22 de março de 2020

#1 dia

a última vez que fui ao supermercado, vi o segurança feliz. penso sempre no segurança quando vou ao supermercado. penso que é um dos trabalhos mais frustrantes que deve haver, sozinho e em silêncio, vigiando a banalidade, arrumando cestos para tentar ser útil, esticando as pernas entre a zona das caixas e a entrada. claro que aqui e ali haverá pequenos furtos que sejam apanhados, mas deve ser muito raro. o comum é a grande monotonia que reveste a nossa vida. neste dia, contudo, o segurança estava cá fora, à porta, com um rolo de senhas numa mão e uma garrafa de esguicho noutra. perto dele estavam umas cinco mulheres, com quem conversava animadamente. enquanto isso, distribuía as senhas pelos que chegavam, chamava números, trocava palavras amáveis com as pessoas que passavam por ele para entrar: «quer um pouco de desinfetante?». todos, de resto, eram muito cordiais. na rua, os que esperávamos, tentávamos manter os dois metros de distância física a custo, pois éramos cerca de 80. nos corpos fechados ao contacto, havia uma tentativa de descontração: a espera para entrar seria longa.
desde que estou em casa, tenho falado todos os dias com mais pessoas do que era habitual antes da quarentena. surgiu a necessidade de perguntar a todos como estão. com as pesadas consequências que isso terá, os artistas lançaram-se às redes sociais e ao live streaming. entre os solteiros organizam-se jantares por skype. a incógnita, todavia, sobre a sobrevivência daqueles que perderam ou virão a perder o seu meio de subsistência, sobre aqueles de nós que irão morrer e os que irão sobreviver, é insidiosa. estamos todos à espera do momento em que tudo irá colapsar. enquanto isso, há quem espere o melhor do futuro. há dias, uma amiga dizia-me num chat que o vírus vai mudar o mundo. segundo ela, o importante neste momento é «passar a onda» para nos adaptarmos a uma nova realidade sem carros a gasolina e em que todos trabalhamos a partir de casa. de acordo com o cenário que prevê, haverá muito menos trabalho e muitas empresas fecham, as pessoas já não voltam às fábricas e são substituídas por robôs, o que obrigará o Estado a implementar o rendimento universal. havia nela um grande entusiasmo, porventura o mesmo que contagia os grandes pensadores, aqueles que conseguem ver para lá dos próprios umbigos, entre os quais, admito, não me incluo. a imagem mais otimista que consigo vislumbrar neste momento, para além de um grande almoço com os amigos e a família, é a de uma natureza a crescer desenfreadamente nas ruas das nossas cidades, enquanto estamos em casa.