V.
o teu rosto
selvagem recordação
13 de agosto de 2017
12 de agosto de 2017
«agora a minha vida vai mudar», pensou, inebriado de ideias. pegou num caderno para as anotar a todas, por prioridade, e dedicou-se imediatamente à primeira. depois da melancolia dos últimos meses, era uma lufada de ar fresco, vinda não sabia de onde nem porquê. cheio de confiança, a passagem do tempo deixou de o angustiar e o tédio desapareceu, substituído por sucessivas epifanias. parecia-lhe que tinha a vida toda na mão, o passado e o futuro flutuavam como nuvens inofensivas num céu soalheiro. o raciocínio desenvolvia-se com rapidez e leveza, o mundo adquiria densidade e a sua vida um significado, cujos problemas pareciam ter-se afogado num poço longínquo, reservado dos olhares. com certa estupefação, observou que nada daquilo era novo: as ideias que tinha transposto no papel estavam a ser cozinhadas há anos, sem terem tido, contudo, força para ver a luz do dia. portanto, pensava, porquê agora e não antes? que sinal impercetível havia sido agente da mudança? extenuado pela ausência de resposta, temendo que a inspiração desaparecesse, reduziu a lista a duas coisas, e continuou a elaborar planos para concretizar a primeira das prioridades. nisto, por e-mail, chegou-lhe uma carta relacionada com a ideia. a felicidade inundava-o, começou a pesquisar na internet, lembrou-se de livros, imaginou uma resposta à carta totalmente arquitetada, eloquente e sagaz. sem vontade de se arredar dos seus projetos, quando o telefone tocou não atendeu. até a solidão tinha agora um sentido, pensou, sem sentimentos de culpa por se isolar. fez um chá, nunca fazia chá. gostava das pessoas que faziam chá mas achava a bebida insípida e a preparação aborrecia-o. naquele momento, porém, o ritual deu-lhe oportunidade para pensar na sua ideia afastado do computador e, por isso, apreciou-o. enquanto bebia, no entanto, ocorreu-lhe que o melhor talvez fosse beber álcool. sim, sem dúvida, o álcool contribuiria para a inspiração, e saiu em direção à loja do nepalês, a única que àquela hora se encontrava aberta. comprou um whisky de má qualidade e juntou-lhe pedras de gelo em abundância. estava divino. três copos depois, a profusão de ideias voltou e lembrou-se dela. os anos de silêncio que os separavam não impediram que a atração inicial se mantivesse, uma espécie de sortilégio movediço onde se deleitava. ao olhar para uma fotografia guardada no computador, esmoreceu. como era bela e dócil no seu vestido azul, sorrindo e movendo-se como se existisse apenas para ele. olhava para a fotografia com o mesmo ímpeto das últimas horas, perguntando-se o que aconteceria se voltasse a contactá-la. teria o mesmo número, o mesmo e-mail? não importava, procurá-la-ia estrada fora até a encontrar. com certeza ficaria contente de o rever, com certeza, se a atração permanecia nele, também a alimentava a ela. desligou o computador e levantou-se, inundado por uma espécie de beatitude, determinado em reaver o tempo perdido. já deitado, pegou no telefone e, ao ver o nome dela inscrito sobre o ecrã, todos os planos que pareciam ter finalmente arrancado se desfizeram como poeira passageira.
11 de agosto de 2017
Adiamos as perguntas decisivas,
fazendo ininterruptamente perguntas ridículas, inúteis e infames e,
quando fazemos as perguntas decisivas, é tarde de mais. Toda a vida
vamos adiando as grandes perguntas, até que elas se tornam uma
cordilheira de perguntas e nos obscurecem. Mas nessa altura é tarde de
mais. Devíamos ter a coragem (face àqueles a quem temos de perguntar,
como face a nós próprios) de os atormentar com perguntas, sem
consideração nenhuma, implacavelmente, não os poupar não os burlar com a
complacência. Ficamos arrependidos de não termos perguntado nada,
quando aquele a quem tínhamos de perguntar já não pode ouvir essas
perguntas, já está morto. Mas mesmo que tivéssemos feito todas as
perguntas, teríamos obtido nem que fosse uma única resposta? Nós não
aceitamos a resposta, nenhuma resposta, não podemos fazê-lo, não
devemos, assim é a disposição da nossa sensibilidade e o nosso estado de
espírito, assim é o nosso ridículo sistema, assim é a nossa existência,
o nosso pesadelo.
Thomas Bernhard, Autobiografia — O Frio.
9 de agosto de 2017
6 de agosto de 2017
nos minutos que separavam o colégio de casa habituei-me a procurar caminhos novos, estar atenta aos detalhes e usufruir de um silêncio reconfortante. começávamos o dia com orações e os crucifixos, freiras e esculturas de santos eram omnipresentes. a pureza de espírito e a vida monástica eram preconizadas e, entre esse mundo e o exterior, a violência, o mutismo e a solidão marcavam a diferença. não precisei de muito tempo para descobrir que o meu espírito não era puro mas sim desafiador, provocatório e barroco, estimulado pela observação do que há de mais trivial no mundo em contraponto ao que, embora quotidianamente apregoado, não podia experienciar. mesmo quando pensei em ser freira, era como se o desígnio fosse uma dança invisível onde era protagonista e, assim, mal a madre diretora me perguntou, aos seis anos, se tinha sido chamada, respondi ruborizada que não, ao que ela sorriu e me fez um sinal de cruz na testa dizendo que podia repeti-lo sempre que estivesse triste. não senti nada, nenhuma manifestação de uma entidade superior, nenhum alívio, nenhuma esperança e, se é verdade que voltei a repeti-lo numas poucas vezes de maior angústia, também é verdade que rapidamente me dispensei de ter sido abençoada, consciente de que o significado do gesto era vazio. era nesses momentos de libertação que o meu futuro se abria, desconhecido e vasto. com o passar do tempo, mais as minhas amigas pareciam devotas, indo à missa todos os domingos e participando com entusiasmo nas atividades dos escuteiros e das guias — onde havia mais orações a rezar —, mais me desinteressava, acabando por fim por fazê-lo com sacrifício até conseguir convencer a minha mãe a não ir. antes, contudo, cheguei a chefe nas guias e fugi do desejo dos rapazes nos escuteiros, ocasiões de protagonismo que já chegavam esgotadas. em casa, entretanto, desenhava, lia tudo aquilo a que podia deitar a mão, ouvia música. quando o meu pai se foi embora, a relação com a minha mãe tornou-se conflituosa, de modo que uma violência foi substituída por outra, esta, no entanto, onde tentava ter uma voz. tornei-me uma adolescente revoltada, diligente e astuta, com apenas um objetivo em mente: ir-me embora. sonhava conhecer o mundo e balançava entre fazer justiça e desobedecer aos códigos. nisto, surgiu a escrita, que, apesar de já me acompanhar há algum tempo, começava a impor-se. precisamente por essa razão, na véspera de sair da cidade para ir estudar, destruí todos os cadernos, temendo levar para a minha fuga alguma recordação daqueles anos. queria escrever, mas livre da minha história oficial, onde a banalidade não podia ser resgatada.
5 de agosto de 2017
3 de agosto de 2017
um amigo contou-me ontem uma história extraordinária. quando era um miúdo com cerca de 6 anos de idade, costumava passar por um acampamento de ciganos, perto da sua casa. certo dia, a irmã foi fazer-lhes uma doação de roupa e o pequeno acompanhou-a. ao fundo do acampamento, viu uma menina, morena e de olhos verdes, que devia ter a mesma idade. viu-a ele e viu-o ela. dias depois, voltou a passar pelo acampamento para a ver e tentar meter conversa, mas não a encontrou mais. entretanto, o acampamento foi levantado e os ciganos desapareceram. cinquenta anos depois, numa visita à feira de Carcavelos para comprar roupa, o meu amigo para numa banca e vê uma mulher morena de olhos verdes que o vê a ele também. reconhecem-se e falam pela primeira vez, como se fossem amigos há muitos anos. quando ouço estas histórias, penso sempre que ninguém as acreditaria se as inventasse. mas a vida é isto, encontros e desencontros feitos apenas de olhares remotos e de gestos ínfimos que estão na sombra e cuja intensidade, contudo, é de uma beleza pungente.
31 de julho de 2017
30 de julho de 2017
29 de julho de 2017
cansado da viagem, Luís Salvaterra saiu do autocarro e procurou uma esplanada onde pudesse beber qualquer coisa fresca. encontrou-a do outro lado da rua, vazia e à sombra. comprou o jornal e sentou-se à espera do empregado, que chegou alguns minutos depois. «o que vai ser chefe?», perguntou-lhe. «uma água das pedras com limão e um café curto por favor», respondeu. enquanto ali esteve, não chegou a abrir o jornal. um pequeno pássaro que, sozinho, procurava comida nas mesas, um gato amarelo que passou a fugir do outro lado da rua, uma mulher alta de saia curta que passou lentamente na calçada a olhar para o telemóvel e o vai-e-vem à entrada da estação de comboios, obtiveram toda a sua atenção. tinha ainda que procurar uma pensão. o empregado aconselhou uma no centro da cidade, perto do rio. de jornal debaixo do braço, Luís procurou-a pelas ruas desconhecidas. o prazer de nunca as ter percorrido e, ainda assim, serem vagamente familiares, penetrava o seu ânimo. o rio era verde, com um leito razoavelmente largo e alguns peixes. atravessando uma ponte, chegava-se a um jardim. esta devia ser a vista da pensão, se tivesse sorte. nenhum destino poderia ser mais feliz do que aquele, pensou. para quê seguir os turistas para uma cidade europeia qualquer ou escolher lugares inóspitos? amanhã daria uma volta pela cidade, visitaria o mosteiro e talvez lesse o jornal. deitado na cama do seu quarto sobre uma grossa colcha branca enquanto apreciava o silêncio do crepúsculo, sentiu fome e decidiu escolher ao jantar um prato que nunca tivesse experimentado.
27 de julho de 2017
todos os dias a horas certas, o bairro enche-se de odores a comida. a minha fome nasce com eles de forma um pouco hesitante, mas voraz e, a horas certas, levanto-me para cozinhar e comer. não fossem os vizinhos, não me alimentava, penso muitas vezes. as horas passariam sem dar por elas até o dia cair, pois, quando a noite chega, até um cego se levanta.
26 de julho de 2017
um homem
descasca uma maçã
com uma navalha
na calçada
encostado à parede
de um palácio.
segura
todas as cascas na mão.
no final,
corta a maçã em quatro pedaços
retirando-lhes o caroço
e deita as cascas para o chão.
cuidadosamente
empurra uma a uma
as cascas
para junto da parede
do palácio
e deita o caroço para
o lixo.
avança pela rua
comendo a maçã
e deixo de o ver.
tinha um boné
usava casaco
apesar de estar calor
e segurava um saco
de plástico na mesma mão
onde tinha a maçã.
sem saber
é a ele que se dirige
toda a poesia.
descasca uma maçã
com uma navalha
na calçada
encostado à parede
de um palácio.
segura
todas as cascas na mão.
no final,
corta a maçã em quatro pedaços
retirando-lhes o caroço
e deita as cascas para o chão.
cuidadosamente
empurra uma a uma
as cascas
para junto da parede
do palácio
e deita o caroço para
o lixo.
avança pela rua
comendo a maçã
e deixo de o ver.
tinha um boné
usava casaco
apesar de estar calor
e segurava um saco
de plástico na mesma mão
onde tinha a maçã.
sem saber
é a ele que se dirige
toda a poesia.
22 de julho de 2017
Doc:
Paterson, you still don't got a cell phone?
Paterson:
Uh, no. No, I don't want one. It would be a leash.
Doc: What about the better half, she got one?
Paterson: She's got one, yeah. And the laptop, and an iPad...
Doc: She doesn't want you to get one?
Paterson: No. She's okay about it. She understands me really well.
Doc: A lucky guy.
PATERSON, Jim Jarmusch (2016).
Doc: What about the better half, she got one?
Paterson: She's got one, yeah. And the laptop, and an iPad...
Doc: She doesn't want you to get one?
Paterson: No. She's okay about it. She understands me really well.
Doc: A lucky guy.
PATERSON, Jim Jarmusch (2016).
17 de julho de 2017
não tive filhos. até muito tarde não quis e, quando quis, nunca estive completamente certa. agora que o tempo irremediavelmente acabou, penso nisso como um «se». na verdade, nunca me imaginei com filhos, filhos que crescem, que adoecem, que são ternurentos, exigentes e espantosos. contudo, tive uma grande curiosidade sobre a gravidez, sobre aquilo que acontece no corpo de uma mulher, tanto no que respeita ao processo de gestação como ao momento do nascimento. não aconteceu e, assim, parece-me que há uma parte do meu corpo que me é desconhecida, que existe de forma latente sem que eu possa tocar-lhe. creio que nem todas as mulheres o sentem e pergunto-me — pergunta opressora — que sentido tem para mim. desde criança, tudo o que me interessou na vida foi a sua potência criadora, mas a dimensão da espera sobrepôs-se à da materialização. a escrita tem aí qualquer lugar, embora eu não saiba exatamente que significado atribuir-lhe. de algum modo, nunca se acaba de escrever e, sobretudo, aquilo que se escreve não nos pertence. quantas vezes reli textos, com anos ou meia dúzia de meses, e pensei «não eu, não eu». por outro lado, os textos têm uma vida independente, somos chamados a escrevê-los. a sua formação tanto pode levar anos como alguns minutos, sem que isso interfira ou contribua para a sua maior ou menor qualidade. conhecer-se enquanto escritor exige ferocidade e paciência na mesma medida. escrever é sempre um ato desesperado.
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