28 de janeiro de 2017
Sempre quis ter um enxoval. As famílias de amigas minhas de infância colecionavam para elas toalhas de renda, conjuntos de lençóis e de tupperwares, faqueiros, loiças, tudo guardado numa grande arca de madeira para usar depois do casamento. Lembro-me da minha avó dizer que «era preciso fazer um enxoval para as miúdas» mas nunca aconteceu, em parte porque não havia dinheiro, em parte porque os tempos mudaram rapidamente e se entendeu que, ainda que viesse a casar, não era necessário levar um enxoval. A minha melhor amiga tinha uma dessas arcas. Quando a mãe a abria, sempre em ocasiões especiais como o Natal ou os aniversários, tinha uma oportunidade de ver o que continha e admirava as toalhas brancas de linho e renda que se encontravam logo em cima. Estava cheia no limite do espaço e, como num arquivo, quando se recebia um presente destinado a uma das camadas inferiores, tinha de se despejar o conteúdo das superiores, para guardar os objetos novos no local devido. O quarto ficava então cheio de artigos para a casa espalhados por todo o lado, cuidadosamente dispostos em cima da cama e da cómoda, incluindo os saquinhos de alfazema. Sentia uma enorme atração por mexer naquelas coisas, vê-las de perto, abrir as toalhas, cheirar os lençóis, experimentar as combinações de seda — e não podia. Quando saí de casa, comprei o necessário e desde aí acumulei poucas coisas; parece que à medida que os anos passam são cada vez menos aquelas de que preferia nunca ter de me separar. Ainda assim, continuo a gostar destas arcas fechadas anos a fio, destinadas a um futuro utopista, cheias de coisas belas. Se eu tivesse um enxoval, o mais provável era não lhe mexer e ficar a admirá-lo, como se admira uma caixa de recordações.
23 de janeiro de 2017
22 de janeiro de 2017
21 de janeiro de 2017
Forçar-me a comer. Quando penso na minha infância, é fatal associar-lhe um quotidiano preenchido pela recusa em comer e pelo asco da comida. A minha avó muito sofreu, todos os dias ia a casa dela para almoçar e ficava a brincar com os talheres, o copo e o guardanapo, tudo o que me permitia fugir ao prato que tinha à frente. Podia ficar horas nisso, e muitas vezes fiquei, proibida de me levantar antes de ter terminado a refeição, o que nunca resultava. A comida fria ia para o lixo, os gritos culminavam. No jardim-escola tinham um hábito extraordinário: à medida que a hora de sair do refeitório se aproximava, as auxiliares enchiam o prato de sopa com o segundo e a fruta e forçavam-me a comer, abrindo e fechando-me a boca com as mãos. Isto passou-se dia após dia durante anos e depois, em casa, ouvia ainda mais gritos porque os meus pais recebiam as queixas das educadoras. Durou até que a minha irmã, já no final da pré-escola, lhes contou o que faziam, altura em que a minha mãe foi pessoalmente à escola dizer que se eu não quisesse comer não deviam obrigar-me. Muito mais tarde, acabei por ter prazer em comer e passei a comer de tudo, desde que não fosse cozinhado por mim. Ainda assim, graças ao micro-ondas, onde posso aquecer uma sopa, e à fruta, há alturas em que posso passar dias sem comer uma refeição completa. Devíamos poder alimentar-nos apenas de fruta. Há tempos explicaram-me que, para as crianças, os alimentos representam a descoberta do mundo. Os sabores, sempre novos, exigem-lhes uma adaptação feroz, que deve ser feita com bonomia. Isso fez-me pensar que, algures no meu passado, o mundo se tornou algo de que tinha de defender-me e cuja ameaça está sempre a pairar. Era assim, de facto, que o percebia, sobretudo quando até em casa sofria as consequências de quem não está predisposta a comer. A minha amizade com o mundo, alegre e inconsequente, nasceu mais tarde, quando me permiti não comer, ter fome e aprender a cozinhar. Nos dias em que, vezes sem conta, abro e fecho o frigorífico sem conseguir pegar na peça de carne ou peixe que tenho para preparar, é todavia o asco que regressa e um sentimento de separação total predomina, como um jejum que fazemos para nos purificarmos. A comida — o cheiro da comida, o toque da comida, a mistura das comidas — volta a tornar-se torturante, tal um hábito nocivo que é difícil abandonar, e sou eu que finalmente me obrigo a comer. Já não é porém o vómito que se sucede, mas antes a satisfação. A emancipação tem algo que ver com isto, com a descoberta de que há quietude e conforto para lá do útero das nossas mães e que é um banquete estar vivo.
Dizer que há sempre dois lados para a mesma história parece-me redutor. As nossas vidas sofrem tantas influências e tantas delas permanecem incógnitas para nós próprios, como névoas sobre o horizonte: sabe-se que estão lá, mas não se veem. A pura magia de um escritor é dar a ver o mundo como ele existe em nós, revelando quer os lugares esquecidos quer os que mais nos atormentam e ainda, entre uns e outros, tão significativa que é, a panóplia de lugares comuns, banais, secretos, que constituem a nossa vida interior.
Estou a gostar tanto da Elena Ferrante que fui ainda incapaz de retirar qualquer citação que fosse ou sublinhar uma só frase, como é meu hábito. Creio que nunca me tinha acontecido tal coisa com um livro, um livro capaz de me engolfar por inteiro durante horas em que esqueço até que sou alguma coisa que respira e vive a sua própria vida. Já se deve ter escrito muita página sobre este livro, não li nenhuma, não gosto de preparações. Mas imagino agora que todas digam mais ou menos o mesmo, exaltando-o de uma forma ou de outra. Seria impossível para mim. Neste momento a minha vida é a vida do livro e, fruto do que porventura é demasiado íntimo e intenso, não há nada que possa dizer sobre ele.
20 de janeiro de 2017
15 de janeiro de 2017
Comecei a trabalhar cedo, embora não tão cedo quanto porventura os meus avós começaram, por volta dos 15, 16 anos, primeiro em apanhas da uva e da azeitona, depois em bares, pastelarias, restaurantes, lojas de roupa e de bugigangas, bibliotecas, entre outros. Sempre trabalhei enquanto estudava, quer para ter uns trocos, quer por fim para terminar o curso. A princípio, ainda pensava — embora a isso induzida e sem real vontade — que um dia iria encontrar um bom emprego, uma coisa que eu gostasse verdadeiramente de fazer e cujos rendimentos me permitissem viajar depois de pagar as contas. Na minha inocência, desconhecia então que as promessas que me tinham feito («se te esforçares, encontrarás») eram nulas. Algures durante o percurso, o trabalho passou a representar portanto um esforço vão, e o que me cai na conta muitas vezes nem chega para tudo. Claro que cometi erros nas decisões que tomei. Recusei-me por exemplo a viver exilada, a receber cunhas, como me recusei a trabalhar para multinacionais, nomeadamente relacionadas com a banca e com petrolíferas. Também me despedi quando me disseram que tinha de trabalhar no dia 1 de maio e não baixei a cabeça em silêncio quando me encontrei debaixo de gritos dos patrões. Com isto, fiz do caminho um calvário que não está prestes a terminar. Tudo excelentes razões, parece-me, para que tenha lançado a puro descrédito o valor do trabalho, tornando-se este um flagelo que tenho de suportar todos os dias. As pessoas que gostam de trabalhar, mesmo fora de horas e ao fim de semana, tornaram-se algozes brutais, por alimentarem o movimento da roda de onde hoje me esforço por sair. Ignoro o que as motiva e ignoro como conseguem encontrar no trabalho motivos de emancipação, realização e felicidade. Um amigo disse-me um dia que deveria escolher o trabalho que pagasse para fazer e não o trabalho que pagasse bem. Mas a verdade é que o único trabalho que pagaria para fazer não paga nem bem nem mal, não paga nada, e esse acaba por ser mesmo um dos seus atributos mais valiosos. Aquilo que gosto de fazer é completamente inútil, anónimo, um desperdício de tempo na plena aceção da palavra. O tempo, esse que dizem que vale dinheiro, torna-se fruição, paixão, transformando cada momento em vida a gerar vida.
11 de janeiro de 2017
10 de janeiro de 2017
Quando era pequena — tanto que as minhas memórias desse tempo são vagas —, tinha um ritual que forçava a minha família a cumprir: devíamos reunir-nos aos domingos, em casa da minha avó, para o «chá com todos». A pequena mesa da sala, com pés finos e um tampo de mármore, sobre a qual a minha avó colocava uma toalha de renda fina, enchia-se de bolos de cabeça, brendeiras, línguas de veado, bolos de noz e de amêndoa e, claro está, um bule de chá, forte e cheiroso. Se porventura alguém dissesse que não podia estar presente no próximo domingo eu sofria a maior das angústias, massacrando os meus pais com porquês e procurando convencê-los a convencer o familiar em questão a estar presente. Não sei exatamente quando deixámos de nos reunir mas creio que foi por altura do divórcio dos meus pais, quando eu, por muita angústia que guardasse, já não falava. Ainda hoje, porém, frequentemente me interrogo sobre a intensidade emocional que estes encontros me causavam e que, de alguma forma, penso estar ligada a um desejo de integração frustrado que a demanda comunitária pretendia disfarçar. Como a solidão pode ser tão relevante desde logo na infância é algo que me surpreende. Durante muitos anos mantive a convicção de que poderia adaptar-me, senão à sociedade (pois o que é a sociedade?) pelo menos a um grupo, qualquer grupo. No entanto, nunca fui nada. Enquanto me juntava ao grande trânsito da cidade, subindo e descendo escadas para apanhar transportes, correndo para conseguir um lugar nas filas, ouvindo o rádio, vendo televisão, procurando um lugar nas repartições do Estado, sabia que a grande diferença entre mim e aquelas pessoas era que eu não tinha casa e, por isso, o meu tempo sempre foi contemplativo, sem afã. As minhas urgências encontram-se rodeadas de incompreensão, não só dos outros em relação a elas mas também de mim em relação aos outros e fundamentalmente em relação à vida em si. Não posso dizer que não tenho já o desejo de me integrar. Quando vejo casais com prole, quando sei de amigos que viajam ou que produziram alguma coisa, ocorre uma centelha despertar em mim a pergunta «e não poderia eu?». Contudo, já não tenho a ilusão de pertencer e mesmo essa centelha é cada vez mais longínqua, rara e ténue. Sei que, ainda que fizesse alguma dessas coisas, seria sempre de modo isolado, pois o meu país, a minha casa, consumiu-se, desapareceu, se é que alguma vez existiu, e não haverá regresso. Levei anos para conseguir encontrar nisso alguma paz e, se a encontrei, foi também através do exemplo de pessoas que muito prezo e que aceitam, não sem por vezes a contestarem, a minha simplicidade e a minha ignorância. Mas as pessoas, como as casas, não permanecem. E é assim que está bem; embora todos procuremos alguém que nos compreenda, esse momento redentor, para quem tem a sorte de o viver, será efémero. Outra razão essencial foi a literatura, cujo encontro silencioso sem cessar me enriquece.
7 de janeiro de 2017
Há noites em que me acordo a falar. Não se trata de um discurso qualquer, por vezes sequer é um discurso, antes apenas uma palavra, como por exemplo NÃO, para referir uma das mais recorrentes. Esse momento do sonho — porque estas palavras estão inseridas num contexto preciso — é de tal forma violento que todo o meu corpo se rebela e reage com uma fúria, uma certeza e uma determinação implacáveis, conduzindo-me à vigília ou, mais precisamente, conduzindo o próprio sonho à vigília. Se são ou não gritos, não sei bem. Sei que me levanto ao pronunciar essas palavras e que a minha força nesse instante (força da voz, força do corpo) consegue tornar indiscernível a fronteira entre o sonho e a vigília, de modo que preciso de algum tempo até deixar definitivamente de sonhar o sonho que me acordou. Estes são os melhores sonhos. Há outros em que é apenas o corpo que luta, e a voz, por alguma razão misteriosa, permanece muda. Uma grande tristeza me inunda quando acordo e invariavelmente penso: «ainda não sei falar».
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