21 de janeiro de 2017
Forçar-me a comer. Quando penso na minha infância, é fatal associar-lhe um quotidiano preenchido pela recusa em comer e pelo asco da comida. A minha avó muito sofreu, todos os dias ia a casa dela para almoçar e ficava a brincar com os talheres, o copo e o guardanapo, tudo o que me permitia fugir ao prato que tinha à frente. Podia ficar horas nisso, e muitas vezes fiquei, proibida de me levantar antes de ter terminado a refeição, o que nunca resultava. A comida fria ia para o lixo, os gritos culminavam. No jardim-escola tinham um hábito extraordinário: à medida que a hora de sair do refeitório se aproximava, as auxiliares enchiam o prato de sopa com o segundo e a fruta e forçavam-me a comer, abrindo e fechando-me a boca com as mãos. Isto passou-se dia após dia durante anos e depois, em casa, ouvia ainda mais gritos porque os meus pais recebiam as queixas das educadoras. Durou até que a minha irmã, já no final da pré-escola, lhes contou o que faziam, altura em que a minha mãe foi pessoalmente à escola dizer que se eu não quisesse comer não deviam obrigar-me. Muito mais tarde, acabei por ter prazer em comer e passei a comer de tudo, desde que não fosse cozinhado por mim. Ainda assim, graças ao micro-ondas, onde posso aquecer uma sopa, e à fruta, há alturas em que posso passar dias sem comer uma refeição completa. Devíamos poder alimentar-nos apenas de fruta. Há tempos explicaram-me que, para as crianças, os alimentos representam a descoberta do mundo. Os sabores, sempre novos, exigem-lhes uma adaptação feroz, que deve ser feita com bonomia. Isso fez-me pensar que, algures no meu passado, o mundo se tornou algo de que tinha de defender-me e cuja ameaça está sempre a pairar. Era assim, de facto, que o percebia, sobretudo quando até em casa sofria as consequências de quem não está predisposta a comer. A minha amizade com o mundo, alegre e inconsequente, nasceu mais tarde, quando me permiti não comer, ter fome e aprender a cozinhar. Nos dias em que, vezes sem conta, abro e fecho o frigorífico sem conseguir pegar na peça de carne ou peixe que tenho para preparar, é todavia o asco que regressa e um sentimento de separação total predomina, como um jejum que fazemos para nos purificarmos. A comida — o cheiro da comida, o toque da comida, a mistura das comidas — volta a tornar-se torturante, tal um hábito nocivo que é difícil abandonar, e sou eu que finalmente me obrigo a comer. Já não é porém o vómito que se sucede, mas antes a satisfação. A emancipação tem algo que ver com isto, com a descoberta de que há quietude e conforto para lá do útero das nossas mães e que é um banquete estar vivo.