15 de março de 2015

October 22nd, 1938

Ossia, my beloved, faraway sweetheart!

I have no words, my darling, to write this letter that you may never read, perhaps. I am writing in empty space. Perhaps you will come back and not find me here. Then this will be all you have to remember me by.
Osia, what a joy it was living together like children – all our squabbles and arguments, the games we played, and our love. Now I do not even look at the sky. If I see a cloud, who can I show it to?
Remember the way we brought back provisions to make our poor feasts in all the places where we pitched our tent like nomads? Remember the good taste of bread when we got it by a miracle and ate it together? And our last winter in Voronezh. Our happy poverty, and the poetry you wrote. I remember the time we were coming back once from the baths, when we bought some eggs or sausage, and a cart went by loaded with hay. It was still cold and I was freezing in my short jacket (but nothing like what we must suffer now: I know how cold you are). That day comes back to me now. I understand so clearly, and ache from the pain of it, that those winter days with all their troubles were the greatest and last happiness to be granted us in life.
My every thought is about you. My every tear and every smile is for you. I bless every day and hour of our bitter life together, my sweetheart, my companion, my blind guide in life.
Like two blind puppies we were, nuzzling each other and feeling so good together. And how fevered your poor head was, and how madly we frittered away the days of our life. What joy it was, and how we always knew what joy it was.
Life can last so long. How hard and long for each of us to die alone. Can this fate be for us who are inseparable? Puppies and children, did we deserve this? Did you deserve this, my angel? Everything goes on as before. I know nothing. Yet I know everything – each day and hour of your life are plain and clear to me as in a delirium.
You came to me every night in my sleep, and I kept asking what had happened, but you did not reply.
In my last dream I was buying food for you in a filthy hotel restaurant. The people with me were total strangers. When I had bought it, I realized I did not know where to take it, because I do not know where you are.
When I woke up, I said to Shura: ‘Ossia is dead.’ I do not know whether you are still alive, but from the time of that dream, I have lost track of you. I do not know where you are. Will you hear me? Do you know how much I love you? I could never tell you how much I love you. I cannot tell you even now. I speak only to you, only to you. You are with me always, and I who was such a wild and angry one and never learned to weep simple tears – now I weep and weep and weep.
It’s me: Nadezhda. Where are you?

Farewell.

Nadezhda

14 de março de 2015

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo tal como ele foi efetivamente. É muito mais apropriar-se de uma recordação que brilha num momento de perigo.

Walter Benjamin in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política.

9 de março de 2015

quando ela disse gosto tanto de ti, quis continuar a dizê-lo, como se entre essas palavras não houvesse respirar. entre os sorrisos de ambos, ela sorria também ao silêncio dele e à distância que com ele mantinha, como se a honrasse, apesar de sofrer com cada despedida, porque ele já não podia ouvir o que não tinha suspensão. a única esperança (a coisa mais estável da vida, porque nela se inclui a esperança, ou a indubitabilidade, da sua própria destruição), era que por um momento, um momento, ele soubesse que era inteiramente amado.

5 de março de 2015

o que guardo da indisciplina, da desobediência e da insubordinação, é o melhor da vida. o ser humano não é livre porque é humano, mas porque, como todos os seres, participa da liberdade, que é a essência do ser em geral. historicamente, conceptualmente e politicamente, a liberdade constitui-se como uma articulação problemática, um problema metafísico e uma questão antropológica. contudo, aquilo a que me refiro como o melhor da vida, sendo liberdade e por isso participando da essência do ser em geral, se assim o posso dizer, escapa-lhe absolutamente. ver o tempo passar, na pele, no mundo, na natureza, imersa no inescrutável silêncio do mundo, não é mais do que contemplar a necessidade sem princípio nem fim a que tudo está submetido. aí reside a alegria, aí reside a melancolia, a alegria melancólica, de quem vive e vê a morte aproximar-se. ao contrário do que poderá pensar-se, não há nisto desespero, terror, sequer mesmo contradição. em todo o nosso corpo só há lembrança. a presença está em suspenso nesse espaço onde a abertura eclode, na casa onde somos acolhidos pela nossa própria inumanidade, vácua, oca, vil, sombria e sublimemente intrincada. e as mãos são o traço inconcebível desse compromisso extremo, ilimitado e mortal, absoluto e finito. assinalam o compromisso do corpo na abertura ao trânsito do limiar, onde a procura é interminável e onde o silêncio é a única coisa que aparece.
Qohélet, o sábio: a sabedoria daquele que vê, que priva de ordem e graça o próprio verbo, para quem a sabedoria é um excesso inútil. O bom-senso é aqui convertido em coisa atroz.

Qohélet, Eclesiastes.
Ouvido ontem numa lição de Maria Filomena Molder aqui.

4 de março de 2015

Quem vigia o vento não semeia, quem observa as nuvens não ceifa.

Qohélet, Eclesiastes.
Ouvido hoje numa lição de Maria Filomena Molder aqui.

27 de fevereiro de 2015

coisas sobre o fogo:
  • Fénix
  • a Sarça Ardente, a acácia Seneh que, ateada de fogo, não se consumia
  • Joana d'Arc
  • Leonard Cohen, Who by fire
  • Heraclito, fragmento 16
  • elemento cósmico a que corresponde o calar
  • a Serra a arder
  • uma mesa braseira
A nossa entrada [na CEE] vai provocar gravíssimos retrocessos no país, a Europa não é solidária com ninguém, explorar-nos-á miseravelmente como grande agiota que nunca deixou de ser. A sua vocação é ser colonialista. A sua influência (dos retornados) na sociedade portuguesa não vai sentir-se apenas agora, embora seja imensa. Vai dar-se sobretudo quando os seus filhos, hoje crianças, crescerem e tomarem o poder. Essa será uma geração bem preparada e determinada, sobretudo muito realista devido ao trauma da descolonização, que não compreendeu nem aceitou, nem esqueceu. Os genes de África estão nela para sempre, dando-lhe visões do país diferentes das nossas. Mais largas mas menos profundas. Isso levará os que desempenharem cargos de responsabilidade a cair na tentação de querer modificar-nos, por pulsões inconscientes de, sei lá, talvez vingança!
Portugal vai entrar num tempo de subcultura, de retrocesso cultural, como toda a Europa, todo o Ocidente. Mais de oitenta por cento do que fazemos não serve para nada. E ainda querem que trabalhemos mais. Para quê? Além disso, a produtividade hoje não depende já do esforço humano, mas da sofisticação tecnológica. Os neoliberais vão tentar destruir os sistemas sociais existentes, sobretudo os dirigidos aos idosos. Só me espanta que perante esta realidade ainda haja pessoas a por gente neste desgraçado mundo e votos neste reaccionário centrão.
Há a cultura, a fé, o amor, a solidariedade. Que será, porém, de Portugal quando deixar de ter dirigentes que acreditem nestes valores? As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis. Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito tempo. A Comunidade Europeia vai ser um logro. O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de Abril, e Estado Social e a independência nacional sofrerão gravíssimas rupturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por falta de assistência e de comida. Espoliada, a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres. A indiferença que se observa ante, por exemplo, o desmoronar das cidades e o incêndio das florestas é uma antecipação disso, de outras derrocadas a vir.


Natália Correia
sem dúvida, respondeu ele, a olhar para o outro lado da estrada, apesar do sinal estar vermelho para passar. ela aperta-lhe a mão suada que ele quer deslaçar.

24 de fevereiro de 2015

Only this everlasting waiting, eternal helplessness.

Franz Kafka, Diário 1910-1923.

23 de fevereiro de 2015

ambição do escritor em representar a massa, em representar aquilo que representa. e através do contingente, deleite mórbido em demonstrar, irrefutavelmente, a insignificância do significante. procura da beleza, branda, invulgar, simultaneamente abundante e vazia.
várias coisas denunciavam o mau humor do meu pai quando ele entrava em casa: o arfar da sua respiração e a forma assustadora como retinha a fala, cerrando os dentes e os lábios, como que para atrasar a libertação da cólera. mas também o grau de violência com que fechava a porta de casa e a cadência dos seus passos: quanto mais depressa caminhasse e mais pesados fossem os passos, mais negra era a carga que iria despejar. a minha mãe não precisava de fazer muito para nos alertar, simplesmente olhava para nós, um olhar que dizia «cuidado». nós sabíamos o que tínhamos de fazer, ou melhor, o que não podíamos fazer. barulho. nesses dias, assim que ele entrava em casa, eu e a minha irmã interrompíamos a brincadeira ou os trabalhos de casa, íamos para o quarto e tentávamos respirar silenciosamente. no entanto, para funcionar, havia que fingir que isso — o silêncio, o não sair de um canto, a quietude —, correspondia efetivamente a um ambiente normal numa casa com duas crianças pequenas. e isso implicava o confronto. a parte do beijo era mais fácil, era rápido. a parte do jantar e da noite eram as mais difíceis. o medo imperava. sabíamos que nem toda a quietude do mundo seria capaz de evitar os gritos, a fúria. por inexplicáveis, incompreensíveis e injustificáveis que fossem.
num desses dias a minha mãe tinha o jantar pronto. tinha feito açorda, prato que fazia poucas vezes por ser o único prato que eu não comia. para me dar um mimo, nos dias em que fazia açorda ela fazia sempre ovos mexidos com batatas fritas só para mim, que era, ao contrário, um dos meus pratos preferidos, e desta maneira eu não ficava com tanta pena por não estar a comer o mesmo que toda a gente comia. eu era esta criança, que reunia toda a família ao domingo para beber chá e comer bolinhos, por achar importante que estivéssemos juntos. para os convencer dizia-lhes que, se alguém faltasse, isso significava que estávamos ameaçados, que o amor estava ameaçado. todos tinham de ir ao «chá com todos» e todos tinham de beber chá e bolinhos. os ovos mexidos no dia da açorda era um costume já antigo. não é que eu fosse boa boca, não era, mas de alguma forma a minha mãe percebeu que, aquele prato, não conseguia mesmo obrigar-me a comer, e por isso, a partir de determinado momento, deixou de insistir. sentámo-nos à mesa, o meu pai pegou no tacho de barro com a açorda assim que a minha mãe o pousou ao centro e enquanto se servia a minha mãe foi acabar os ovos para me por no prato. o meu prato era branco com flores azuis. o cheiro da açorda era nauseabundo.
começámos a comer, eu deliciada com os meus ovos e batatas fritas, que nesse dia estavam perfeitos.
uma garfada depois, o meu pai pergunta: «mas porque é que ela não está a comer açorda?». congelei. olhei para ele, olhei para a minha mãe, olhei para a minha irmã, não disse nada. nem percebi porque fazia a pergunta, visto que não era uma novidade eu não comer açorda. não percebi se era suposto eu explicar nem sabia como é que havia de explicar uma coisa que estava mais do que explicada. fiquei atónita, mirrei de medo, a minha mãe respondeu: «ela não gosta C.». trocaram-se mais duas ou três frases e de súbito o meu pai levanta-se atirando com a cadeira para trás e dirige-se a mim como um gigante. enche um prato de açorda, senta-se à minha frente, afasta o prato dos ovos e diz-me «come». respondi que não conseguia. pega no prato e numa colher, pede-me para abrir a boca, respondo «não consigo». levanta-se, aperta-me as bochechas com uma mão, a colher na outra que empurra para a boca, pousa o prato, fecha-me a boca com as mãos e aperta-me as narinas gritando «engole». enquanto isto sucedia, a minha irmã e a minha mãe estavam atrás dele, observavam e pediam o mais gentilmente possível que não me obrigasse, mas sem se aproximarem. senti a colherada de açorda, viscosa e repugnante, descer pela garganta. as lágrimas começaram a chegar de enxurrada, como se o corpo estivesse completamente aberto. e ele viu, ficou espantado e sorriu ligeiramente, como se também se orgulhasse com o que ele considerava ser uma rebeldia e que na verdade, todos o sabíamos, não era. nesse momento fugi para o quarto o mais rápido que pude, encostei-me a um canto da cama, na penumbra e calada, rezando para que aquilo tivesse acabado ali. foi quando o ouvi pegar na colher e no prato. e depois os passos pelo corredor, cada vez mais fortes. a minha mãe e irmã seguiram-no até à porta do quarto. a luz acendeu-se e, usando o mesmo método, repetia que «havia de comer aquele prato até ao fim». bastou a ameaça em receber mais uma daquelas colheres na boca, vomitei para cima dele. um vómito-arma, dirigido, para matar. o chão, os pés e as pernas ficaram sujos, ele olhou-os durante uns segundos e depois, provavelmente sem saber o que fazer à fúria, saiu de casa sem dizer palavra.
I am constantly trying to communicate something incommunicable, to explain something inexplicable, to tell about something I only feel in my bones and which can only be experienced in those bones.

Franz Kafka, carta a Milena Jesenska.

22 de fevereiro de 2015

Words and images run riot in my head, pursuing, flying, clashing, merging, endlessly. But beyond this tumult there is a great calm, and a great indifference, never really to be troubled by anything again.

Samuel Beckett, Malone Dies.
sentava-me agora a uma secretária com o meu computador em frente, começava a escrever sobre os meus pais e não saía de lá enquanto não tivesse terminado. comia quando me lembrasse da fome, deitava-me numa cama ou num colchão atrás da secretária para recuperar do sono, saía para caminhar quando alguma coisa me estivesse a bloquear para logo me arrepender e ter de voltar a correr para o computador, eu que odeio correr. o resultado, seria pouco ou seria muito? meia, uma página? cinco, cinquenta, quinhentas páginas? de quanto tempo precisava? de uma tarde, de um mês? um ano, dez? o que tenho para dizer sobre eles? agora sei, neste preciso momento sei, agora começava. agora a indiferença é irrisória. começava pelo fim.