se irritou com a barulheira.
Interrompeu a encenação
e entrou no banheiro de vassoura em punho.
Ela queria bater nas meninas,
mas o diretor da escola a impediu.
E ela, de raiva, mordeu o lábio até sangrar.
Lembro que todos passaram dias envolvidos com a confecção do figurino
e com a elaboração da maquiagem
e com a escolha dos adereços que comporiam seus personagens.
Mas eu não,
porque eu era o espelho,
e o espelho seria um espelho de verdade.
Eu ficaria atrás do espelho.
Um espelho grande, de pé, antigo,
com moldura de madeira.
Pouco importava a roupa que usaria,
quase nada de mim apareceria na peça.
Subiria ao palco com o uniforme cinza e vermelho da escola.
Lembro que a madrasta e a bruxa usavam o mesmo vestido.
Na hora da transformação, o zíper do vestido trancou,
e a bruxa demorou quinze minutos para entrar em cena.
Sem saber o que fazer, a Branca de Neve deu uma de Gata Borralheira:
varreu e tirou o pó de todos os cantos da casa dos anões.
E as crianças, que já não estavam entendendo nada, entenderam menos ainda.
Lembro também que a madrasta perguntava ao espelho logo no início da peça:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.
E o espelho respondia:
“Her lips are like blood, her hair is like night,
her skin is like snow, her name’s Snow White”.
Algum tempo depois, inconformada, a madrasta procurava novamente o espelho:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.
E o espelho entregava o paradeiro da Branca de Neve:
“She is with the seven dwarfs. She will spend the night.
She is the fairest, and her name’s Snow White”.
Essas eram minhas duas falas.
Todos tinham que recitar pelo menos uma frase.
A idéia era que a turma inteira exibisse seu inglês capenga.
O problema era que não havia papel para todo mundo.
A entourage da Branca de Neve não era tão grande assim,
e nós éramos trinta e cinco na turma.
A solução: povoar a floresta.
Tinha de tudo entre a casa da madrasta e a casa dos anões.
De coruja a mendigo.
Teve até gente que foi árvore,
gente que foi banquinho de madeira.
(E a professora cogitou aumentar o número de anões.)
E todos falavam.
Falavam mal.
Mas falavam.
Na falta do que falar, delatavam a Branca de Neve.
Apontavam a casa dos anões e sussurravam à bruxa:
“She is there”.
Em geral, nosso inglês era incompreensível.
A Branca de Neve, por exemplo, nunca achava nada,
ela sempre afundava.
Ao colocar os anões para dormir, ela os cobria com merda,
em vez de lençóis.
E, ao fim da peça, o Príncipe convidava todos para a festa de suas vinte orelhas.
Os monoglotas da pré-escola não perceberam os erros de inglês.
(Afinal, eram monoglotas.)
Logo se entediaram.
Alguns bocejavam.
Outros cabeceavam.
Os mais debochados riam e cochichavam nos ouvidos uns dos outros.
Não demorou muito para começarem a jogar coisas na gente.
Primeiro, foram chicletes e bolas de papel.
Depois, lápis e gizes de cera.
A situação se tornou mais crítica quando passaram a cuspir.
Corriam como boçais para a beira do palco improvisado
e soltavam catarrões verdes e grudentos naqueles que se achavam ao alcance.
A Branca de Neve levou um catarrão na testa e ameaçou chorar.
Os anões riram às pampas.
E a bruxa arremessou sua cesta de maçãs nos monoglotas.
Alguns foram atingidos.
Outros, não.
E os debochados nos mostraram a língua.
As professoras da pré-escola se enfureceram:
queriam acabar com a peça
e mandar a bruxa para o castigo.
A professora de inglês não se abalou.
Virou-se para nós e disse com um exagerado acento britânico:
“The show must go on”.
Foi aí que menstruei.
Era minha primeira vez.
Ninguém notou.
Eu ficava atrás do espelho.
Ninguém me via.
Só me ouviam (e olhe lá).
Eu também não via ninguém.
Meu horizonte era o verso do espelho:
uma grande moldura de madeira mofada.
Nos ensaios, a idéia era que meu rosto fosse visto acima do espelho.
Mas a professora não gostou do resultado
e tirou minha cabeça de cena.
Na apresentação final, apenas oito dos meus dedos apareciam na peça.
Mesmo assim, só as pontinhas.
Os dedões, como o resto de mim, ficavam escondidos.
Todos viam o espelho,
e o espelho refletia todos −
menos a mim.
Por isso, ninguém percebeu quando menstruei.
Nem eu mesma.
Achava que tinha me mijado.
Comecei a exalar um cheiro diferente.
Um cheiro desconhecido.
Um cheiro que me lembrava podridão.
O mijo tem cheiro forte.
O sangue tem cheiro forte.
Mas o cheiro do sangue não é como o cheiro do mijo.
O sangue tem um cheiro adocicado.
Um cheiro persistente.
Um cheiro de morte.
O mijo tem um cheiro ácido.
Um cheiro passageiro.
Um cheiro de rodoviária.
Senti minhas calcinhas se ensoparem.
Não podia ser mijo.
Não cheirava como mijo.
Também não era tão líquido como o mijo.
Era mais visguento.
E eu não sentira vontade de ir ao banheiro.
Fiquei agoniada.
A peça não terminava nunca,
e as minhas calcinhas estavam cada vez mais molhadas.
Embora ninguém me visse, senti vergonha.
Eu devia estar vermelha,
como sangue.
Desde então, quando menstruo, o sangue desce feito cascata.
Se não troco seguidas vezes o absorvente, escorre pelas pernas
e forma poças dentro das minhas sapatilhas brancas de plástico.
(Uma amiga da minha mãe menstruou em pleno carnaval
e não percebeu:
suas pernas se tingiram de vermelho.)
Imagino que a menstruação excessiva se deva à ovulação igualmente excessiva.
Ou não.
Não sei.
(Minha melhor amiga um dia me disse:
“Eu ovulo muito.
Se gozarem nas minhas coxas, engravido”.)
As meninas do colégio me apelidaram de A Sanguinária.
Por causa da menstruação.
Mas não só.
Um dia, os meninos me pediram um absorvente usado.
Eu lhes dei,
e eles o colocaram na maçaneta da sala de aula.
A professora apertou aquele camundongo morto
e ficou com a mão suja de sangue.
Era a mesma professora de inglês.
Quando menstruei pela segunda vez, estava em outra apresentação.
Também na escola.
Mas agora sem o espelho.
A imigração era o tema.
Com comidas típicas,
roupas típicas,
músicas típicas,
danças típicas
e suco de uva.
A turma havia sido dividida em duas:
italianos de um lado,
alemães de outro.
Os morenos eram italianos.
Os loiros, alemães.
E a professora de história não sabia o que fazer com nossa única colega negra.
(Ela acabou do lado dos alemães.
Não por ironia.
Mas porque havia mais morenos do que loiros na turma.)
Eu fiquei do lado alemão,
porque, além de loira, tenho olhos azuis.
Mas queria ter ficado do lado italiano.
Não gosto de chucrute,
detesto cuca
e salsicha não é meu prato preferido.
Queria comer massa,
polenta
e galeto.
Todos tinham que levar um prato típico.
Um prato que a professora de história considerasse típico.
Porque nem todos os pratos eram de fato típicos.
Eu não sabia o que levar.
Minha mãe também não.
Ela nunca gostou de cozinhar.
Uma vez, ela trocou o creme de leite por leite condensado no estrogonofe.
Meu pai lavou tira por tira de filé mignon numa tentativa inútil de salvar o prato.
Acabaram dando tudo à cocker, que latia, na sacada, desgostosa com a comida.
Quando tinha festa na escola, minha mãe fazia sanduíches de presunto e queijo.
Ninguém gostava,
e eu comia todos para que ela não desconfiasse.
Daquela vez, ela teve a idéia de pedir a meu avô para preparar uma polenta.
Meu avô era filho de italiano
e fora criado por sua avó, italiana de Vicenza.
Ele fez uma de suas maravilhosas polentas rústicas,
toda recoberta com molho de tomate cozido durante horas
e enfeitada com lascas de parmesão e folhas de manjericão fresco.
Só tinha um senão: não era nada alemã.
Para minha mãe, não havia problema.
Ninguém iria notar.
Mas a professora de história notou
e teve um chilique.
Falou em jogar tudo fora e me suspender da atividade.
Comecei a chorar.
Torrencialmente.
Não sei de onde vinham tantas lágrimas.
Soluçava alto.
Dizia que me arrependia amargamente
de ter levado a polenta rústica.
Caí de joelhos no chão
e perguntava, repetidas vezes,
com os braços erguidos:
“Por que não fizeram salsicha bock para eu trazer?
Por que não lingüiça?
Por que não chucrute?”
A professora de história pedia que eu me acalmasse.
Nada aconteceria comigo.
Ela me prometia.
E buscava conter sua impaciência
batendo com força sua plataforma de cortiça
no assoalho de madeira do hall do colégio.
Sequei as lágrimas com as costas das mãos,
lambi o ranho que escorria do nariz
e funguei.
Se não havia castigo,
estava tudo bem.
E perdoei mais uma vez em segredo a total falta de noção da minha mãe.
Chegara a hora das danças.
Toda a turma estava dividida em pares.
Em geral, meninos com meninas.
No entanto, nunca sobravam meninos para fazer par comigo.
Sempre fui uma das mais altas da turma.
E os meninos, nesta idade, continuavam tampinhas.
Acabava sendo obrigada a dançar com uma menina −
invariavelmente, uma varapau como eu
(naquela época, também me chamavam Poste).
Na apresentação organizada pela professora de história,
os italianos dançavam tarantela,
os alemães se vestiam de tiroleses (que, descobri depois, nem alemães eram).
Mas nem a tarantela nem as vestes tirolesas
eram típicas dos imigrantes que foram para o Sul.
A professora de história tinha uma versão muito particular da história.
Eu vestia camisa branca sob uma jardineira verde, curta e rodada.
Duas grossas tranças circundavam minha cabeça,
e meias brancas subiam até meu joelho.
Os meninos alemães estavam de bermudão verde com suspensório.
Por baixo, usavam uma camisa branca,
e meias brancas também subiam até seus joelhos.
Os meninos italianos vestiam um bermudão preto com uma faixa vermelha na cintura.
A camisa era branca, mas parcialmente escondida por um colete preto.
Nos pés, as indefectíveis meias brancas até os joelhos.
As meninas italianas trajavam saias vermelhas, compridas e rodadas.
Suas camisas também eram brancas,
e as horrendas meias brancas até os joelhos eram tapadas pelas longas saias.
Os italianos agitavam pandeiros com fitas coloridas.
Os alemães, nada.
No máximo, acarinhavam seus suspensórios.
Queria muito estar do outro lado.
A comida era melhor
e parecia ser mais divertido.
A tarantela era alegre e agitada.
A dança que inventaram para nós lembrava um minueto fúnebre.
Aliás, nunca soube de nenhuma dança parecida no folclore germânico.
Saltinho para cá,
saltinho para lá,
menstruei.
O sangue desceu como uma avalanche.
Não demorou para chegar aos joelhos.
Quando o vi se aproximar das malditas meias brancas, não titubeei:
corri até a mesa das comidas,
saltei e sentei na polenta rústica do meu avô.
O vermelho do molho se misturou ao vermelho do sangue.
Ninguém, de novo, percebeu que eu menstruara.
Mas fui suspensa por uma semana.
Desde então, peguei horror a ser mulher.
Na vigésima vez que menstruei, era Semana da Inversão:
professores se tornavam alunos,
alunos se tornavam professores.
Eu e minha melhor amiga escolhemos dar aula de religião.
Queríamos ver todo mundo se ajoelhando e rezando.
Estávamos nos divertindo com a idéia.
Levamos a turma em procissão até a sala que escolhemos para as rezas.
Eu carregava nos braços, junto ao peito, a Santa da minha mãe.
(Ela nem desconfiava que a seqüestráramos.)
Todos tinham que se ajoelhar no chão duro e gelado
e entoar cinco pai-nossos, quatro ave-marias e dois credos.
E, depois, deviam ler, em uníssono, este trecho da Bíblia:
“Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue
e que seja fluxo de sangue do seu corpo,
permanecerá durante sete dias na impureza das suas regras.
Quem a tocar ficará impuro até a tarde.
Toda cama sobre a qual se deitar com o seu fluxo ficará impura,
todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro.
Todo aquele que tocar seu leito deverá lavar suas vestes,
banhar-se em água
e ficará impuro até a tarde.
Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.
Se algum objeto se encontrar sobre o leito
ou sobre o móvel no qual ela está assentada,
aquele que o tocar ficará impuro até a tarde.
Se um homem coabitar com ela, a impureza das suas regras o atingirá.
Ficará impuro durante sete dias.
Todo leito sobre o qual ele se deitar ficará impuro.
Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue de diversos dias,
fora do tempo das suas regras, ou se as suas regras se prolongarem,
estará no mesmo estado de impureza em que esteve durante o tempo das suas regras.
Assim será para todo leito sobre o qual ela se deitar,
durante todo o tempo de seu fluxo,
como o foi para o leito em que se deitou quando das suas regras.
Todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro, como quando das suas regras.
Quem os tocar ficará impuro, deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.
Quando estiver curada de seu fluxo,
contará sete dias,
e então estará pura.”
“No oitavo dia –”
“Basta!”, interrompeu o professor de religião.
“Vocês estão pensando o quê?”
Sem esperar resposta, ele nos pegou pelo braço
e nos arrastou até a sala do diretor.
(Isso que nem havíamos lido a parte da gonorréia.)
No caminho, menstruei.
O professor e o diretor falavam falavam falavam
e eu nem prestava atenção.
Ao levantar da cadeira, percebi que havia se formado uma pequena poça.
Uma poça vermelha.
Uma poça de sangue.
Olhei, cabisbaixa, para os dois.
Eles olharam para a cadeira e, em seguida, para mim.
E eu disse:
“Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.”
II
Uma vez, a mancha de sangue no absorvente parecia ter o formato do meu rosto.
Isso aconteceu no dia em que completei quinze anos.
Desde então, passei a ter um sonho recorrente.
Sonhava que tinha me acordado.
Precisava ir urgentemente ao banheiro,
mas não o encontrava.
Procurava-o por todo o apartamento.
Abria todas as portas com as quais deparava.
Mas nenhuma era o banheiro.
A vontade de mijar só crescia.
Pensava em me aliviar ali mesmo no corredor.
Até que notava a latrina ao meu lado.
Arregaçava a camisola,
sentava-me
e soltava um jato de urina que parecia não ter mais fim.
Ao me levantar, percebia que o fundo do vaso era puro sangue:
a cerâmica branca ficara completamente vermelha
e as paredes em volta, também brancas, tinham manchas encarnadas.
Eu me aproximava da latrina.
Espiava seu interior agora rubro:
sobre as águas sanguíneas, navegava um barquinho de papel.
O barquinho era alvo.
Dentro dele, estavam a Branca de Neve e o Príncipe −
não sei se mortos ou trepando.
III
A Santa chegou hoje aqui em casa.
Vai embora amanhã.
A vizinha da frente virá pegá-la assim que o sol nascer.
Nunca sei o que fazer com a Santa.
Desta vez, coloquei-a em cima da mesa da sala
do lado do porco de cerâmica.
Fiquei olhando para a Santa
e ela olhando para mim.
Não tínhamos nada para falar.
Foi quando percebi uns papéizinhos saindo de trás dela.
Peguei-a no colo.
Virei-a de bruços.
A Santa era oca
e tinha uma portinhola nas suas costas.
Dentro, muitos papéizinhos.
Abri um deles.
O mais amarelado e amassado.
Parecia ter sido esquecido ali.
Era um bilhete
escrito à mão
numa caligrafia de volteios:
“Minha mãezinha do céu,
eu te imploro,
me protege.”
Verônica Stigger
23 de março de 2020
22 de março de 2020
#1 dia
a última vez que fui ao supermercado, vi o segurança feliz. penso sempre no segurança quando vou ao supermercado. penso que é um dos trabalhos mais frustrantes que deve haver, sozinho e em silêncio, vigiando a banalidade, arrumando cestos para tentar ser útil, esticando as pernas entre a zona das caixas e a entrada. claro que aqui e ali haverá pequenos furtos que sejam apanhados, mas deve ser muito raro. o comum é a grande monotonia que reveste a nossa vida. neste dia, contudo, o segurança estava cá fora, à porta, com um rolo de senhas numa mão e uma garrafa de esguicho noutra. perto dele estavam umas cinco mulheres, com quem conversava animadamente. enquanto isso, distribuía as senhas pelos que chegavam, chamava números, trocava palavras amáveis com as pessoas que passavam por ele para entrar: «quer um pouco de desinfetante?». todos, de resto, eram muito cordiais. na rua, os que esperávamos, tentávamos manter os dois metros de distância física a custo, pois éramos cerca de 80. nos corpos fechados ao contacto, havia uma tentativa de descontração: a espera para entrar seria longa.
desde que estou em casa, tenho falado todos os dias com mais pessoas do que era habitual antes da quarentena. surgiu a necessidade de perguntar a todos como estão. com as pesadas consequências que isso terá, os artistas lançaram-se às redes sociais e ao live streaming. entre os solteiros organizam-se jantares por skype. a incógnita, todavia, sobre a sobrevivência daqueles que perderam ou virão a perder o seu meio de subsistência, sobre aqueles de nós que irão morrer e os que irão sobreviver, é insidiosa. estamos todos à espera do momento em que tudo irá colapsar. enquanto isso, há quem espere o melhor do futuro. há dias, uma amiga dizia-me num chat que o vírus vai mudar o mundo. segundo ela, o importante neste momento é «passar a onda» para nos adaptarmos a uma nova realidade sem carros a gasolina e em que todos trabalhamos a partir de casa. de acordo com o cenário que prevê, haverá muito menos trabalho e muitas empresas fecham, as pessoas já não voltam às fábricas e são substituídas por robôs, o que obrigará o Estado a implementar o rendimento universal. havia nela um grande entusiasmo, porventura o mesmo que contagia os grandes pensadores, aqueles que conseguem ver para lá dos próprios umbigos, entre os quais, admito, não me incluo. a imagem mais otimista que consigo vislumbrar neste momento, para além de um grande almoço com os amigos e a família, é a de uma natureza a crescer desenfreadamente nas ruas das nossas cidades, enquanto estamos em casa.
a última vez que fui ao supermercado, vi o segurança feliz. penso sempre no segurança quando vou ao supermercado. penso que é um dos trabalhos mais frustrantes que deve haver, sozinho e em silêncio, vigiando a banalidade, arrumando cestos para tentar ser útil, esticando as pernas entre a zona das caixas e a entrada. claro que aqui e ali haverá pequenos furtos que sejam apanhados, mas deve ser muito raro. o comum é a grande monotonia que reveste a nossa vida. neste dia, contudo, o segurança estava cá fora, à porta, com um rolo de senhas numa mão e uma garrafa de esguicho noutra. perto dele estavam umas cinco mulheres, com quem conversava animadamente. enquanto isso, distribuía as senhas pelos que chegavam, chamava números, trocava palavras amáveis com as pessoas que passavam por ele para entrar: «quer um pouco de desinfetante?». todos, de resto, eram muito cordiais. na rua, os que esperávamos, tentávamos manter os dois metros de distância física a custo, pois éramos cerca de 80. nos corpos fechados ao contacto, havia uma tentativa de descontração: a espera para entrar seria longa.
desde que estou em casa, tenho falado todos os dias com mais pessoas do que era habitual antes da quarentena. surgiu a necessidade de perguntar a todos como estão. com as pesadas consequências que isso terá, os artistas lançaram-se às redes sociais e ao live streaming. entre os solteiros organizam-se jantares por skype. a incógnita, todavia, sobre a sobrevivência daqueles que perderam ou virão a perder o seu meio de subsistência, sobre aqueles de nós que irão morrer e os que irão sobreviver, é insidiosa. estamos todos à espera do momento em que tudo irá colapsar. enquanto isso, há quem espere o melhor do futuro. há dias, uma amiga dizia-me num chat que o vírus vai mudar o mundo. segundo ela, o importante neste momento é «passar a onda» para nos adaptarmos a uma nova realidade sem carros a gasolina e em que todos trabalhamos a partir de casa. de acordo com o cenário que prevê, haverá muito menos trabalho e muitas empresas fecham, as pessoas já não voltam às fábricas e são substituídas por robôs, o que obrigará o Estado a implementar o rendimento universal. havia nela um grande entusiasmo, porventura o mesmo que contagia os grandes pensadores, aqueles que conseguem ver para lá dos próprios umbigos, entre os quais, admito, não me incluo. a imagem mais otimista que consigo vislumbrar neste momento, para além de um grande almoço com os amigos e a família, é a de uma natureza a crescer desenfreadamente nas ruas das nossas cidades, enquanto estamos em casa.
9 de março de 2020
Ainda jovem, depressa concebeu a ideia de que um dia teria de deixar de respirar e de andar, de pensar e de comer, de dormir e de trabalhar e, tendo frequentado tanto mansardas como faustosos salões, lidado com homens de diversa índole, encontrou silenciosamente o seu próprio território, descobrindo no recolhimento um estado de felicidade próximo da perfeição.
Robert Walser, Histórias de imagens.
Robert Walser, Histórias de imagens.
5 de março de 2020
Os aimarás, um povo originário da região andina da América do Sul, concebem de uma forma diferente a associação entre o tempo e o espaço. Em aimará, a palavra ‘nayra’ significa ‘passado’ mas também significa ‘à frente’, ‘à vista’. E a palavra ‘quipa’, que significa ‘futuro’, também indica ‘atrás’. Isto é, na língua aimará o passado está à frente e o futuro, atrás. Sabemos que isto reflete a sua maneira de pensar, porque também expressam esta relação usando o corpo. Os aimarás esticam os braços para trás para se referirem ao futuro e para a frente para aludirem ao passado.
Mariano Sigman, A vida secreta da mente.
Mariano Sigman, A vida secreta da mente.
27 de fevereiro de 2020
Quando tinha cerca de 9 anos, numa brincadeira com o meu
pai e com a minha irmã, descobri que afinal, como sempre tinha
acreditado, não ouvia como os outros. Nos dias a seguir, foi-me dito que
era surda de um ouvido de nascença, havendo forte probabilidade de vir a
ficar completamente surda mais tarde. Foi
num desses dias que coloquei pela primeira vez a pergunta “O que é o
silêncio?”. Com o tempo, o questionamento divergiu para outras
perguntas. “O que é o silêncio para um surdo” passou a “O que é o
silêncio para um mudo” e percebi que há muitas perspetivas sobre o
silêncio, nomeadamente a de ser uma forma de comunicação não verbal
importantíssima. Pergunto-me pois qual é a sua relação com a linguagem.
Se nasceu com o espaço e o tempo. Porque é tão importante para a
religião. Qual é o seu papel na criação. E, como no Atmosphere dos Joy Division, quando é que pode ser perigoso.
Parte integrante do programa As coisas fundadas no silêncio, as conferências dos dias 3 e 4 de março, que terão lugar no Pequeno Auditório da Culturgest, vão andar em torno destas questões. Doze
oradores de áreas das ciências naturais, humanas e das artes, fazem uma
análise crítica sobre o significado do silêncio a partir dos seus corpos
de trabalho, investigação e criação. As suas diferentes abordagens em
diálogo, constitui uma oportunidade e um desafio para pessoas que
normalmente não se encontram.
Jonas Mekas, As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty. |
22 de fevereiro de 2020
Oh, se fôssemos
índios, já preparados e, em cima de um cavalo que corre, inclinados
contra o vento, estremecêssemos repetidamente sobre o solo que treme até
largarmos as esporas porque nunca houve esporas, até deitarmos fora as
rédeas porque nunca houve rédeas e quase não víssemos a terra à nossa
frente revelar um prado ceifado e liso, agora que o cavalo perdeu o
pescoço e a cabeça.
Franz Kafka, Desejo de se tornar índio.
Franz Kafka, Desejo de se tornar índio.
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