27 de novembro de 2014
No momento em que Júlia se levanta depois de apanhar o jornal do chão,
um sol inesperado surge entre duas nuvens cinzentas de grande densidade, quase negras no cabo. Sem
intervalo, ofuscada pelo clarão, recomeça a caminhar. O passeio de cimento ecoa por baixo dos seus tacões mas as silhuetas que vislumbra adiante são vagas, talvez nem sejam reais. Poderá
ser esta a visão de uma outra cidade, outra vida, outra Júlia, pensa, que por existirem apenas para si, têm de ser provadas. Fica agora muito atenta a essas formas de
luz que a cegam, ela própria sentindo o privilégio pela oportunidade de poder comprovar a sua existência, muito embora esta surja à beira da opacidade e permaneça portanto incerta. Continua a descer a avenida. Repara que as novas
formas são acompanhadas por novos sons, mais intensos, mais minuciosos,
mais cristalinos e a descoberta fá-la sorrir ligeiramente, involuntariamente. Logo depois
desconfia do seu prazer. Júlia desconfia da beleza tanto quanto
desconfia da erudição ou do poder, pois a dedicação excessiva que
exigem parece não poder prescindir da ilusão do seu monopólio, e assim
resultar invariavelmente em embrutecimento. Enquanto hesita, as formas retomam lentamente os contornos familiares. Júlia aperta o jornal na
mão porque o seu coração se encolhe e olha para o céu que, sem que o tivesse visto, voltou a
estar negro. Retorna agora a si, relembra de onde veio, o que faz, para
onde vai, o seu nome, tal como se lesse uma partitura, surpreendendo-se finalmente ao perceber que no conjunto da melodia, a sonoridade dessas notas é justamente a menos audível.