quando Ulisses regressa a Ítaca, não a vê. está adormecido e quando acorda não a reconhece. alguém lhe repete o seu nome, mas Ulisses não a vê. talvez nem acredite que essa terra exista para além da sua memória.
a estação que o acolhe é doce e são sobretudo os cheiros que, a cada passo dos seus passeios, o levarão a reencontrar a cidade que mudou. o conforto de ninguém o reconhecer (mistério cujo desvendamento não para de adiar), fá-lo aventurar-se na redescoberta das ruas e na violência das suas memórias. de regresso, de regresso. a princípio olha apenas para o céu. as suas cores parecem-lhe mais vivas do que antes, mas não pode negar que este parece ser o mesmo céu que o guiou na sua viagem. depois começa a ver as coisas abaixo do céu. o musgo dos telhados. os pardais que em bando procuram comida no chão e não levantam voo à sua passagem. a silhueta ao longe de um lavrador. uma algazarra de crianças. o som dos seus passos sobre a terra, sobre Ítaca (repete a si próprio o nome). este é o céu de Ítaca e são estas as suas coisas. a pouco e pouco Ulisses vislumbra-se a si próprio na relação com elas e de certa maneira isso alarma-o pois, ao contrário dos perigos que encontrou, percebe agora que Ítaca é intransponível: não tem centro. é feita de camadas de imaginação. as folhas das tílias começaram a cair e é isso que permanece. de resto, tudo o que fez não passa de um esboço, como um quarto sem telhado. Ulisses caminha de rosto oculto e apercebe o extraordinário pelo mesmo movimento que o desfaz.
18 de novembro de 2014
17 de novembro de 2014
o palácio fronteira foi o lugar que mais amei ao longo de dezenas de anos em Lisboa, sem nunca lá ter entrado. não queria ir, queria amá-lo à
distância, imaginá-lo, seguir o seu rasto como uma coisa viva. li muito
sobre ele. há um ano, apenas, fui lá. aconteceu por mero acaso, falei nele a um amigo, que nunca tinha ouvido falar e me perguntou de seguida «queres ir lá amanhã?», convite a que, para minha surpresa, finalmente, o meu coração não se fechou.
entre as muitas histórias que li sobre ele, havia a história do seu proprietário Fernando Mascarenhas. conheço pessoas que o conheceram e me trouxeram essas histórias em segunda mão, desconhecendo no entanto o porte do meu fascínio enquanto as ouvia. achava curioso que a descrição do marquês exigisse tantos ou mais pormenores que a descrição do próprio palácio: as pessoas chegavam a descrever o tom da sua voz. morreu na semana passada sem que tivesse chegado a conhecê-lo. tinha julgado que era inevitável encontrarmo-nos um dia, que por dezenas de anos que passassem haveria de chegar o dia certo, e lamentei que não fosse também ele um palácio, com paredes sólidas e um cortejo de gerações a cuidar da sua manutenção. no dia em que visitei o palácio fronteira, fiquei a saber também por acaso, que ele estava numa sala contígua àquela em que me encontrava. na altura bastou-me isso, decidi que não o veria nesse dia. hoje deparo-me com a força da fatalidade, imensuravelmente superior à do meu destino, pois até as nossas fantasias lhe pertencem.
que digo... até? mas o que é o meu destino senão uma fantasia do princípio ao fim? todas as portas que atravesso, as pistas que persigo, estes sons que redefinem e transfiguram o espaço, estou a sonhá-los, a imaginá-los. são eles a única coisa que entendo em estar viva, o mundo escapa-me com violência. não sei, não posso explicá-lo, não posso entendê-lo. sem dúvida por isso ele ainda me espante.
entre as muitas histórias que li sobre ele, havia a história do seu proprietário Fernando Mascarenhas. conheço pessoas que o conheceram e me trouxeram essas histórias em segunda mão, desconhecendo no entanto o porte do meu fascínio enquanto as ouvia. achava curioso que a descrição do marquês exigisse tantos ou mais pormenores que a descrição do próprio palácio: as pessoas chegavam a descrever o tom da sua voz. morreu na semana passada sem que tivesse chegado a conhecê-lo. tinha julgado que era inevitável encontrarmo-nos um dia, que por dezenas de anos que passassem haveria de chegar o dia certo, e lamentei que não fosse também ele um palácio, com paredes sólidas e um cortejo de gerações a cuidar da sua manutenção. no dia em que visitei o palácio fronteira, fiquei a saber também por acaso, que ele estava numa sala contígua àquela em que me encontrava. na altura bastou-me isso, decidi que não o veria nesse dia. hoje deparo-me com a força da fatalidade, imensuravelmente superior à do meu destino, pois até as nossas fantasias lhe pertencem.
que digo... até? mas o que é o meu destino senão uma fantasia do princípio ao fim? todas as portas que atravesso, as pistas que persigo, estes sons que redefinem e transfiguram o espaço, estou a sonhá-los, a imaginá-los. são eles a única coisa que entendo em estar viva, o mundo escapa-me com violência. não sei, não posso explicá-lo, não posso entendê-lo. sem dúvida por isso ele ainda me espante.
voltei a sonhar com as minhas mãos e, como sempre, quando acordei não me lembrava. foi quando estava a ver um vídeo na exposição da Sara & André que as imagens voltaram, como memórias de um acontecimento ainda a fazer-se, porém já irrecuperável e inacessível.
o vídeo chamava-se mãos, cabelos e primeiro vi os cabelos. no topo de duas cabeças que se moviam lentamente, o brilho dos cabelos, negros e louros, tenuemente iluminados diante de um fundo negro. enquanto assistia, automaticamente imaginei as mãos, antes de aparecerem. imaginei dois pares de mãos erguidas, mostrando claramente os dedos, rodando sobre si para mostrar a palma e as costas. mal imaginei a imagem, dois pares de mãos aparecem no écrã que, para meu choque, se tocavam. tocavam-se como se não pudessem existir separadamente e eu nem sequer tinha imaginado a possibilidade de se tocarem. o meu sonho reapareceu nesse momento, confusamente, esparso e em simultâneo às perguntas. porque nem me ocorreu que as mãos se pudessem tocar? de contrário, na minha imaginação, separei-as claramente, exatamente como se não pudessem tocar-se, porventura até como se não pudessem tocar em nada. umas mãos não são feitas para tocar, agarrar, pegar, escarafunchar, amassar, apalpar? que função lhes reservo para além dessa, que a torna impura e impede? terei destituído as minhas mãos de qualquer função?
no meu último sonho aconteceu uma coisa que nunca acontece, aconteceu aquilo que não pode acontecer, aquilo que é proibido, tabu: verem as minhas mãos. a mera sugestão da possibilidade de tocá-las é já o horror que transforma o sonho num pesadelo de tal forma insuportável que me escondo imediatamente na vigília. um ver que é tocar, um ver que me atinge, me fere.
enquanto caminhava na rua pensava nas minhas mãos e em como novamente não devia ter saído de casa sem as arranjar. precisava de cortar as unhas, cortar pequenas peles que crescem sobre as unhas, cortar todas estas coisas que continuamente crescem e se estendem a partir delas. excrescências que, se descontroladas, podem privar-me da sua existência - talvez devesse colocar sua entre parênteses - como no sonho em que as mãos se transformavam num casulo de pele branca. eu pensava nisto e de vez em quando olhava com repulsa para elas, repulsa e vergonha, quando subitamente, a pessoa que caminhava a meu lado, também as vê. assim que as vê olha-me nos olhos e diz «tens de arranjar as mãos.» não chego a responder. acordo.
o vídeo chamava-se mãos, cabelos e primeiro vi os cabelos. no topo de duas cabeças que se moviam lentamente, o brilho dos cabelos, negros e louros, tenuemente iluminados diante de um fundo negro. enquanto assistia, automaticamente imaginei as mãos, antes de aparecerem. imaginei dois pares de mãos erguidas, mostrando claramente os dedos, rodando sobre si para mostrar a palma e as costas. mal imaginei a imagem, dois pares de mãos aparecem no écrã que, para meu choque, se tocavam. tocavam-se como se não pudessem existir separadamente e eu nem sequer tinha imaginado a possibilidade de se tocarem. o meu sonho reapareceu nesse momento, confusamente, esparso e em simultâneo às perguntas. porque nem me ocorreu que as mãos se pudessem tocar? de contrário, na minha imaginação, separei-as claramente, exatamente como se não pudessem tocar-se, porventura até como se não pudessem tocar em nada. umas mãos não são feitas para tocar, agarrar, pegar, escarafunchar, amassar, apalpar? que função lhes reservo para além dessa, que a torna impura e impede? terei destituído as minhas mãos de qualquer função?
no meu último sonho aconteceu uma coisa que nunca acontece, aconteceu aquilo que não pode acontecer, aquilo que é proibido, tabu: verem as minhas mãos. a mera sugestão da possibilidade de tocá-las é já o horror que transforma o sonho num pesadelo de tal forma insuportável que me escondo imediatamente na vigília. um ver que é tocar, um ver que me atinge, me fere.
enquanto caminhava na rua pensava nas minhas mãos e em como novamente não devia ter saído de casa sem as arranjar. precisava de cortar as unhas, cortar pequenas peles que crescem sobre as unhas, cortar todas estas coisas que continuamente crescem e se estendem a partir delas. excrescências que, se descontroladas, podem privar-me da sua existência - talvez devesse colocar sua entre parênteses - como no sonho em que as mãos se transformavam num casulo de pele branca. eu pensava nisto e de vez em quando olhava com repulsa para elas, repulsa e vergonha, quando subitamente, a pessoa que caminhava a meu lado, também as vê. assim que as vê olha-me nos olhos e diz «tens de arranjar as mãos.» não chego a responder. acordo.
13 de novembro de 2014
There are moments when the veil of hope is finally torn apart and the suddenly liberated eyes see their
world, as it is, as it must be. Alas, it does not last long, the
revelation quickly passes, the eyes can only bear such pitiless light
for a short while, the membrane of hope grows again and one returns to
the world of phenomena.
Hope is the cataract of the spirit, which cannot be pierced until it is completely ripe for decay. Not every cataract ripens, and many a human being can even spend his whole life within the mist of hope. And if the cataract may have been healed for the moment, it always forms itself again immediately, as does the hope.
Samuel Beckett, German Diaries 1936-1937
Hope is the cataract of the spirit, which cannot be pierced until it is completely ripe for decay. Not every cataract ripens, and many a human being can even spend his whole life within the mist of hope. And if the cataract may have been healed for the moment, it always forms itself again immediately, as does the hope.
Samuel Beckett, German Diaries 1936-1937
12 de novembro de 2014
11 de novembro de 2014
9 de novembro de 2014
8 de novembro de 2014
na noite em que os amigos a velaram, Alberto Velades apareceu com as suas suíças e cabelos negros e uma garrafa de vinho verde. de luto e encharcados, os amigos bebiam e trocavam olhares sem impaciência e sem solenidade. «era linda e fascinante», disse erguendo o copo e quebrando o silêncio
confuso que se tinha instalado. não tinha uma partícula de imaginação e
naquele momento teve pena. aquela rapariga alta e sombria, com olhos
desmesurados, em cuja homenagem erguia agora o seu copo, estava a
desaparecer rapidamente da sua memória tal como tinha
acabado de desaparecer do mundo. por enquanto, as lembranças dela
desfilavam a uma velocidade vertiginosa, precisamente o que lhe
transmitia a sensação de estarem a desaparecer irrevocavelmente, como se tudo o que lhe
dissesse respeito se escoasse para o ralo de um coração que tinha
deixado de bater para sempre.
não houve mais elegias. o pio de um mocho ou de um corvo foi seguido de um bater de asas. a neve inchava sobre a cidade. lá em baixo sobre o rio, vagas de bruma deslizavam como um mar etéreo, de singular vislumbre. «Vamos acabar por gelar aqui». entraram e Rosa, a única que tinha ficado dentro da casa, não levantou os olhos. tinha as mãos pousadas na cadeira, ao lado das coxas, um vestido de malha cinzento e o cabelo apanhado na nuca. sentaram-se ao lado dela. a sua tristeza denunciava desespero, um desespero que um tipo particular que tinha na origem a morte dos poetas. suponho que a avaliação desse tipo de desespero possa transmitir a ideia de uma mulher muito frágil e impotente, porventura até sem identidade. o que depois seria confirmado pela descrição da vida que Rosa Antunes levava, monótona e isolada. cruzar-se com ela era no entanto tudo menos aborrecido, muito embora cada vez mais lhe fosse difícil seguir as conversas, o que acontecia desde há muito mas apenas agora começava a tornar-se evidente, e assim, o isolamento ia-se confirmando, como um desígnio da Providência.
Alberto Velades sentou-se na fila de cadeiras alinhadas na parede da frente da entrada da sala, do lado direito de Rosa Antunes, que estava sentada atrás do caixão, abaixo da cabeceira, e quando, ao levantar a cabeça depois de se sentar, os seus olhos passaram brevemente pela mão direita de Rosa, imóvel, branca, delicada, Alberto Velades corou. Rosa não moveu o olhar mas viu e Alberto viu que Rosa viu. cada um na sua cadeira, os outros esperavam que os fantasmas gritassem. a claridade das velas desenhava massas de sombra negra no espaço, onde um cortejo de lembranças se mostrava num silêncio absoluto. atulhados de repulsa pelo pó dos corpos inanimados, guiados por aquele fogo lento, seria verosímil que esta ronda de amigos sonhasse. mas não havia na cena nem sonho nem mistério nem superstição. perante aquele navio à deriva sentiam-se apenas revoltados mas todos se pouparam ao crime de profanar o escândalo do seu reencontro.
no crepúsculo da alvorada a névoa tinha subido do rio, que já não se podia ver. Francisco Junqueira fumava cá fora observando como entre as ruínas e as teias de aranha a cidade era muito bela. quando Rosa se juntou a ele, disse-lhe: «Há uma certa atmosfera de liberdade nos funerais não achas?». Francisco não percebeu imediatamente. só depois do alarme, quando pôde captar todos os sinais do seu rosto, lhe sorriu de volta, lhe ofereceu um cigarro e respondeu: «De facto. Os mortos também se alimentam não é verdade?». «Como as mulheres de espelhos», disse Rosa, ainda a sorrir.
os outros juntaram-se ao ar livre, como para dar um pouco de descanso ao cadáver. um clarão avermelhado surgia atrás da bruma e os seus olhos brilhavam como jóias protegidas entre as pálpebras semicerradas. os pensamentos desconexos tinham-se dissipado com a noite. mesmo que por vezes incertos, a ligá-los num laço invisível mas sólido, sobreviviam os pormenores, delatores dos vastos ecos da beleza contra a mudez lúgubre da morte.
não houve mais elegias. o pio de um mocho ou de um corvo foi seguido de um bater de asas. a neve inchava sobre a cidade. lá em baixo sobre o rio, vagas de bruma deslizavam como um mar etéreo, de singular vislumbre. «Vamos acabar por gelar aqui». entraram e Rosa, a única que tinha ficado dentro da casa, não levantou os olhos. tinha as mãos pousadas na cadeira, ao lado das coxas, um vestido de malha cinzento e o cabelo apanhado na nuca. sentaram-se ao lado dela. a sua tristeza denunciava desespero, um desespero que um tipo particular que tinha na origem a morte dos poetas. suponho que a avaliação desse tipo de desespero possa transmitir a ideia de uma mulher muito frágil e impotente, porventura até sem identidade. o que depois seria confirmado pela descrição da vida que Rosa Antunes levava, monótona e isolada. cruzar-se com ela era no entanto tudo menos aborrecido, muito embora cada vez mais lhe fosse difícil seguir as conversas, o que acontecia desde há muito mas apenas agora começava a tornar-se evidente, e assim, o isolamento ia-se confirmando, como um desígnio da Providência.
Alberto Velades sentou-se na fila de cadeiras alinhadas na parede da frente da entrada da sala, do lado direito de Rosa Antunes, que estava sentada atrás do caixão, abaixo da cabeceira, e quando, ao levantar a cabeça depois de se sentar, os seus olhos passaram brevemente pela mão direita de Rosa, imóvel, branca, delicada, Alberto Velades corou. Rosa não moveu o olhar mas viu e Alberto viu que Rosa viu. cada um na sua cadeira, os outros esperavam que os fantasmas gritassem. a claridade das velas desenhava massas de sombra negra no espaço, onde um cortejo de lembranças se mostrava num silêncio absoluto. atulhados de repulsa pelo pó dos corpos inanimados, guiados por aquele fogo lento, seria verosímil que esta ronda de amigos sonhasse. mas não havia na cena nem sonho nem mistério nem superstição. perante aquele navio à deriva sentiam-se apenas revoltados mas todos se pouparam ao crime de profanar o escândalo do seu reencontro.
no crepúsculo da alvorada a névoa tinha subido do rio, que já não se podia ver. Francisco Junqueira fumava cá fora observando como entre as ruínas e as teias de aranha a cidade era muito bela. quando Rosa se juntou a ele, disse-lhe: «Há uma certa atmosfera de liberdade nos funerais não achas?». Francisco não percebeu imediatamente. só depois do alarme, quando pôde captar todos os sinais do seu rosto, lhe sorriu de volta, lhe ofereceu um cigarro e respondeu: «De facto. Os mortos também se alimentam não é verdade?». «Como as mulheres de espelhos», disse Rosa, ainda a sorrir.
os outros juntaram-se ao ar livre, como para dar um pouco de descanso ao cadáver. um clarão avermelhado surgia atrás da bruma e os seus olhos brilhavam como jóias protegidas entre as pálpebras semicerradas. os pensamentos desconexos tinham-se dissipado com a noite. mesmo que por vezes incertos, a ligá-los num laço invisível mas sólido, sobreviviam os pormenores, delatores dos vastos ecos da beleza contra a mudez lúgubre da morte.
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