A escolha de um leitor
Primeiro, desejaria que ela fosse bonita,
e que se aproximasse com cuidado da minha poesia
no momento mais solitário de certa tarde,
com o cabelo junto ao pescoço ainda húmido
de o ter lavado. Ela deveria estar com
uma gabardina, velha, suja
por não ter dinheiro suficiente para a lavandaria.
Ela retirará os óculos, e ali
na livraria, folheará
os meus poemas, devolvendo então o livro
à prateleira. Dirá para si mesma,
"Por este dinheiro, posso mandar
limpar a gabardina." E assim fará.
Ted Kooser
29 de novembro de 2014
antigamente, diz-se, as madrugadas eram negras
e os cães farejavam ansiosos o prado
o trigal
até chegarem perto das casas
porém sem nunca atravessarem certo limite
imaginário para nós
que as habitávamos
na desconfiança dessa proximidade nula
embora sentindo o calor do seu faro
e conscientes do orvalho pousado sobre o pelo
durante a noite
não podíamos saber se eram cegos
se atrás da córnea azul e branca dos seus olhos
podiam ver os vultos que nos preenchem
e que nós próprios não podemos ver
por sermos cegos
e territoriais
nas varandas das casas.
os nossos gestos eram brutais
transparentes, magnânimos
os cães desapareciam
e tudo o mais era esperar pelos cães
pela próxima madrugada
abençoadamente negra
com o silêncio à volta
não se sabe se a expandir-se se a invadir
pois era completo e se omitia
o que me lembra que os cães não ladravam
nunca ladravam
farejavam
e as pessoas nas varandas nunca falavam
esperavam sem qualquer desespero
eram imprudentes
enraizadas nas suas incógnitas
nunca diziam sim
nunca diziam não.
não se sabe porque os cães deixaram de aparecer no horizonte
talvez porque os trigais fossem secando
e a enxada não voltasse à terra
e de uma madrugada negra, impiamente pura
viesse um nome
num momento em que ninguém estava à varanda
em silêncio, omitindo-se,
à espera.
a civilização é isto
cresceu destas varandas diante de trigais vislumbrados em manhãs negras
onde cães vadios entravam para farejar
sem se aproximarem
cresceu procurando andar para trás
para trás para trás para trás
para ouvir o nome que por fim chegou numa madrugada
e que apenas o silêncio ouviu
e omitiu.
e os cães farejavam ansiosos o prado
o trigal
até chegarem perto das casas
porém sem nunca atravessarem certo limite
imaginário para nós
que as habitávamos
na desconfiança dessa proximidade nula
embora sentindo o calor do seu faro
e conscientes do orvalho pousado sobre o pelo
durante a noite
não podíamos saber se eram cegos
se atrás da córnea azul e branca dos seus olhos
podiam ver os vultos que nos preenchem
e que nós próprios não podemos ver
por sermos cegos
e territoriais
nas varandas das casas.
os nossos gestos eram brutais
transparentes, magnânimos
os cães desapareciam
e tudo o mais era esperar pelos cães
pela próxima madrugada
abençoadamente negra
com o silêncio à volta
não se sabe se a expandir-se se a invadir
pois era completo e se omitia
o que me lembra que os cães não ladravam
nunca ladravam
farejavam
e as pessoas nas varandas nunca falavam
esperavam sem qualquer desespero
eram imprudentes
enraizadas nas suas incógnitas
nunca diziam sim
nunca diziam não.
não se sabe porque os cães deixaram de aparecer no horizonte
talvez porque os trigais fossem secando
e a enxada não voltasse à terra
e de uma madrugada negra, impiamente pura
viesse um nome
num momento em que ninguém estava à varanda
em silêncio, omitindo-se,
à espera.
a civilização é isto
cresceu destas varandas diante de trigais vislumbrados em manhãs negras
onde cães vadios entravam para farejar
sem se aproximarem
cresceu procurando andar para trás
para trás para trás para trás
para ouvir o nome que por fim chegou numa madrugada
e que apenas o silêncio ouviu
e omitiu.
28 de novembro de 2014
27 de novembro de 2014
No momento em que Júlia se levanta depois de apanhar o jornal do chão,
um sol inesperado surge entre duas nuvens cinzentas de grande densidade, quase negras no cabo. Sem
intervalo, ofuscada pelo clarão, recomeça a caminhar. O passeio de cimento ecoa por baixo dos seus tacões mas as silhuetas que vislumbra adiante são vagas, talvez nem sejam reais. Poderá
ser esta a visão de uma outra cidade, outra vida, outra Júlia, pensa, que por existirem apenas para si, têm de ser provadas. Fica agora muito atenta a essas formas de
luz que a cegam, ela própria sentindo o privilégio pela oportunidade de poder comprovar a sua existência, muito embora esta surja à beira da opacidade e permaneça portanto incerta. Continua a descer a avenida. Repara que as novas
formas são acompanhadas por novos sons, mais intensos, mais minuciosos,
mais cristalinos e a descoberta fá-la sorrir ligeiramente, involuntariamente. Logo depois
desconfia do seu prazer. Júlia desconfia da beleza tanto quanto
desconfia da erudição ou do poder, pois a dedicação excessiva que
exigem parece não poder prescindir da ilusão do seu monopólio, e assim
resultar invariavelmente em embrutecimento. Enquanto hesita, as formas retomam lentamente os contornos familiares. Júlia aperta o jornal na
mão porque o seu coração se encolhe e olha para o céu que, sem que o tivesse visto, voltou a
estar negro. Retorna agora a si, relembra de onde veio, o que faz, para
onde vai, o seu nome, tal como se lesse uma partitura, surpreendendo-se finalmente ao perceber que no conjunto da melodia, a sonoridade dessas notas é justamente a menos audível.
26 de novembro de 2014
Quase
Não sei o que é mais grave
atrever-me a escrever esta linha
ou atrever-me a viver
sabendo que a tinta desaparece
e o sangue seca
e nenhum guarda vestígios
talvez só uma mancha disforme
no chão da cozinha
uma memória do que nunca foi
nem podia ter sido
o mundo é feito de silêncio
entre os seres
quebrar esse pacto
é construir um espaço de solidão.
Fábio Neves Marcelino
Não sei o que é mais grave
atrever-me a escrever esta linha
ou atrever-me a viver
sabendo que a tinta desaparece
e o sangue seca
e nenhum guarda vestígios
talvez só uma mancha disforme
no chão da cozinha
uma memória do que nunca foi
nem podia ter sido
o mundo é feito de silêncio
entre os seres
quebrar esse pacto
é construir um espaço de solidão.
Fábio Neves Marcelino
24 de novembro de 2014
Para os usos correntes da vida, os gestos da mão emprestaram ímpeto à linguagem, ajudaram a articulá-la, a distinguir os seus elementos, a isolá-los de um vasto sincretismo simbólico, a ritmá-la e mesmo a colori-la de inflexões subtis. Dessa mímica da fala, dessas trocas entre a voz e as mãos,
resta alguma coisa daquilo a que os antigos chamavam de ação oratória.
Henri Focillon, Elogio da mão.
resta alguma coisa daquilo a que os antigos chamavam de ação oratória.
Henri Focillon, Elogio da mão.
23 de novembro de 2014
Regra geral, os homens esperam a decepção: sabem que não precisam de
se impacientar, que ela mais cedo ou mais tarde chegará, que lhes
concederá o prazo necessário para que se possam dedicar às coisas que
estão a fazer. Assim não acontece com o desiludido, para quem ela surge
ao mesmo tempo que o acto; ele não precisa de a aguardar, ela já está
presente. Ao libertar-se da sucessão, ele devorou o possível e tornou
supérfluo o futuro. «Não posso encontrar-me convosco no vosso futuro
— diz aos outros. — Não há um único instante que nos seja comum». Pois
para ele, todo o futuro está já ali. Quando percebemos o fim no começo,
andamos mais depressa do que o tempo. A iluminação, decepção fulminante,
concede uma certeza que transforma o desiludido em liberto.
Cioran, Do inconveniente de ter nascido.
Cioran, Do inconveniente de ter nascido.
21 de novembro de 2014
desde que Penélope passou a esperar decorreram vinte anos. o reencontro está para breve, Ulisses aportará à costa de Ítaca, sem rosto e sem caminho, para ser conduzido à porta de casa. mas isso ainda ninguém o sabe. em troca da sua perseverança, a Penélope resta por ora apenas um fio de voz. esqueceu, por exemplo, que o mundo não é apenas feito de silêncio, que a constância das estações e do labor não chega para disfarçar o terrível trabalho do tempo a dissipar-se e a adensar-se. ocorre frequentemente que confunda o princípio e o fim, como quando se senta para comer e percebe que já não tem fome ou quando acorda e vê que é novamente noite. há muito que decidiu fazer o mergulho — e há nisto certa perversão irrecuperável — numa indolência maciça, que a protege sem a embaraçar. as conversas que mantém são estranhas, transformando-se muitas vezes em monólogos misteriosos onde a angústia ressoa incompreensivelmente. o desejo imobiliza-a. Penélope não dorme, sonha. o vento está parado, o orvalho desceu sobre a areia na praia, nenhum pássaro canta, os criados dormem e uma mulher odeia profundamente os impulsos secretos do seu corpo, que a tornam irritável e sombria. inútil. nada mais que um animal plácido a envelhecer em face a uma tremura imperceptível, pura, embora há muito já não acredite na pureza. de pé ante uma estreita fronteira, os punhos cerrados e num incêndio.
20 de novembro de 2014
20.11.2014
On ne pourra jamais faire voir à quelqu’un ce qu’il n’a pas vu lui-même, découvrir ce qu’il n’a pas découvert lui seul. Jamais sans détruire sa vue, quelque soit l’usage qu’il en fait, sa vue.
Ce spectateur, je crois qu’il faut l’abandonner à lui-même, s’il doit changer, il changera, comme tout le monde, d’un coup ou lentement, à partir d’une phrase entendue dans la rue, d’un amour, d’une lecture, d’une rencontre, mais seul. Dans un affrontement solitaire avec le changement.
Ce spectateur, je crois qu’il faut l’abandonner à lui-même, s’il doit changer, il changera, comme tout le monde, d’un coup ou lentement, à partir d’une phrase entendue dans la rue, d’un amour, d’une lecture, d’une rencontre, mais seul. Dans un affrontement solitaire avec le changement.
Marguerite Duras, Le spectateur, in Les Yeux verts, 1980.
Subscrever:
Mensagens (Atom)