Como gosto muito de ouvir contar histórias, acreditei mais nas histórias que me contavam do que na minha própria. O facto da minha ser radicalmente diferente, porque única, tornava-a inverosímil. Fiquei em silêncio, deliciada, a escutar atentamente, mas nunca me ocorreu que também eu tivesse um lugar no mundo e assim, porventura, acabei por perdê-lo de vista. Vejo medo e solidão, por toda a parte corpos a apodrecer no passeio, nos mesmos lugares onde hordas de turistas bebem, comem e falam alto. Neles também, totens exilados da sua tribo que entoam canções indolentes, é ainda a morte que eu vejo. Por vezes também vejo coisas belas, muito simples, como um encolher de ombros hoje, em resposta ao meu lacónico «tudo bem?». É uma cidade estranha esta. Faço longas caminhadas sem encontrar ninguém. O ar quente deste verão tardio está pesado e sujo. São estas as coisas que desejamos, têm luz ofuscante que só podemos ver com manchas. Eu própria carrego uma sombra que me arrasta o passo e sem dúvida é ela que contamina tudo o que vejo. A minha linguagem recua cada vez mais à infância, tornando-se, se é isso possível, ainda mais simples do que na infância. Muito pobre. Incompreensível. Assisto a esse movimento e finalmente compreendo que acreditarmos em nós próprios significa acreditarmos na nossa própria história. Mas acreditar, e é isto que só agora percebo, é o equivalente a não ter ilusões. Nada me falta afinal. Enquanto tudo o resto é vago, lembro-me. A minha maneira de escolher sempre foi rígida e não tive direito a substitutos. Que exótica é a minha dor. Sem resguardo possível. Creio até que a minha fragilidade é a minha maior força. E no entanto, que fina é a fronteira que a separa da loucura...
Tenho a sensação de ouvir o barulho das ondas. Não está aqui, não existe, e mesmo assim abafa tudo o resto. É o que tenho de mais plausível para contar.
20 de outubro de 2014
19 de outubro de 2014
Tenho
um grande defeito: não quero aprender através de alguém que me diga:
"Faz-se assim." Queria descobrir. Por isso é que posso esperar 20 anos.
Não quero que me digam: "Não percebes, mas é isto." É uma machadada em
mim. Não tem nada que ver com orgulho. Nada, nada, nada. Tem que ver com
uma autodescoberta que acabava de perder.
Maria Filomena Molder
Maria Filomena Molder
18 de outubro de 2014
O consultório do meu pediatra tinha as paredes negras. A secretária
dele, diante da qual eu me sentava numa cadeira ao lado da minha mãe,
com um bloco cheio de desenhos da sala de espera na mão (que não queria
mostrar a ninguém) era de vidro, e sobre ela, um candeeiro largo e
redondo iluminava toda a sala com uma luz amarela suave. Ao lado do divã
havia outra luz, na extremidade de um candeeiro de pé alto muito fino,
que ele deslocava sobre o meu corpo. Havia uma balança de onde
eu descia sempre para ouvir que tinha de comer mais e usavam-se
espátulas de madeira para ver a garganta, que davam vómitos. Lembro-me
dele, simpático e careca. Lembro-me do nome dele. Lembro-me da voz dele.
De tudo isto me lembro porque numa das paredes do consultório havia um
poster do The Kid. Era um poster a preto e branco absolutamente
gigantesco pelo qual fiquei hipnotizada no momento em que o vi pela
primeira vez. Duas pessoas, um adulto e uma criança, estavam sentadas no
degrau de uma porta. Lado a lado, apertados na ombreira para
conseguirem caber os dois. O meu pediatra era
a-pessoa-que-tinha-o-poster. Um mago, um sábio, um alquimista, na sua
caverna negra de luz suave e quente, com voz doce e grave, que resolvia
tudo. Apercebendo-se do meu fascínio, pois desde que chegava ao
consultório arranjava sempre maneira de ficar a olhar para as figuras no
poster, um dia, estava eu deitada no divã, perguntou-me sorridente, com
um olho virado para mim e o outro para a minha mãe: «Achas que estão
tristes ou alegres?» A pergunta deixou-me perplexa e não respondi.
Pensei naquilo muito tempo e durante muito tempo voltei ao consultório
sem saber a resposta. Para meu grande alívio, ele nunca mais voltou ao
assunto. O meu problema não estava em achar que aquelas pessoas pudessem
estar imersas numa ou noutra dessas emoções, permanecendo contudo
indecisa sobre elas. O meu problema era justamente achar que não estavam
tristes. E que também não estavam alegres. Portanto, se não era
tristeza, mas também não era alegria, essa outra coisa, o que era? Estava
no olhar e no corpo deles, adulto e criança, maltrapilhos e sujos (não
como quem tivesse acabado de jogar à bola mas como quem era muito
pobre). Era uma dádiva. E era a única coisa em que eu queria pensar.
17 de outubro de 2014
16 de outubro de 2014
(...) Assim não é apenas a vida privada que nos acompanha enquanto
clandestina na nossa breve ou longa viagem, mas a própria vida corpórea e
tudo o que tradicionalmente se inscreve na esfera da chamada
“intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o sono, a
sexualidade… E o peso desta companheira sem cara é tão forte que todos o
procuramos partilhar com um outro – e todavia a estranheza e a
clandestinidade nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais
amorosa das convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa
roubada que o rapaz esconde sob as suas roupas e não pode confessar
ainda que lhe dilacere atrozmente a carne.
É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar, foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem outro objecto que a vida vegetativa dos corpos é neste sentido a figura da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar a política ao quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão naufragar.
E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.
E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.
É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar, foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem outro objecto que a vida vegetativa dos corpos é neste sentido a figura da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar a política ao quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão naufragar.
E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.
E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.
Acender velas para gastar menos luz. Comer menos para poupar na conta do supermercado, uma refeição por dia chega. Não ter filhos. Vestir mais uma camisola e um casaco por cima dela para não ter de ligar o aquecedor. Não ficar doente. Sair menos à rua ou sair prevenido com uma peça de fruta ou uma sandes e água. Comprar o passe apenas em caso estritamente necessário, de resto, andar a pé. Encontrar estratégias para não pagar telefone e não pagar internet. Acumular louça para abrir uma só vez a torneira. Usar a torneira de água quente exclusivamente para o duche. Se o mês chegar antes do meio do mês, jantar em casa de amigos e aceitar o auxílio do pai ou da mãe. Não sair com os amigos a não ser para passear num jardim ou ir ver uma exposição ao domingo. Não ir ao cinema, não ir ao teatro, não comprar livros nem jornais, não fazer inscrições em seminários, cursos ou ateliers. Não ter dias da semana nem fins-de-semana. Falar o menos possível entre nós sobre isto e menos ainda àqueles que não estão na mesma situação em que nós estamos. Ser tolerante quando alguém avaliar a sociedade por si próprio. Ser tolerante quando falarmos de preocupações com a renda a alguém que nos responde que está na mesma situação e a seguir nos convida para jantar fora. Ser tolerante com as nossas lágrimas e implacável quando chega o momento de sair da cama de manhã. Enviar muitos CV's, todos os dias. Ter no mínimo três CV's em várias línguas: um muito reduzido, com o mínimo de habilitações académicas, um médio com as principais experiências profissionais e o registo completo das habilitações académicas e um verdadeiro, para não nos esquecermos de que estivemos sempre a trabalhar. Ter vergonha. Ter medo. Saber esperar sem ter mais nada a esperar. Não ter tempo precisamente quando se tem todo o tempo do mundo. Ouvir quando o amigo nos diz que quando estou parado começo logo a sentir-me um logro e lembrar a frase quando formos nós o logro. Saber estar em silêncio, porque o prazer é possível mas a esperança não. Lembrar quando nos disse que quando as perspetivas se reduzem a nada, todos os caminhos parecem válidos e achamos que nunca estamos a fazer o que realmente devíamos estar a fazer e lembrar muitas vezes que perante o que temos é obsceno ficar e contudo, também não podemos partir, porque tudo é um grande talvez ou um grande nunca ou um grande não sei ou um grande não aguento mais. Quando deixar de ser possível pensar, será ainda possível respirar. E quando já não for possível respirar, talvez seja doce.
Para o Pietro Romani, que nunca me deixou só.
Para o Pietro Romani, que nunca me deixou só.
14 de outubro de 2014
Li no Gulistan, ou Jardim das Flores, de autoria do xeque Sadi de
Shiraz, que um dia perguntaram a um sábio: «Entre as muitas árvores
célebres que o Altíssimo Deus criou altaneiras e umbrosas, nenhuma é
chamada azade, ou livre, exceptuando o cipreste, que não dá frutos. Qual
o mistério disso?» O sábio replicou: «Cada uma tem seu fruto adequado e
sua estação determinada, durante a qual fica fresca e florida e fora
dela seca e murcha; o cipreste não está sujeito à variação de estados,
está sempre a florescer. Da mesma natureza são os azades ou religiosos
independentes. Não ponhas o teu coração no que é transitório, porque o
Dijlah, ou Tigre, seguirá fluindo através de Bagdade mesmo depois de a
raça dos califas se extinguir. Se as tuas mãos estão cheias, sê liberal
como as tamareiras, mas se estão vazias, sê um azade, ou um homem livre
como o cipreste.»
Henry David Thoreau, Walden ou a vida nos bosques
Henry David Thoreau, Walden ou a vida nos bosques
13 de outubro de 2014
Mon cas n'est pas unique: j'ai
peur de mourir et je suis navrée d'être au monde. Je n'ai pas
travaillé, je n'ai pas étudié. J'ai pleuré, j'ai crié. Les larmes et
les cris m'ont pris beaucoup de temps. La torture du temps perdu dès
que j'y réfléchis. Je ne peux pas réfléchir longtemps mais je peux me
complaire sur une feuille de salade fanée où je n'ai que des regrets à
remâcher. Le passé ne nourrit pas. Je m'en irai comme je suis
arrivée. Intacte, chargée de mes défauts qui m'ont torturée. J'aurais
voulu naître statue, je suis une limace sous mon fumier. Les vertus,
les qualités, le courage, la méditation, la culture. Bras croisés,
je me suis brisée à ces mots-là.
Violette Leduc, La bâtarde
12 de outubro de 2014
tinha uma avó que comia medula
e era isso que fazia dela uma pessoa muito velha
como se fosse descendente direta
dos primeiros homens
que povoaram a terra
e cuja melancolia
deu origem à civilização
não se sabe onde teve origem
mas desde que existe
o amor nunca envelheceu
a nossa vida
é uma tímida reminiscência
da devastação que deixa
quando desaparece
e era isso que fazia dela uma pessoa muito velha
como se fosse descendente direta
dos primeiros homens
que povoaram a terra
e cuja melancolia
deu origem à civilização
não se sabe onde teve origem
mas desde que existe
o amor nunca envelheceu
a nossa vida
é uma tímida reminiscência
da devastação que deixa
quando desaparece
11 de outubro de 2014
Há textos que gostamos mais de escrever que outros. Talvez porque tenham
aquele efeito de livro arrumado, acabado de ler, ao qual não voltamos
com a mesma excitação porque sabemos que depois de escalado o muro há um
jardim arruinado.
Há textos que escrevemos a que faltam degraus, como dentes, e essas faltas essas falhas, na antecipação de uma paisagem feliz, são a boca toda aberta ao vento.
Raquel Nobre Guerra
Há textos que escrevemos a que faltam degraus, como dentes, e essas faltas essas falhas, na antecipação de uma paisagem feliz, são a boca toda aberta ao vento.
Raquel Nobre Guerra
9 de outubro de 2014
Alguns narradores contam que Medeia, em fuga, não teve possibilidade de
levar consigo os filhos que, perante a negligência de Jasão, foram
apedrejados até à morte pela família de Creonte, como vingança.
Contudo, a versão mais conhecida é ainda mais sombria e deve-se a Eurípides, na sua tragédia Medeia, apresentada pela primeira vez em 431 a.C.. Aqui, é a própria Medeia quem mata os filhos antes de fugir para Atenas, não num acesso de loucura, mas num acto de fria e premeditada vingança em relação ao marido infiel. Eurípides foi, na altura, acusado de ceder perante um elevado suborno de cidadãos coríntios que preferiam uma versão onde não fosse o povo daquela cidade a cometer o infanticídio.
De artigo da Wikipédia completo aqui.
Contudo, a versão mais conhecida é ainda mais sombria e deve-se a Eurípides, na sua tragédia Medeia, apresentada pela primeira vez em 431 a.C.. Aqui, é a própria Medeia quem mata os filhos antes de fugir para Atenas, não num acesso de loucura, mas num acto de fria e premeditada vingança em relação ao marido infiel. Eurípides foi, na altura, acusado de ceder perante um elevado suborno de cidadãos coríntios que preferiam uma versão onde não fosse o povo daquela cidade a cometer o infanticídio.
De artigo da Wikipédia completo aqui.
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