#1 dia
a última vez que fui ao supermercado, vi o segurança feliz. penso sempre
no segurança quando vou ao supermercado. penso que é um dos trabalhos
mais frustrantes que deve haver, sozinho e em silêncio, vigiando a
banalidade, arrumando cestos para tentar ser útil, esticando as pernas
entre a zona das caixas e a entrada. claro que aqui e ali haverá
pequenos furtos que sejam apanhados, mas deve ser muito raro. o comum é a
grande monotonia que reveste a nossa vida. neste dia, contudo, o
segurança estava cá fora, à porta, com um rolo de senhas numa mão e uma
garrafa de esguicho noutra. perto dele estavam umas cinco mulheres, com
quem conversava animadamente. enquanto isso, distribuía as senhas pelos
que chegavam, chamava números, trocava palavras amáveis com as pessoas
que passavam por ele para entrar: «quer um pouco de desinfetante?».
todos, de resto, eram muito cordiais. na rua, os que esperávamos,
tentávamos manter os dois metros de distância física a custo, pois
éramos cerca de 80. nos corpos fechados ao contacto, havia uma tentativa
de descontração: a espera para entrar seria longa.
desde que estou em casa, tenho falado todos os dias com mais pessoas do
que era habitual antes da quarentena. surgiu a necessidade de perguntar a
todos como estão. com as pesadas consequências que isso
terá, os artistas lançaram-se às redes sociais e ao live streaming.
entre os solteiros organizam-se jantares por skype. a
incógnita, todavia, sobre a sobrevivência daqueles que perderam ou virão
a perder o seu meio de subsistência, sobre aqueles de nós que irão
morrer e os que irão sobreviver, é insidiosa. estamos todos à espera do
momento em que tudo irá colapsar. enquanto isso, há quem espere o melhor
do futuro. há dias, uma amiga dizia-me num chat que o vírus
vai mudar o mundo. segundo ela, o importante neste momento é «passar a
onda» para nos adaptarmos a uma nova realidade sem carros a gasolina e
em que todos trabalhamos a partir de casa. de acordo com o cenário que prevê, haverá muito menos trabalho e muitas empresas fecham, as
pessoas já não voltam às fábricas e são substituídas por robôs, o que
obrigará o Estado a implementar o rendimento universal. havia nela um
grande entusiasmo, porventura o mesmo que contagia os grandes
pensadores, aqueles que conseguem ver para lá dos próprios umbigos,
entre os quais, admito, não me incluo. a imagem mais otimista que
consigo vislumbrar neste momento, para além de um grande almoço com os amigos e a família, é a de uma natureza a crescer
desenfreadamente nas ruas das nossas cidades, enquanto estamos em casa.