Quando leio sou uma ótima pessoa, inócua e silenciosa, e não cometo nenhuma estupidez.
Robert Walser
28 de novembro de 2014
27 de novembro de 2014
No momento em que Júlia se levanta depois de apanhar o jornal do chão,
um sol inesperado surge entre duas nuvens cinzentas de grande densidade, quase negras no cabo. Sem
intervalo, ofuscada pelo clarão, recomeça a caminhar. O passeio de cimento ecoa por baixo dos seus tacões mas as silhuetas que vislumbra adiante são vagas, talvez nem sejam reais. Poderá
ser esta a visão de uma outra cidade, outra vida, outra Júlia, pensa, que por existirem apenas para si, têm de ser provadas. Fica agora muito atenta a essas formas de
luz que a cegam, ela própria sentindo o privilégio pela oportunidade de poder comprovar a sua existência, muito embora esta surja à beira da opacidade e permaneça portanto incerta. Continua a descer a avenida. Repara que as novas
formas são acompanhadas por novos sons, mais intensos, mais minuciosos,
mais cristalinos e a descoberta fá-la sorrir ligeiramente, involuntariamente. Logo depois
desconfia do seu prazer. Júlia desconfia da beleza tanto quanto
desconfia da erudição ou do poder, pois a dedicação excessiva que
exigem parece não poder prescindir da ilusão do seu monopólio, e assim
resultar invariavelmente em embrutecimento. Enquanto hesita, as formas retomam lentamente os contornos familiares. Júlia aperta o jornal na
mão porque o seu coração se encolhe e olha para o céu que, sem que o tivesse visto, voltou a
estar negro. Retorna agora a si, relembra de onde veio, o que faz, para
onde vai, o seu nome, tal como se lesse uma partitura, surpreendendo-se finalmente ao perceber que no conjunto da melodia, a sonoridade dessas notas é justamente a menos audível.
26 de novembro de 2014
Quase
Não sei o que é mais grave
atrever-me a escrever esta linha
ou atrever-me a viver
sabendo que a tinta desaparece
e o sangue seca
e nenhum guarda vestígios
talvez só uma mancha disforme
no chão da cozinha
uma memória do que nunca foi
nem podia ter sido
o mundo é feito de silêncio
entre os seres
quebrar esse pacto
é construir um espaço de solidão.
Fábio Neves Marcelino
Não sei o que é mais grave
atrever-me a escrever esta linha
ou atrever-me a viver
sabendo que a tinta desaparece
e o sangue seca
e nenhum guarda vestígios
talvez só uma mancha disforme
no chão da cozinha
uma memória do que nunca foi
nem podia ter sido
o mundo é feito de silêncio
entre os seres
quebrar esse pacto
é construir um espaço de solidão.
Fábio Neves Marcelino
24 de novembro de 2014
Para os usos correntes da vida, os gestos da mão emprestaram ímpeto à linguagem, ajudaram a articulá-la, a distinguir os seus elementos, a isolá-los de um vasto sincretismo simbólico, a ritmá-la e mesmo a colori-la de inflexões subtis. Dessa mímica da fala, dessas trocas entre a voz e as mãos,
resta alguma coisa daquilo a que os antigos chamavam de ação oratória.
Henri Focillon, Elogio da mão.
resta alguma coisa daquilo a que os antigos chamavam de ação oratória.
Henri Focillon, Elogio da mão.
23 de novembro de 2014
Regra geral, os homens esperam a decepção: sabem que não precisam de
se impacientar, que ela mais cedo ou mais tarde chegará, que lhes
concederá o prazo necessário para que se possam dedicar às coisas que
estão a fazer. Assim não acontece com o desiludido, para quem ela surge
ao mesmo tempo que o acto; ele não precisa de a aguardar, ela já está
presente. Ao libertar-se da sucessão, ele devorou o possível e tornou
supérfluo o futuro. «Não posso encontrar-me convosco no vosso futuro
— diz aos outros. — Não há um único instante que nos seja comum». Pois
para ele, todo o futuro está já ali. Quando percebemos o fim no começo,
andamos mais depressa do que o tempo. A iluminação, decepção fulminante,
concede uma certeza que transforma o desiludido em liberto.
Cioran, Do inconveniente de ter nascido.
Cioran, Do inconveniente de ter nascido.
21 de novembro de 2014
desde que Penélope passou a esperar decorreram vinte anos. o reencontro está para breve, Ulisses aportará à costa de Ítaca, sem rosto e sem caminho, para ser conduzido à porta de casa. mas isso ainda ninguém o sabe. em troca da sua perseverança, a Penélope resta por ora apenas um fio de voz. esqueceu, por exemplo, que o mundo não é apenas feito de silêncio, que a constância das estações e do labor não chega para disfarçar o terrível trabalho do tempo a dissipar-se e a adensar-se. ocorre frequentemente que confunda o princípio e o fim, como quando se senta para comer e percebe que já não tem fome ou quando acorda e vê que é novamente noite. há muito que decidiu fazer o mergulho — e há nisto certa perversão irrecuperável — numa indolência maciça, que a protege sem a embaraçar. as conversas que mantém são estranhas, transformando-se muitas vezes em monólogos misteriosos onde a angústia ressoa incompreensivelmente. o desejo imobiliza-a. Penélope não dorme, sonha. o vento está parado, o orvalho desceu sobre a areia na praia, nenhum pássaro canta, os criados dormem e uma mulher odeia profundamente os impulsos secretos do seu corpo, que a tornam irritável e sombria. inútil. nada mais que um animal plácido a envelhecer em face a uma tremura imperceptível, pura, embora há muito já não acredite na pureza. de pé ante uma estreita fronteira, os punhos cerrados e num incêndio.
20 de novembro de 2014
20.11.2014
On ne pourra jamais faire voir à quelqu’un ce qu’il n’a pas vu lui-même, découvrir ce qu’il n’a pas découvert lui seul. Jamais sans détruire sa vue, quelque soit l’usage qu’il en fait, sa vue.
Ce spectateur, je crois qu’il faut l’abandonner à lui-même, s’il doit changer, il changera, comme tout le monde, d’un coup ou lentement, à partir d’une phrase entendue dans la rue, d’un amour, d’une lecture, d’une rencontre, mais seul. Dans un affrontement solitaire avec le changement.
Ce spectateur, je crois qu’il faut l’abandonner à lui-même, s’il doit changer, il changera, comme tout le monde, d’un coup ou lentement, à partir d’une phrase entendue dans la rue, d’un amour, d’une lecture, d’une rencontre, mais seul. Dans un affrontement solitaire avec le changement.
Marguerite Duras, Le spectateur, in Les Yeux verts, 1980.
19 de novembro de 2014
Cloud classification
goes all the way back to 1802, when British pharmacist Luke Howard first
presented his paper, "On the modification of clouds”, in which many of
the classifications we use today were first proposed, including cirrus, cumulus, stratus, and Nimbus. Almost a hundred years later, the colossal International Cloud Atlas
was published, organising all known cloud types into four levels of
classification, under which they’re grouped into a genre, species, and
variety, sort of like how animals and plants are scientifically
classified. This book is now the global standard for cloud
classification, and since 1975, when the last edition was published,
there has not been a significant change or addition to the
classification system of clouds.
"Fortunately, the World Meteorological Organization is currently in the process of preparing the first new edition of the International Cloud Atlas in four decades. Finally, the Atlas will be available online - the clouds are coming to the cloud,” (...).
"Fortunately, the World Meteorological Organization is currently in the process of preparing the first new edition of the International Cloud Atlas in four decades. Finally, the Atlas will be available online - the clouds are coming to the cloud,” (...).
Duro caminho é o de saber que não há caminho.
O que há são fragmentos de rota que o tecido do acaso
une ou desune. Estar, andar. Identificar-se com as coisas,
com o tempo. Estar aqui, ali. Estar antigamente, estar futuro,
ou buscar-se no espelho onde não há espelho.
Isso é tudo.
Mesmo assim nos sonhamos, e sonhamos
um roteiro, um destino.
Não no espaço, ou no tempo,
mas na parte de nós, ah, tão frágil, que se devora
e, perdida, se salva.
O que há são fragmentos de rota que o tecido do acaso
une ou desune. Estar, andar. Identificar-se com as coisas,
com o tempo. Estar aqui, ali. Estar antigamente, estar futuro,
ou buscar-se no espelho onde não há espelho.
Isso é tudo.
Mesmo assim nos sonhamos, e sonhamos
um roteiro, um destino.
Não no espaço, ou no tempo,
mas na parte de nós, ah, tão frágil, que se devora
e, perdida, se salva.
Emílio Moura
que o sublime é o caos, e que nele apenas há absoluto, é a conclusão
melancólica a que Kant chega e que parece ser constantemente obliterada em prol da moral
reguladora. até mesmo os fascínios são dissolvidos perante a experiência silenciosa da beleza, de limiar decisivo, que nos liberta - enfim - da própria emancipação. é essa a comunidade possível, onde a identidade é uma incerteza, mera afinação de uma escuta e não uma construção. o íntimo desloca-se para o universal e o universal desdobra-se na estranheza, resposta inesperada, de uma alegria desmedida, porventura demasiado pura para o entendimento, que não nos deixa saber o que ela é para além de uma força que nos impele a deixar de ser e a aderir à expetativa que incessantemente é seu legado.
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