antigamente, diz-se, as madrugadas eram negras
e os cães farejavam ansiosos o prado
o trigal
até chegarem perto das casas
porém sem nunca atravessarem certo limite
imaginário para nós
que as habitávamos
na desconfiança dessa proximidade nula
embora sentindo o calor do seu faro
e conscientes do orvalho pousado sobre o pelo
durante a noite
não podíamos saber se eram cegos
se atrás da córnea azul e branca dos seus olhos
podiam ver os vultos que nos preenchem
e que nós próprios não podemos ver
por sermos cegos
e territoriais
nas varandas das casas.
os nossos gestos eram brutais
transparentes, magnânimos
os cães desapareciam
e tudo o mais era esperar pelos cães
pela próxima madrugada
abençoadamente negra
com o silêncio à volta
não se sabe se a expandir-se se a invadir
pois era completo e se omitia
o que me lembra que os cães não ladravam
nunca ladravam
farejavam
e as pessoas nas varandas nunca falavam
esperavam sem qualquer desespero
eram imprudentes
enraizadas nas suas incógnitas
nunca diziam sim
nunca diziam não.
não se sabe porque os cães deixaram de aparecer no horizonte
talvez porque os trigais fossem secando
e a enxada não voltasse à terra
e de uma madrugada negra, impiamente pura
viesse um nome
num momento em que ninguém estava à varanda
em silêncio, omitindo-se,
à espera.
a civilização é isto
cresceu destas varandas diante de trigais vislumbrados em manhãs negras
onde cães vadios entravam para farejar
sem se aproximarem
cresceu procurando andar para trás
para trás para trás para trás
para ouvir o nome que por fim chegou numa madrugada
e que apenas o silêncio ouviu
e omitiu.