19 de março de 2015

eu já tinha mais de vinte anos quando descobri que há pessoas que nunca caminham pelas ruas. acordam nas suas casas aquecidas, limpas, arrumadas, tomam banho, cobrem o corpo de vestes, talvez escolhidas na véspera, saem, por vezes de óculos escuros, descem de elevador à garagem, atravessam as cidades dentro da embarcação que as silencia e dentro da qual se ouve música, estacionam na garagem das suas empresas, sobem até ao escritório pelo elevador e aí passam o dia. talvez saiam à hora de almoço à rua, onde há lojas e restaurantes que têm mesas com placas em cima a dizer «reservado». mas seja como for, não caminham pelas ruas, isto é, nunca levam com a vida na cara. são pessoas que, por exemplo, sequer sabem usar uma passadeira, pois raramente as atravessam. e isto sei-o porque os vi, essas mulheres e esses homens, sentada dentro do meu carro, parado na passadeira. debaixo dos óculos escuros, o porte da sua cabeça é altivo, mas o movimento dos seus pés e joelhos suporta toda a desorientação. vi-os nas suas casas, 35º graus no interior, -9º lá fora. vi os seus armários, percorri o caminho das casas até aos carros guardados nas garagens e vi a sola dos sapatos gastos sobre carpetes e tapetes de cimento liso. vi-os fazer listas de compras, falar ao telefone, dançar, organizar jantares, conversar, pensar, observar. se digo que tinha mais de vinte anos quando o descobri não é por acaso nem para fazer recurso de qualquer figura estilística. descobrir uma coisa destas aos vinte anos não é o mesmo que descobri-lo aos quatro ou aos quinze. com essa idade, para mim, que obtinha grande prazer (e uso a palavra prazer num sentido lato, porque o prazer também jorra do improvável — e que justo é dizer dele ser improvável —, como o luto e a derisão) justamente em caminhar pela rua, conceber a ideia foi difícil, à semelhança de tentar quebrar um enigma durante muito tempo. para o resolver, tive de perceber que também o impossível é possível, que também o impensável tem atribuição, que todo o contrário a todo o contrário tem o seu lugar no mundo, tal como eu tenho. com cinco ou seis anos, a perceção disto ter-me-ia formado, no modo do desastre ou em adequatio. aos vinte anos apenas revelou a semente de uma melancolia precoce, de um mistério, que muito tem crescido e que a cada transformação me continua a surpreender.