28 de março de 2015

nunca mais quero escrever numa língua voraz,
porque já sei que não há entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,
para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo —
estou farto de tanto vazio à volta de nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,
e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-las numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio


Herberto Helder, Servidões, 2013.
Bilhete Postal Negro

I.
Calendário repleto de compromissos, futuro incerto.
O rádio trauteia uma canção popular sem nacionalidade.
Cai neve no mar totalmente gelado. Vultos acotovelam-se no cais.

II.
Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta
e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida,
e a vida continua. O fato, porém, esse é cosido em silêncio.

Tomas Tranströmer, 50 Poemas, 2012.
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega

Herberto Helder

21 de março de 2015

Moi-même je dois en périr,
Le cœur me fait si mal,
Je voudrais mourir de douleur
En voyant ma propre image


Heinrich Heine, A Lorelei, 1823.
Et ajoutes: finie, l’harmonie sonore
Tu as aimé Mozart en pure perte
Vient maintenant la surdité des araignées
Cette chute dépasse nos forces

Nadezhda Mandelstam
tenho saudades de ruas onde ecoa apenas o som dos nossos próprios passos. é talvez — ou sem dúvida —, ter saudades de um certo tipo de solidão. a solidão do viajante, ou melhor, do wanderer, daquele cuja vida não se dissocia da deriva e do seu profundo silêncio, que estabelece a presença (do corpo no tempo) e, por isso também, da treva onde toda a intimidade com o mundo se aloja. em suma, tenho saudades de certa solidão infantil, onde todas as fantasias se gozam e que, ao invés de experimentar a fugacidade do tempo, apenas tem nele lugar, entre todas as coisas.
Und ich wand're sonder Massen. [E eu caminho sem medida] (Schubert, Die Winterreise). 

19 de março de 2015

eu já tinha mais de vinte anos quando descobri que há pessoas que nunca caminham pelas ruas. acordam nas suas casas aquecidas, limpas, arrumadas, tomam banho, cobrem o corpo de vestes, talvez escolhidas na véspera, saem, por vezes de óculos escuros, descem de elevador à garagem, atravessam as cidades dentro da embarcação que as silencia e dentro da qual se ouve música, estacionam na garagem das suas empresas, sobem até ao escritório pelo elevador e aí passam o dia. talvez saiam à hora de almoço à rua, onde há lojas e restaurantes que têm mesas com placas em cima a dizer «reservado». mas seja como for, não caminham pelas ruas, isto é, nunca levam com a vida na cara. são pessoas que, por exemplo, sequer sabem usar uma passadeira, pois raramente as atravessam. e isto sei-o porque os vi, essas mulheres e esses homens, sentada dentro do meu carro, parado na passadeira. debaixo dos óculos escuros, o porte da sua cabeça é altivo, mas o movimento dos seus pés e joelhos suporta toda a desorientação. vi-os nas suas casas, 35º graus no interior, -9º lá fora. vi os seus armários, percorri o caminho das casas até aos carros guardados nas garagens e vi a sola dos sapatos gastos sobre carpetes e tapetes de cimento liso. vi-os fazer listas de compras, falar ao telefone, dançar, organizar jantares, conversar, pensar, observar. se digo que tinha mais de vinte anos quando o descobri não é por acaso nem para fazer recurso de qualquer figura estilística. descobrir uma coisa destas aos vinte anos não é o mesmo que descobri-lo aos quatro ou aos quinze. com essa idade, para mim, que obtinha grande prazer (e uso a palavra prazer num sentido lato, porque o prazer também jorra do improvável — e que justo é dizer dele ser improvável —, como o luto e a derisão) justamente em caminhar pela rua, conceber a ideia foi difícil, à semelhança de tentar quebrar um enigma durante muito tempo. para o resolver, tive de perceber que também o impossível é possível, que também o impensável tem atribuição, que todo o contrário a todo o contrário tem o seu lugar no mundo, tal como eu tenho. com cinco ou seis anos, a perceção disto ter-me-ia formado, no modo do desastre ou em adequatio. aos vinte anos apenas revelou a semente de uma melancolia precoce, de um mistério, que muito tem crescido e que a cada transformação me continua a surpreender.

18 de março de 2015

Un récit ? Non, pas de récit, plus jamais.

Maurice Blanchot, La Folie du Jour

15 de março de 2015

October 22nd, 1938

Ossia, my beloved, faraway sweetheart!

I have no words, my darling, to write this letter that you may never read, perhaps. I am writing in empty space. Perhaps you will come back and not find me here. Then this will be all you have to remember me by.
Osia, what a joy it was living together like children – all our squabbles and arguments, the games we played, and our love. Now I do not even look at the sky. If I see a cloud, who can I show it to?
Remember the way we brought back provisions to make our poor feasts in all the places where we pitched our tent like nomads? Remember the good taste of bread when we got it by a miracle and ate it together? And our last winter in Voronezh. Our happy poverty, and the poetry you wrote. I remember the time we were coming back once from the baths, when we bought some eggs or sausage, and a cart went by loaded with hay. It was still cold and I was freezing in my short jacket (but nothing like what we must suffer now: I know how cold you are). That day comes back to me now. I understand so clearly, and ache from the pain of it, that those winter days with all their troubles were the greatest and last happiness to be granted us in life.
My every thought is about you. My every tear and every smile is for you. I bless every day and hour of our bitter life together, my sweetheart, my companion, my blind guide in life.
Like two blind puppies we were, nuzzling each other and feeling so good together. And how fevered your poor head was, and how madly we frittered away the days of our life. What joy it was, and how we always knew what joy it was.
Life can last so long. How hard and long for each of us to die alone. Can this fate be for us who are inseparable? Puppies and children, did we deserve this? Did you deserve this, my angel? Everything goes on as before. I know nothing. Yet I know everything – each day and hour of your life are plain and clear to me as in a delirium.
You came to me every night in my sleep, and I kept asking what had happened, but you did not reply.
In my last dream I was buying food for you in a filthy hotel restaurant. The people with me were total strangers. When I had bought it, I realized I did not know where to take it, because I do not know where you are.
When I woke up, I said to Shura: ‘Ossia is dead.’ I do not know whether you are still alive, but from the time of that dream, I have lost track of you. I do not know where you are. Will you hear me? Do you know how much I love you? I could never tell you how much I love you. I cannot tell you even now. I speak only to you, only to you. You are with me always, and I who was such a wild and angry one and never learned to weep simple tears – now I weep and weep and weep.
It’s me: Nadezhda. Where are you?

Farewell.

Nadezhda

14 de março de 2015

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo tal como ele foi efetivamente. É muito mais apropriar-se de uma recordação que brilha num momento de perigo.

Walter Benjamin in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política.

9 de março de 2015

quando ela disse gosto tanto de ti, quis continuar a dizê-lo, como se entre essas palavras não houvesse respirar. entre os sorrisos de ambos, ela sorria também ao silêncio dele e à distância que com ele mantinha, como se a honrasse, apesar de sofrer com cada despedida, porque ele já não podia ouvir o que não tinha suspensão. a única esperança (a coisa mais estável da vida, porque nela se inclui a esperança, ou a indubitabilidade, da sua própria destruição), era que por um momento, um momento, ele soubesse que era inteiramente amado.

5 de março de 2015

o que guardo da indisciplina, da desobediência e da insubordinação, é o melhor da vida. o ser humano não é livre porque é humano, mas porque, como todos os seres, participa da liberdade, que é a essência do ser em geral. historicamente, conceptualmente e politicamente, a liberdade constitui-se como uma articulação problemática, um problema metafísico e uma questão antropológica. contudo, aquilo a que me refiro como o melhor da vida, sendo liberdade e por isso participando da essência do ser em geral, se assim o posso dizer, escapa-lhe absolutamente. ver o tempo passar, na pele, no mundo, na natureza, imersa no inescrutável silêncio do mundo, não é mais do que contemplar a necessidade sem princípio nem fim a que tudo está submetido. aí reside a alegria, aí reside a melancolia, a alegria melancólica, de quem vive e vê a morte aproximar-se. ao contrário do que poderá pensar-se, não há nisto desespero, terror, sequer mesmo contradição. em todo o nosso corpo só há lembrança. a presença está em suspenso nesse espaço onde a abertura eclode, na casa onde somos acolhidos pela nossa própria inumanidade, vácua, oca, vil, sombria e sublimemente intrincada. e as mãos são o traço inconcebível desse compromisso extremo, ilimitado e mortal, absoluto e finito. assinalam o compromisso do corpo na abertura ao trânsito do limiar, onde a procura é interminável e onde o silêncio é a única coisa que aparece.
Qohélet, o sábio: a sabedoria daquele que vê, que priva de ordem e graça o próprio verbo, para quem a sabedoria é um excesso inútil. O bom-senso é aqui convertido em coisa atroz.

Qohélet, Eclesiastes.
Ouvido ontem numa lição de Maria Filomena Molder aqui.

4 de março de 2015

Quem vigia o vento não semeia, quem observa as nuvens não ceifa.

Qohélet, Eclesiastes.
Ouvido hoje numa lição de Maria Filomena Molder aqui.

27 de fevereiro de 2015

coisas sobre o fogo:
  • Fénix
  • a Sarça Ardente, a acácia Seneh que, ateada de fogo, não se consumia
  • Joana d'Arc
  • Leonard Cohen, Who by fire
  • Heraclito, fragmento 16
  • elemento cósmico a que corresponde o calar
  • a Serra a arder
  • uma mesa braseira